Em Taquari, o padrasto de um menino de três anos confessou ter matado a criança, em fevereiro. Em São Luiz Gonzaga, nas Missões, um bebê de um ano foi retirado de sua casa com fraturas nos dois braços e nas duas pernas. O padrasto e a mãe foram presos preventivamente. Esse caso aconteceu em agosto. No mesmo mês, em Alvorada, um conselheiro tutelar foi afastado do cargo por ter deixado de apurar suspeitas de maus-tratos contra uma menina de três anos e se tornou réu por omissão no crime de tortura com resultado morte. A mãe e o padrasto da criança são réus neste caso.
Em Cidreira, um menino de dois anos morreu no posto de saúde da cidade do Litoral Norte, onde chegou com múltiplas marcas de violência pelo corpo. A mãe e o padrasto foram presos, suspeitos de envolvimento na morte, que aconteceu em outubro. Já em Santa Vitória Palmar, a Polícia Civil prendeu em flagrante por homicídio qualificado um casal suspeito de torturar e matar uma criança de dois anos. A mãe e o padrasto também são suspeitos de torturar a irmã da vítima, de três anos.
Os casos citados acima são apenas alguns dos registrados em 2022 no Rio Grande do Sul e reforçam que o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes ainda é um desafio. Mapeamento feito por diferentes órgãos que compõem o chamado Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência identificou o desconhecimento de gestores públicos sobre algumas normativas e leis, e a insuficiência de investimentos para conter esse tipo de crime.
Em 2022, até outubro, 9.382 menores de 18 anos já haviam sido vítimas de algum tipo de violência, conforme levantamento feito pelo Observatório da Secretaria da Segurança Pública (SSP) a pedido de GZH. Trata-se do maior número dos últimos três anos (veja o gráfico abaixo), faltando ainda dois meses a serem contabilizados. Representa, ainda, média de 31 casos por dia — mais de um caso registrado por hora. O levantamento inclui casos de exploração sexual infanto-juvenil, assédio sexual, importunação sexual, estupro, estupro de vulnerável, lesão corporal e maus-tratos.
São várias as medidas tomadas após uma criança ou um adolescente sofrer violência, entre elas, sua retirada da família, provisória ou definitivamente. No Rio Grande do Sul, atualmente, 168 estão em 16 abrigos da Fundação de Proteção Especial. Os casos são os mais variados, de abuso sexual a pais que deram cachaça para bebês com meses de vida.
A delegada Eliana Parahyba Lopes é diretora da Divisão Especial da Criança e do Adolescente da Polícia Civil do RS. Ela explica que o trabalho de enfrentamento aos crimes contra menores de 18 anos é dividido entre prevenção e repressão.
No campo da repressão, operações policiais são realizadas ao longo do ano para prender responsáveis por esse tipo de crime. Na prevenção, ela destaca que o foco é a aproximação das comunidades, por meio de ações como palestras nas escolas e capacitações para operadores da rede de proteção.
— Temos um olhar muito diferenciado para esse público vulnerável, para receber, ouvir e acolher essa criança que foi vítima de algum tipo de violência — sustenta Eliana.
Os conselhos tutelares, criados com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, costumam ser a porta de entrada para muitos relatos. Jeferson Leon é presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do Rio Grande do Sul e ressalta que a violência sexual ainda é a que implica em mais desafios.
— Todos somos pais, mães, e deparamos com essa situação. Somos profissionais que viemos da sociedade, não tivemos preparo como (tiveram) policiais e psicólogos, mas precisamos resolver essas questões — observa Leon.
Andreia Paz Rodrigues, defensora pública dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente, explica que o trabalho em casos de violência contra menores de 18 anos ocorre nas esferas judicial, extrajudicial e preventiva.
— Podemos auxiliar passando as orientações jurídicas e também ingressando com ações, por exemplo, de guarda para uma avó, para uma tia, para proteger essas crianças que estão em situação de risco — explica a defensora, acrescentando que são comuns pedidos à Justiça para tratamentos psicológicos e psiquiátricos, por exemplo.
