Nos seis primeiros meses de 2022, em Rio Grande, no sul do Estado, 54 pessoas foram assassinadas. É mais do que o triplo dos homicídios registrados de janeiro a junho de 2021. Por trás deste salto, está a disputa entre duas facções criminosas. As forças da segurança vêm tentando estancar a escalada violenta, com reforços policiais, mapeamento de crimes e apreensões, além do indiciamento de suspeitos. Esta fórmula parece ter dado resultado em julho, quando o município registrou dois assassinatos.
O número ainda é superior ao de julho do ano passado, quando ninguém foi assassinado em Rio Grande. Mas, dado o contexto, pode representar trégua por parte dos grupos que têm patrocinado as execuções. O aumento, combatido nos últimos meses, iniciou ainda em dezembro, quando sete pessoas foram mortas. A situação acendeu o alerta das autoridades, já que, até então, o ano tinha tido quatro meses sem nenhum homicídio no município.
O primeiro passo foi identificar a origem do problema: tratava-se de disputa entre criminosos pela hegemonia do tráfico de drogas. Dois traficantes começaram a se retaliar, um tentando obter o domínio sobre o comércio de entorpecentes em Rio Grande e o outro buscando proteger o território que controlava. O início da desavença teria sido a descoberta de falso plano de fuga da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) no fim de outubro. O planejamento teria sido forjado por outro preso para incriminar o rival, do sul do RS, e fazer com que ele fosse transferido para o sistema penitenciário federal.
A matança, que se iniciou na metade de dezembro, aumentou em janeiro, quando foram 11 casos. A situação levou o governo do Estado a anunciar reforços, enviando a Rio Grande 90 policiais militares das tropas especiais e cinco civis. Para apurar cada caso, instalou-se na Civil força-tarefa de combate aos homicídios. Foram pinçados policiais de cada uma das três delegacias distritais, com experiência na elucidação de assassinatos, para juntos desvendarem as mortes. A ação teve apoio do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Capital. Na prática, formou-se espécie de delegacia especializada improvisada dentro da Regional.
— Foram cumpridos centenas de mandados para busca de armas e drogas, além de prisões cautelares, em razão das investigações de homicídios e voltadas à descapitalização das organizações criminosas — ressalta a delegada regional Lígia Furlanetto, uma das responsáveis por coordenar a força-tarefa.
Prejuízo de R$ 2,5 milhões
A Brigada Militar (BM), que passou a contar com reforço dentro da chamada Operação Lagunar, também teve aumento nas ofensivas, especialmente nas regiões conflagradas. Ao longo do ano, foram apreendidas 261 armas pelos PMs em Rio Grande — é mais do que o dobro das 118 de todo o ano passado.
— Houve casos nos quais a BM fez abordagens com quatro a cinco armas apreendidas, com quadrilhas prontas para cometerem homicídios. Os PMs conseguiram, por meio da inteligência, fazer abordagem antes de eles praticarem os crimes. A perda dessas armas gera prejuízo às facções — ressalta o tenente-coronel Marcelo Nunes Ferreira, comandante do 6º Batalhão de Polícia Militar (BPM).
No mesmo período, foram retirados do tráfico pela BM cerca de 90 quilos de narcóticos. A estimativa é de que armas e drogas apreendidas pelos PMs tenham levado à perda de cerca de R$ 2,5 milhões pelos criminosos de ambos os lados da disputa. Ao mesmo tempo, os flagrantes por tráfico de drogas representaram quase um terço de pessoas presas pela BM - 302 de 936.
— Isso demonstra claramente o esforço que estamos fazendo, com operações de reforço, para não deixar que essas quadrilhas atuem tranquilamente. É resultado de uma ação insistente, de um semestre inteiro — diz o tenente-coronel.
Foco nas lideranças
Mesmo com as ações e reforços, os assassinatos seguiam crescendo em Rio Grande. Em apenas três meses, de janeiro a março, a cidade alcançou o mesmo número de todo o ano anterior: 28. O ápice ocorreu em maio, quando foram registrados 13 homicídios - no mesmo período de 2021 não tinha acontecido nenhum caso. O semestre foi fechado com 54 homicídios - 40 a mais do que o registrado de janeiro a junho de 2021.
