O aumento do envolvimento de adolescentes com o tráfico de drogas tem preocupado quem está ligado ao sistema de Justiça. Em Porto Alegre, por exemplo, na atual guerra de facções, pelo menos três menores de 18 anos foram apreendidos por suspeita de algum envolvimento com criminosos. Mas uma iniciativa pioneira no país pretende reverter esse cenário.
Por meio da arte, da cultura e da música, o projeto Partiu Aula na Justiça busca estimular adolescentes em conflito com a lei ao senso crítico e à reflexão sobre os atos praticados. A iniciativa é do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), em parceria com o Ministério Público (MP) e o Ministério Público do Trabalho (MPT) e apoio da Defensoria Pública do Estado.
Nessa primeira edição, 120 adolescentes foram selecionados para o projeto que busca a ressocialização. Eles são divididos em 12 turmas com 10 menores e participam, durante o período de um ano, de quatro encontros no auditório do Centro Integrado de Atendimento da Criança e do Adolescente (Ciaca), em Porto Alegre, e um em local externo que execute atividade cultural. Aqueles adolescentes que aceitam participar tem o processo suspenso. Se concluir o projeto, poderá ter a ação extinta. Se não seguir, o processo continua.
O Partiu Aula na Justiça tem à frente, no contato direto com os adolescentes, o rapper Rafael Diogo dos Santos, o Rafa Rafuagi, 33 anos. Ele completa, em 2022, 20 anos de atuação artística e social em âmbito nacional e internacional.
— Vai ser uma experiência que eles vão poder vivenciar com gente como eles, que vieram de territórios periféricos, mas que fizeram realmente diferença no seu território a partir de um movimento cultural — destaca Rafa.
Podem participar do projeto adolescentes em conflito com a lei que estejam em liberdade. São casos de envolvimento com o tráfico de drogas e atos infracionais relacionados, como porte de arma, receptação e furto, por exemplo. A seleção dos participantes é feita pelos órgãos que fazem parte do projeto. Ninguém é obrigado a participar.
Pelo Judiciário, quem comanda a iniciativa é o juiz Charles Maciel Bittencourt. Designado para o projeto Justiça Instantânea da Infância e Juventude de Porto Alegre, o magistrado conta que se discute há anos formas e alternativas que possam introduzir novas oportunidades para os adolescentes que acabam tendo algum conflito com a lei.
— Nosso público, lamentavelmente, é de adolescentes que não concluem o Ensino Fundamental, que acabam se envolvendo em atos infracionais, não têm oportunidades e não são vistos pela sociedade. E muitas vezes são vistos de outra forma. Não há ninguém para escutar a história de cada jovem — relata o juiz.
GZH esteve no Ciaca e acompanhou uma das aulas do projeto. Tímidos, os adolescentes acompanhavam com atenção as atividades passadas por Rafa. Na sala, uma música de autoria dos próprios adolescentes estava sendo criada. Entre uma frase e outra, eles se alimentavam com lanche oferecido no local.
— A educação, a cultura e a própria arte trazem efetivamente algumas questões de reflexão e desenvolvimento de senso crítico. É que nem sempre existem projetos para oportunizar a esses jovens vulneráveis esse modo de pensar e viver diferente — diz Bittencourt.
O projeto tem o objetivo de evitar que esses adolescentes voltem ao tráfico de drogas. Por isso, é oferecido e aplicado em menores primários, ou seja, que tiveram o seu primeiro conflito com a lei.
O Partiu Aula foi criado por Rafa em 2013 e já atingiu mais de 30 mil jovens, sendo executado na Justiça pela primeira vez. A iniciativa contribui para mediação de conflitos em escolas públicas. Ou seja, na relação entre educador e educando. Em 2019, ganhou um prêmio da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
— Uma das atividades que a gente faz é o Dicionário do Esquecimento. É uma prática que o Boaventura de Souza Santos, junto com o rapper Renan Inquérito, criou, e que eu tenho replicado por ter estudado em 2018 na Universidade de Coimbra, em Portugal. É uma dinâmica que a gente ressignifica expressões, conceitos, palavras e a partir disso consegue fazer essa questão introspectiva. De como a gente ressignifica essa situação que a gente está vivenciando. E a partir dela se cria uma nova possibilidade — sublinha Rafa.