— Muitas vezes, as crianças desenvolvem depressão, síndrome do pânico e ansiedade em decorrência da violência sofrida — afirma.
A defensora pública conta que os casos mais comuns de violência com vítimas desta faixa etária partem de dentro de casa. Cita que existe, desde 2014, a lei nº 13.010, conhecida como Lei da Palmada ou Lei Menino Bernardo — homenagem a Bernardo Boldrini, 11 anos, assassinado por superdosagem de medicamentos em abril de 2014, em Três Passos, no noroeste gaúcho.
A lei estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados sem uso de castigos físicos, de tratamento cruel ou degradante. É considerado castigo físico qualquer ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente, que normalmente resulta em sofrimento ou lesão. Já o tratamento cruel ou degradante é qualquer forma de tratar a criança ou o adolescente que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize.
Há uma cultura no nosso país de que se castiga a criança para que ela seja corrigida. Mas isso não pode mais acontecer. A neurociência já tem estudos que indicam que isso só traz prejuízo para a criança.
ANDREIA PAZ RODRIGUES
Defensora pública
— Há uma cultura no nosso país de que se castiga a criança para que ela seja corrigida. Mas isso não pode mais acontecer. A neurociência já tem estudos que indicam que isso só traz prejuízo para a criança — destaca Andreia.
Coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público, a promotora Luciana Cano Casarotto lembra que a violência dá sinais antes de chegar a uma forma muito grave. Por isso, reforça que todos podem e devem denunciar casos, mesmo que eles ocorram dentro do ambiente familiar.
Luciana cita a lei batizada de Henry Borel, sancionada em maio de 2022 pelo presidente Jair Bolsonaro. É uma referência ao menino de quatro anos morto em 2021 por hemorragia interna após espancamentos no apartamento onde morava com a mãe e o padrasto, no Rio de Janeiro.
— É um dever de todos nós ficar atento aos sinais. Ressalto aqui os serviços de saúde, que não podem se calar quando veem uma criança vítima com lesões que se sabe que não são de acidente. E também as escolas, já que têm esse convívio com essas crianças, que conhecem até sinais emocionais. São as nossas grandes portas de entrada — diz a promotora Luciana.
O juiz-corregedor Antônio Carlos de Castro Neves Tavares admite a demora do sistema quando há necessidade de perda do poder familiar e adoção:
— Em tese, deveria levar seis meses, mas é uma atuação multidisciplinar. Dependemos muitas vezes de atuação não só de equipe técnica do Poder Judiciário, mas também dos municípios envolvidos. É uma decisão muito drástica, porque cessaria o vínculo pai/filho, mãe/filho. É algo muito sério.
Necessidade de melhorias na rede
Nesta quinta-feira (1º), foi divulgado relatório preliminar do mapeamento da rede de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul. Dos 497 municípios gaúchos, 288, o que representa 58%, responderam o questionário enviado. Esses municípios concentram 74% da população do Estado.
Os resultados apontaram para um desconhecimento dos municípios a respeito de algumas normativas de órgãos nacionais e estaduais que orientam as ações de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, em especial aqueles que tratam especificamente da violência sexual.
A coordenadora do Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Rosângela Machado Moreira, diz que um dos principais pontos a serem destacados a partir dos resultados desta pesquisa é a importância de cursos de capacitação para os profissionais da rede de proteção:
— A partir disso, divulgar essas informações e organizar junto com todos esses setores que se envolveram na pesquisa ações, intervenções para qualificar essa rede dos municípios.
A Lei da Escuta Protegida foi a mais reconhecida pelos municípios, ainda que com uma compreensão equivocada acerca dos seus conceitos principais, segundo o estudo. Uma das ações preconizadas por essa lei é o estabelecimento de fluxos para o registro e o compartilhamento de informações pelos órgãos da rede de garantia de direitos. Apenas metade dos 288 municípios que responderam o questionário possuem este fluxo estabelecido.