— Estávamos com um problema na região no que tange ao estancamento. Muito embora tivesse bom índice de elucidação, os homicídios seguiam ocorrendo — explica a delegada Vanessa Pitrez, diretora do DHPP.
Indiciar os executores não estava sendo o bastante, já que muitas vezes os grupos empregavam diversos criminosos nos ataques. Houve casos nos quais a polícia identificou que bandidos da Região Metropolitana seguiam até o sul do Estado para cometer os homicídios. Em 12 de junho, foi lançada nova força-tarefa, que ao longo de um mês manteve em Rio Grande outra equipe da Capital, com foco em inteligência policial. Cinco agentes, coordenados pelo delegado Eibert Moreira, da Divisão de Homicídios, começaram a fazer um trabalho de conexão entre os casos.
O objetivo era intensificar a análise de cada crime para comprovar os vínculos entre os assassinatos, e a ligação entre os executores e os mandantes, aquelas lideranças dos grupos que seguiam ordenando as mortes de dentro da cadeia. A partir da identificação da conexão com os líderes, foi possível obter novas prisões para os chefes, ainda que já presos, tanto de uma facção como da outra, e fundamentar o indiciamento em mais seis inquéritos.
— Executores são múltiplos e arregimentados diariamente. Prendemos um hoje, amanhã tem outro. Mas quando as lideranças sofrem o peso dos homicídios, o que faz com que aumente seu tempo de prisão, acabam por determinar a suspensão desse tipo de crime. Quando tem 10 homicídios, praticados por uma organização, posso ter 10 executores respondendo por um homicídio cada, mas a liderança vai responder pelos 10 — afirma a delegada Vanessa.
Próximos passos
Para os policiais, o resultado obtido em julho é reflexo dessas ações. Dos dois casos registrados, em somente um deles há suspeita de envolvimento de facções. No bairro Cidade Nova, um casal foi alvejado na saída de uma festa. O jovem de 20 anos não resistiu e morreu, já a mulher ficou ferida de raspão. O fato é apurado pela força-tarefa, que segue atuando na Delegacia Regional. O outro se trata de um corpo localizado na Praia do Cassino, e foi encaminhado à 3ª Delegacia de Polícia.
— Consideramos que é uma redução muito significativa. O nosso principal objetivo agora, além da redução, é estabilizar. Não permitir que os números voltem a crescer — diz a delegada Lígia.
No último sábado (6), dois homens foram assassinados também no Cassino. Enquanto trabalhavam num lava-jato, foram surpreendidos por uma dupla armada.
— As ações têm que ser mantidas e aprimoradas. Nosso planejamento está em constante mudança, de acordo com a realidade. Julho foi um mês muito satisfatório, se comparar. Agora em agosto, tivemos três casos (dois homicídios e um feminicídio), acendendo o sinal de alerta. Estamos sempre nos adequando, continuamos recebendo reforço. E temos que continuar atentos e trabalhando no enfrentamento — afirma o comandante do 6º BPM, tenente-coronel Marcelo Nunes Ferreira.
A Polícia Civil ressalta a necessidade de manter o foco no mapeamento dos crimes e o acompanhamento da movimentação de lideranças e das próprias organizações criminosas. Antecipar possíveis crimes, como vinganças ou retaliações, para evitar que venham a ocorrer. A necessidade de dar sequência ao trabalho especializado na investigação de homicídios também é apontada como essencial, assim como a intervenção prisional, com transferência e movimentação de criminosos.
— Entendo que é fundamental criação de delegacia especializada, justamente para que crimes sejam apurados de forma conjunta e contínua, em razão das conexões existentes. Muitas vezes, na prática, ocorre um homicídio e ocorre outro em sequência, por vingança. Precisamos manter as mesmas ações, principalmente as voltadas à descapitalização das organizações criminosas. Também é importante que se faça consideração em razão do número muito alto de adolescentes envolvidos, tanto como autores ou vítimas. Há necessidade de algum projeto que possa retirar esses adolescentes do crime e dar outra perspectiva — avalia a delegada Lígia.