Morador de Charqueadas, um participante do projeto, de 16 anos, falou com GZH e contou que entrou para o tráfico por curiosidade e para ajudar no sustento da família.
— A gente vai olhando e vai tendo curiosidade. É uma maneira de ganhar dinheiro — relata ele, que vai ter o nome preservado devido ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Sobre a adesão ao projeto, disse que as aulas o fazem refletir mais sobre a própria vida. Ele parou de estudar no 8º ano do Ensino Fundamental e afirma que pretende retornar o quanto antes os estudos.
— E quero arrumar um serviço, um trabalho. E ficar bem. Tenho de me endireitar, não adianta — relata o adolescente, que mora com a mãe, que é faxineira, e os dois irmãos mais novos.
Morador do bairro Restinga, na zona sul de Porto Alegre, um jovem, de 19 anos, entrou para o tráfico como a maioria: acabou virando “avião”— aqueles que entregam os entorpecentes ao consumidor.
— Entrei por necessidade. Sem dinheiro, sem comida em casa, acabei indo (para o tráfico) — conta.
Ele mora com o pai, que é pedreiro, com a mãe, que atua como doméstica, e com a irmã, que é estudante. Parou de estudar por causa do tráfico. Interrompeu no 1º ano do Ensino Médio. Diz que pretende retomar a rotina escolar. Afirma que o Partiu Aula na Justiça tem sido fundamental para sua mudança de comportamento.
— É uma alternativa para quem não está tendo oportunidade no momento. Que siga em frente o projeto por muitos anos. A minha ideia é nunca mais voltar para o tráfico — relata.
Dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado, Andreia Paz Rodrigues lembra que muitos desses adolescentes que cometeram atos infracionais são também vítimas de violações de direitos.
— Precisamos ter um olhar mais humanizado, acolhedor e estender a mão para esses adolescentes. E é justamente isso que o projeto busca: dar oportunidades para quem não teve — ressalta a defensora pública.
O juiz Bittencourt também cita que o tráfico de drogas também é uma forma de trabalho infantil:
— Todos nós sabemos que o tráfico de drogas é uma das piores formas de trabalho infantil que nós temos no mundo. Os adolescentes, numa pseudoilusão que muitos chamam de vida louca, acham que aquela ali é a forma de pertencimento único da vida. Alguns, mesmo com condições econômicas, vão para se sentir pertencidos. Mas a massa efetiva vai por necessidade concreta de ter uma mínima subsistência e, às vezes, manter a família.
A procuradora do trabalho Aline Zerwes Bottari Brasil reforça:
— Esse projeto foi construído a várias mãos, pensando em tirar esses jovens da realidade do crime e das piores formas de trabalho infantil e adolescente, com a possibilidade concreta de mudança de suas realidades através da arte e da cultura.
O promotor de Justiça da Infância e Juventude, Rogério Roque Weiller, projeta que será possível colher resultados positivos do projeto.
— Com redução da reiteração infracional, evitando-se assim a necessidade de imposição de medidas socioeducativa de meio aberto ou com privação de liberdade — acredita Weiller.
O Partiu Aula na Justiça quer ser uma alternativa às medidas existentes hoje para adolescentes que cometem atos infracionais previstas no ECA, que são: liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade, semiliberdade, internação com a possibilidade de atividade externa e internação sem possibilidade de atividade externa.
— Alguns acham que a vida deles é exatamente aquilo, que nunca vai mudar. Inclusive eles têm uma ideia de que não terá amanhã. Podem até morrer amanhã. Vivem o dia, o presente. Eles não chegam a cogitar que o mundo poderia ser diferente, porque a realidade deles é muito triste, difícil, complexa, repleta de carências afetivas, emocionais e materiais. E sem oportunidade nenhuma, de nada — finaliza o juiz Bitencourt.