Um estudo inédito feito pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) revelou que a quantidade de cocaína presente em amostras apreendidas no Estado em 2021 variou de 0% a 78%. Ou seja, havia porções sem nada de cocaína, apenas adulterantes.
Conforme a chefe da Divisão de Química Forense do Departamento de Perícias Laboratoriais, Lara Soccol Gris, para ser considerada pura, livre de outros intoxicantes, a porção vendida comercialmente teria de ter entre 98% e 100% de cocaína, o que não é comum de ser encontrado.
— Por não saber exatamente o que está comprando, e diante da grande variabilidade de concentrações constatada, podemos dizer que os usuários estão gravemente expostos ao risco de intoxicações e de overdose — diz Lara, que é coorientadora do trabalho realizado em parceria com a Ulbra.
Em fevereiro, o caso de dezenas de pessoas intoxicadas e, pelo menos, 24 mortas na Argentina depois do consumo de cocaína adulterada deixou autoridades em alerta. Jornais locais, que tiveram acesso a laudos de análise da droga, divulgaram que foi encontrado no material o Carfentanil, um opioide de uso veterinário.
A substância é usada para anestesiar elefantes. O produto é tão perigoso que há orientação da DEA, a agência americana de combate às drogas, para que policiais não façam o manuseio da droga se houver suspeita da presença do opioide.
— Não se sabe o que pode estar sendo misturado na cocaína. Temos cada vez mais apreensões de drogas sintéticas. Seria um alto risco se fossem misturadas à cocaína — destaca a perita Lara.
O estudo conduzido no IGP virou trabalho de conclusão do curso de Química Industrial da Ulbra, de autoria de Bárbara Rodrigues Cerveira, que é técnica em perícias do IGP. O instituto mantém convênios com universidades, o que permite a produção de trabalhos em conjunto e com troca de experiências.
A pesquisa, segundo o IGP, pode ajudar a área da segurança pública a conhecer melhor a sistemática de trabalhos das facções que atuam na venda de drogas, além de servir como ferramenta de alerta à saúde pública. Foram analisadas 141 amostras de apreensões no Estado.
Os resultados revelaram que há grande variabilidade na presença da cocaína nos materiais apreendidos, sendo que a maior disparidade de concentrações foi identificada em apreensões da Região Metropolitana: apenas 30% possuíam mais do que 40% de cocaína em sua composição. Em Porto Alegre, das 54 amostras analisadas, 35 tinham menos de 50% de teor de cocaína.
No material de Gravataí, nenhuma das 10 amostras apresentou mais do que 40% de cocaína na composição. Em Canoas, apenas uma porção tinha mais do que 50% da droga pura. Em uma das análises foi constatado que a amostra tinha 0% de teor de cocaína, ou seja, o produto vendido como cocaína era, majoritariamente, composto por tetracaína.
Quando o cenário é o Interior, a baixa concentração da droga no material apreendido se repetiu. Na Região Oeste, a média aproximada do teor de cocaína ficou entre 15 e 35%, na Região Norte, de 16 a 40% na Região Central, entre 13 e 42%, e na Região Sul, o teor de cocaína nas amostras ficou entre 14 e 41%.
— Acreditamos que a cocaína já chega ao Estado adulterada em algum grau. Porém, como existem muitas facções atuando e o objetivo final do tráfico é o lucro, a cocaína é mais adulterada ainda ao chegar aqui. A pesquisa pode contribuir para a identificação dessas rotas do tráfico — diz Lara.
Em 2021, o IGP analisou mais de 54 mil amostras de drogas, provenientes de todo o Estado. De acordo com dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública, no ano de 2020 foram registradas 143,8 mil ocorrências relacionadas ao tráfico e uso de drogas no Brasil. Destas, 13,4 mil são do Rio Grande do Sul.
Conforme o IGP, o estudo realizado é o mais recente publicado por órgãos periciais oficiais no Brasil e um dos maiores já realizados se tratando do perfil de cocaína.
Os riscos à saúde
Além de mapear o grau de impureza da cocaína vendida no Estado, o estudo também identificou as substâncias usadas para fazer a droga render mais. Em todas as 141 amostras analisadas havia modificação.
Em 42 delas, foram encontrados cinco adulterantes diferentes: cafeína, lidocaína, tetracaína, orfenadrina e benzocaína.
Segundo o IGP, os adulterantes orgânicos geralmente possuem propriedades anestésicas e estimulantes, agindo sobre o sistema nervoso central, alterando o estado mental e autocontrole do indivíduo e diminuindo a percepção de responsabilidade do usuário por suas ações.
— Esse tipo de adulterante mimetiza as características da cocaína, muitas vezes o usuário não percebe a diferença. Na Região Metropolitana, 62% das amostras estavam adulteradas com cafeína, o adulterante com maior presença. Em seguida vem a lidocaína, encontrada em uma a cada cinco análises. Esse trabalho também serve como alerta para os perigos do consumo da droga — explicou a técnica em perícias Bárbara.
Saiba mais sobre os adulterantes orgânicos
- Cafeína: É um estimulante do sistema nervoso central. Se consumida em grandes quantidades, possui efeitos indesejáveis como distúrbios de sono e humor, constante estado de alerta, ansiedade, inquietação e irritabilidade, levando o indivíduo à dependência. O adulterante é o mais usado, possivelmente por ser de baixo custo e fácil acesso se comparado aos anestésicos em geral.
- Lidocaína, benzocaína e tetracaína: São anestésicos utilizados em clínicas para pequenos procedimentos e cuidados pós-cirúrgicos. Se administrados em grandes quantidades, podem provocar desde efeitos como tontura, distúrbios visuais, sonolência, vômito, cianose, síncope, convulsões, além de efeitos cardiovasculares como bradicardia, fibrilação arterial e arritmias, coma e até morte.
- Orfenadrina: É um relaxante muscular. Dentre seus efeitos adversos mais comuns estão ataxia, distúrbios da fala, taquicardia, midríase (dilatação da pupila), tontura, alucinações e sonolência.
Fonte: Instituto-Geral de Perícias
Origem das 141 amostras analisadas
Região Metropolitana (Porto Alegre, Canoas, Viamão, Gravataí): 97
Região Sul (Rio Grande): 17
Região Norte (Erechim): 11
Região Central (Santa Maria): 10
Região Oeste (Uruguaiana): 6