Uma discordância de entendimento entre Polícia Civil e Brigada Militar sobre como foi feita a prisão do policial que matou o colega na noite da última segunda-feira (1º) motivou a divulgação de notas públicas expondo atritos entre entidades que representam delegados e oficiais da BM. A discussão estava restrita aos bastidores das instituições desde terça-feira (2), mas se tornou pública com comunicado da Associação dos Delegados de Polícia do RS (Asdep), divulgada na manhã de quinta-feira (4), que provocou resposta da Associação dos Oficiais da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar (Asofbm) horas depois.
A dissonância de interpretações envolve a ação que aconteceu 18h30min de segunda-feira, quando os soldados Fabio José Portela de Souza Freitas, 34 anos e Lucas Oliveira, 37 anos, em horário de folga, conversavam em frente a uma loja, ao lado de um HB20. Ambos foram abordados por uma dupla de criminosos que começou a disparar. Com a troca de tiros, Oliveira entrou no veículo e Freitas se escondeu atrás do carro. Com os tiros dados por Oliveira de dentro do HB20, a dupla fugiu. Oliveira foi para trás do carro ver o colega, quando foi atingido por ele com um tiro na cabeça. Freitas correu do local, foi preso pela BM e não foi apresentado na Polícia Civil.
Na sua nota, a Asdep classificou como equívoco os oficiais da BM terem prendido o policial logo após o homicídio. A entidade entende que, sob a justificativa de serem policiais militares, a detenção desobedeceu "a legislação penal e processual em vigor" por levar o PM até o quartel, quando, para a Asdep, deveriam apresentá-lo "como qualquer infrator" à Polícia Civil para "regular investigação criminal". Para a entidade, a BM agiu com "total desrespeito à legislação pátria e à constituição federal." A nota também aponta que a BM desobedeceu a ordem judicial posterior que determinou que o PM e a arma usada no crime fossem apresentados no Palácio da Polícia.
— É um crime comum de atribuição do delegado. Era um PM de folga, que não estava em exercício e que matou outro militar que estava afastado administrativamente. Não preenche nenhum dos requisitos do código de processo militar. No momento da prisão, ele deveria ter sido apresentado na DPPA. O oficial que autuou em flagrante presumiu que era crime militar, por ser um militar que matou outro militar. A Asdep não podia se omitir — afirma o presidente da entidade, delegado Fernando Soares.
A resposta da Asofbm não demorou e manteve o mesmo tom. O texto diz "repudiar oportunismo midiático assumido, no caso, pela Polícia Civil, que não possui competência de polícia judiciária militar". A nota cita 16 decisões com jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF) entre 1997 e 2021 que amparam a conduta da BM. E duas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2017 no mesmo sentido.
A entidade militar sugere que disciplinas de Justiça Castrense se tornem obrigatórias em todos os certames de seleção pública das forças de segurança do RS. E afirma que a divergência de entendimento se deve "ao que tudo indica, o total desconhecimento acerca da matéria acaba por ensejar manifestações públicas que colidem com a Constituição, a Lei e a Jurisprudência, além de não contribuírem com a regular elucidação do fato investigado", afirma o documento assinado pelo presidente da Asofbm, coronel Marcos Paulo Beck.
As opiniões dos comandantes
Em conversa com GZH, os chefes das duas instituições – BM e Polícia Civil – baixaram a temperatura da discussão e afirmaram que o caso não afetará a integração das polícias gaúchas – considerada um dos pilares para a queda dos indicadores criminais no RS.
O comandante-geral da BM, coronel Vanius Santarosa, preferiu não opinar sobre o mérito da divergência e ressaltou que o episódio não altera a sinergia entre as duas instituições:
— A BM reafirma a parceria de integração que tem reduzido constantemente os indicadores criminais e tanto beneficiado a comunidade gaúcha. Esse fato não afeta essa relação harmoniosa que vem acontecendo há alguns anos.
Na leitura da chefe de Polícia, delegada Nadine Anflor, a divergência é jurídica, e não entre as polícias:
— Isso não vai ferir a integração e o trabalho em conjunto. Na nossa concepção, há crime doloso contra vida com atribuição da Polícia Civil investigar. Não há crime militar no caso. Mas isso, em nenhum momento, vai impedir a troca de informações entre as instituições. A divergência jurídica será resolvida no âmbito do Poder Judiciário.