— Que objetivo tem isso? Que a rede não revitimize essa criança e adolescente, escutando várias vezes, questionamento, duvidando da sua palavra. Ela tem o objetivo de não revitimizar crianças que já foram vítimas, sobretudo de violência sexual e física — destaca Rosângela.
Outro fator que se destaca é o baixo ou inexistente investimento de recursos financeiros municipais específicos destinados a ações de enfrentamento à violência. Nesse item, somente 30% dos municípios afirmaram haver investimento nessas ações, por meio dos fundos municipais, e 27% afirmaram haver previsão de recursos do orçamento público.
O estudo foi desenvolvido pelo Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, vinculado à Secretaria da Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social, com órgãos e programas parceiros.
Abrigos e adoções
Uma criança ou um adolescente só é retirado do convívio da família pela Justiça quando há algum risco dentro de casa. Mesmo assim, sempre existe a tentativa de retomar esse laço com os pais. Quando isso não é possível, busca-se a chamada família extensa, que são os parentes. Se ainda assim isso não ocorrer, aí os menores de 18 anos são incluídos no sistema nacional de adoção. Até irem para uma nova família, muitas delas ficam em abrigos administrados pelo poder público. No Rio Grande do Sul, a instituição responsável é a Fundação de Proteção Especial (FPE).
Atualmente, há 168 crianças e adolescentes em acolhimento vítimas de violência. Elas ficam em 16 dos chamados abrigos residenciais. A FPE ainda abriga outros perfis, como pessoas com necessidades especiais. A Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado informa que em 2022 foram realizadas 480 adoções no Estado — nesse levantamento não há distinção das que foram vítimas de violência.
GZH vistou um desses abrigos, com 33 crianças e adolescentes. Por questões de segurança, não há fachada de identificação nesses locais e não divulgaremos a localização. Quem olha de fora enxerga uma grande residência com vários cômodos. E a ideia é essa mesmo, que as vítimas se sintam num ambiente semelhante ao de uma casa.
Logo que GZH chegou ao local, deparou com crianças pintando com giz de cera e lápis na mesa da cozinha, enquanto outras brincavam na sala e algumas no quarto, também desenhando e vendo TV.
— Aqui nós temos características diversas, meninos e meninas, crianças e adolescentes, vítimas de abuso, vítimas da própria sociedade por drogas, também autismo que os pais não dão conta de cuidar em casa — relata diretora do abrigo, Isabel Friski.
Na mesa da cozinha, estava uma menina de 11 anos. Ela foi abusada sexualmente pelo próprio pai. A mãe decidiu denunciar o caso, a criança foi retirada provisoriamente de casa e o pai acabou preso. Ela deverá voltar para a mãe nos próximos dias.
— Tô com muita saudade da minha mãe — disse ela aos servidores na sua volta.
Cada casa tem um livro com a rotina detalhada de cada uma das crianças e adolescentes em acolhimento. Num dos quartos, estavam duas irmãs desenhando e vendo TV, uma de nove e outra de 12 anos. Com mais a irmãzinha de quatro anos, serão adotadas por um casal de Santa Catarina. O trio já fez um passeio com eles. Estavam prontas para o próximo, sentadas na cama, de banho tomado e tudo.
— Nós brincamos, jogamos bola e tomamos sorvete na primeira vez. Agora vamos tomar banho de piscina — contaram as duas à diretora do abrigo.
As três fazem parte de um grupo de cinco irmãos que estão no sistema de adoção. Um menino de sete anos já foi adotado. Uma de 14 aguarda um novo lar. Os pais são usuários de drogas. O casal deixava os filhos por dias sozinhos em casa. Vizinhos denunciaram o caso ao conselho tutelar.
— Buscamos cumprir um papel dentro das nossas possibilidades de família — relata Lisia Costa, 46 anos, agente-educadora do abrigo.
Na sala, estava uma menina de quatro anos brincando um uma boneca. Os dentes bastante danificados demonstravam o descaso dos pais. Enquanto os agentes-educadores estavam presentes, ela brincava e ria. Quando percebeu a presença da reportagem, ficou séria como se estivesse estranhado, e até chorou. O primo, de apenas seis meses, estava no colo de um dos agentes-educadores. Os pais, usuários de drogas, davam cachaça para o bebê ficar mais calmo ou dormir e evitar o choro.
— A gente organiza eles para irem para a escola, tem os banhos, alimentação. Tem as atividades que a gente faz com eles também, auxilia nos temas. Vai para o pátio, escuta música, TV, várias atividades — conta Jaqueline Cardoso da Silva, 50 anos, que ajudava no preparo do almoço.
Eleonora Ferreira, 62 anos, é assistente social. Conta que há casos de adolescentes acolhidos envolvidos com o tráfico e que correm risco de vida. Nessas situações, ficam um período num programa de proteção até que possam novamente fazer contato com os pais.
— A gente alimenta esse processo de acolhimento através de relatórios, com atendimento à família, com visitas domiciliares. Eles (os pais) vêm aqui. Nos casos de violência e risco de morte, leva um tempo maior — explica a assistente social.
A pedagoga Graziela Soares Souza Ranzan, 39 anos, lembra que o trabalho da equipe técnica é multidisciplinar:
A criança e o adolescente, quando acolhido, acontece também o acolhimento da sua história de vida. E isso que é fundamental a criança e o adolescente entender. Porque eles vêm com sentimento de culpa. Muitas vezes não sabem o real motivo que os trouxeram para o abrigo.
GRAZIELA RANZAN
Pedagoga
— A criança e o adolescente, quando acolhido, acontece também o acolhimento da sua história de vida. E isso que é fundamental a criança e o adolescente entender. Porque eles vêm com sentimento de culpa. Muitas vezes não sabem o real motivo que os trouxeram para o abrigo.
Graziela conta que a maioria das crianças e adolescentes que ingressam nos abrigos possui algum tipo de dificuldade de aprendizado, principalmente por questões emocionais.
— E a gente consegue perceber aos poucos o avanço e a progressão na aprendizagem a partir do cuidado que eles recebem — diz a pedagoga.
A diretora-técnica da FPE, Vitiana Witti, relata que a média de permanência de crianças e adolescentes nos abrigos do Estado é de seis anos. Conforme ela, o desemprego causado na pandemia aumento de menores acolhidos.
— A gente percebe que mesmo a lei dizendo que o ideal é dois a três anos, o tempo é maior — diz a diretora.
O presidente da FPE, Edir Pedro Domeneghini, entende que hoje a instituição consegue atender a demanda, mesmo assim ações estão sendo tomadas para melhorias.
— Temos o dever de acolher essas crianças e adolescentes em vulnerabilidade social — sustenta o presidente, informando que todas as casas, com exceção de uma em Taquari, ficam em Porto Alegre, atendendo a demanda de todo o Estado.
Os abrigos contam com uma série de profissionais, agentes-educadores, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e educadores físicos.
Impacto no desenvolvimento
Membro da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, o pediatra José Paulo Pereira destaca que quando o elo familiar da vítima se rompe, pela violência, por exemplo, há um comprometimento na sua formação e desenvolvimento.
— Quando perde esse contato de qualidade e cria esse contato de má-qualidade, eventualmente até abusivo, essa criança vai desenvolver danos no seu desenvolvimento para sempre — relata o médico.
— Imagina uma criança bem protegida, com autoestima boa, com vínculo positivo. Se qualquer coisa acontece lá fora, essa criança tem muito mais facilidade de falar para os seus pais em quem ela confia. Caso contrário, ela vai estar muito mais vulnerável — acrescenta o pediatra.