As decisões judiciais das justiças Estadual e Militar
As interpretações antagônicas se estendem às justiças Estadual e Militar. Ambas entendem que têm competência para julgar e processar o soldado Fábio José Portela de Souza Freitas. A pedido do 20º BPM, a prisão do PM foi homologada pela juíza militar Karina Dibi Kruel do Nascimento na terça-feira (2). A juíza entendeu que o flagrante "está formalmente correto". A interpretação da BM é de que se não fosse crime militar – independente de ambos estarem de folga –, a juíza teria declinado da competência já no momento da homologação do flagrante.
A BM reafirma a parceria de integração que tem reduzido constantemente os indicadores criminais e tanto beneficiado a comunidade gaúcha. Esse fato não afeta essa relação harmoniosa que vem acontecendo há alguns anos.
CORONEL VANIUS SANTAROSA
Comandante-geral da BM
Na audiência de custódia, realizada na quarta-feira (3), a juíza militar Dione Dorneles Silva determinou que a Polícia Civil fosse oficiada a entregar o aparelho celular apreendido com a vítima, o soldado Lucas Oliveira _ o que, por enquanto, não foi atendido pela Polícia Civil. Também pediu que a Justiça Estadual declinasse da competência de julgar e processar o PM.
As decisões na Justiça Militar e Estadual aconteceram ao mesmo tempo. Também na terça-feira, atendendo pedido da Polícia Civil, a juíza estadual Quelen Van Caneghan determinou que a BM apresentasse, imediatamente, o PM preso na Delegacia de Pronto-Atendimento (DPPA), com a arma utilizada no crime. E também pediu "o trancamento de eventual inquérito policial militar lavrado."
A magistrada argumentou que "não se trata de delito de competência da Justiça Militar, haja vista que, tanto a vítima quanto o demandado, não estavam em serviço no momento do crime, o que atrai a competência do Tribunal do Júri." Até o momento, o BM não cumpriu a decisão.
Caso foi parar no STJ
Em decisão da quinta-feira (4), o juiz Roberto Coutinho Borba autorizou quebra do sigilo dos dados contidos no aparelho de telefone pertencente ao soldado Lucas Oliveira. E reafirmou a determinação de interrupção do IPM.
Isso não vai ferir a integração e o trabalho em conjunto. Na nossa concepção, há crime doloso contra vida com atribuição da Polícia Civil investigar. Não há crime militar no caso. Mas isso, em nenhum momento, vai impedir a troca de informações entre as instituições. A divergência jurídica será resolvida no âmbito do Poder Judiciário
NADINE ANFLOR
Chefe de Polícia
Como a Justiça Estadual e Justiça Militar entendem que são competentes para julgar o caso, o juiz remeteu os autos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para decisão de quem deve ficar com processo.
— Agora, o STJ vai determinar com quem vai continuar esse processo. Esperamos que entendam que a competência seja nossa. São dois militares. Esse é um procedimento de rotina e tem farta jurisprudência. Penso que essa decisão deve ser rápida, até porque tem um preso. Em tese, até o STJ se manifestar, todas as cautelares do caso ficam suspensas. Agora, se o advogado entrar com habeas corpus, quem vai decidir? Temos de esperar o STJ — opina o desembargador militar do Tribunal de Justiça Militar (TJM), coronel Paulo Roberto Mendes Rodrigues.
GZH também consultou o Tribunal de Justiça do Estado sobre como ficam as decisões cautelares do caso até decisão do STJ e aguarda retorno.
A indefinição jurídica dificulta a investigação da Polícia Civil. Os agentes que atuam no caso trabalham com possibilidade de homicídio doloso – quando há intenção de matar – e emboscada, mas até agora, não tiveram acesso ao celular e a arma usada pelo soldado preso. Segundo os investigadores, os objetos são fundamentais nessa fase do inquérito e necessários para comprovar – ou descartar – a hipótese de o PM ter alguma relação com os dois homens que deram início ao tiroteio.
O que diz a defesa do PM:
À frente da defesa do soldado Freitas, o advogado David Leal entende que a atribuição do caso é da Polícia Civil e que cabe à Vara do Júri processar e julgar o fato. A defesa também questionou o STJ para que defina qual a Justiça competente para atender o caso.
— O que a BM fez foi um atropelo, sem observar entendimentos anteriores de caso de PM que acaba matando PMs não estando em serviço nem usando arma da instituição. Concordo com posicionamento da Asdep, mas discordo que tenha havido dolo ou vontade no ato do meu cliente. Eram dois amigos, não concordamos com a hipótese de emboscada. Essa briga institucional acaba comprometendo e prejudicando meu cliente, que responde ao inquérito.