A nomeação do ex-detento e pastor evangélico Lacir Moraes Ramos, 62 anos, para um cargo de confiança no governo do Estado causou polêmica durante o final de semana. Lacir, que no passado era conhecido como Folharada, um dos criminosos mais perigosos do Rio Grande do Sul, também é reconhecido hoje pelo currículo de trabalhos na recuperação de presos.
Entrou na cadeia em 1978 e saiu em 2007, por meio de indulto. Pagou, perante a lei, por seus crimes. Desempregado há dois anos, pediu trabalho e foi nomeado, mas ainda não sabe se vai poder exercer a função. O sindicato dos servidores penitenciários emitiu nota criticando a indicação.
Diante da repercussão negativa, autoridades se mobilizaram em favor da contratação. O ex-juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC) Sidinei Brzuska tem uma definição objetiva para o pastor:
— É a única pessoa que pode andar dos dois lados da grade.
Ou seja: fora e dentro das galerias. Lacir conversou com GZH na tarde desta segunda-feira (11).
Como surgiu sua indicação a um cargo no governo. Foi ideia do secretário Ronaldo Nogueira?
Não, eu que solicitei. Estou desempregado há dois anos. Vou fazer 63 anos, não tenho casa, tenho família e quatro lindas filhas, moro em uma casa da igreja. Ele sabendo disso, e eu pedindo trabalho. Ele disse: "olha, Lacir, não estou conseguindo, mas vou ver se consigo algo que tu ganhe um ou dois salários para te ajudar". Demorou seis meses.
Como foi a aprovação?
Eu apresentei 23 certidões negativas de tudo que é setor da sociedade para entrar no governo. Parecia até que eu era candidato a presidente da República. Apresentei toda a documentação e passou. Sou ficha-limpa. Mas tem muita gente em altos escalões que é ficha-suja, e a sociedade continua votando nessas pessoas. E a sociedade ainda quer cobrar de mim pelos crimes que cometi.
O senhor pagou por seu crimes.
Paguei. Lógico que a vida de uma pessoa ninguém paga. Nem com a pena de morte eu conseguiria pagar as coisas ruins e negativas que fiz, que reconheço, não nego. Sempre fui uma pessoa revoltada. Sou do Interior, entrei com 19 anos (na prisão) e fui sair agora, em agosto de 2007. Tive que fugir cinco vezes. Eu não era ladrão, sou colono, de família honesta. Foi por causa do furto de um fusquinha, nem fui eu que furtei, um amigo me convidou para dar uma volta e fomos presos. Fui condenado a seis anos e meio. Eu que não era do crime. E, dentro do sistema, sofri tudo de coisas mais terríveis. Quando chegava no Presídio Central, os próprios funcionários vendiam os presos novos para ser mulher dos mais velhos.
Apresentei toda a documentação e passou. Sou ficha-limpa. Mas tem muita gente em altos escalões que é ficha-suja, e a sociedade continua votando nessas pessoas
Como o senhor se defendeu?
Eu me tornei um criminoso, um bandido, para não ser mulher de bandido. Quando entrei para a galeria, entrei tipo uma fera enfrentando as feras, para manter minha integridade de homem. Isso a sociedade não sabe, a Justiça não sabe, as pessoas que estão criticando não sabem. Claro que essa turma que está agora na Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários) é muito boa. Mas tem esse pessoal do sindicato que não representa a maioria.
O senhor deu curso na Susepe?
Sim, sou uma pessoa benquista no sistema. Dei palestra no curso de formação de 500 agentes, dei uma palavra para prepará-los para enfrentarem o dia a dia dos presídios, uma palavra motivacional e de experiência para eles na área do tratamento penal, do tratamento dos direitos humanos, pois isso tudo está na Constituição Federal, artigo 5º. E depois, na formatura deles, fui chamado pelo secretário (de Segurança) Airton Michels para dar um testemunho. E agora esse pessoal do sindicato fica me criticando.
Como o senhor tem vivido sem emprego há dois anos?
Eu e minha esposa pegamos covid-19. Minha esposa começou a trabalhar há dois meses. Vivo de doações. Hoje mesmo, antes de ir lá no Palácio Piratini, estava lá na igreja matriz da Assembleia de Deus para pegar uma cesta básica. Uma pessoa com meu perfil, se não era para eu estar empregado, não era para os governos terem se preocupado comigo. Tu acha que alguém veio perguntar se eu precisava de alguma coisa a não ser o pessoal da igreja? Me converti há 31 anos e criei uma igreja dentro da PEJ (Penitenciária Estadual do Jacuí). Estou vivendo de migalhas.
O secretário demorou seis meses para conseguir sua indicação?
Sim. Imagina, ele que é uma pessoa reconhecida em nível nacional teve toda essa dificuldade. E quando me colocou, quiseram me largar no buraco.
O senhor acredita ser um exemplo para outros ex-detentos?
Sim. Esses caras que estão no sistema, não importa facção ou crime, muitos têm se recuperado através de minhas palestras. Faço encontros de ex-presidiários, visito as casas, procuro ajudar na medida do possível, reparto meu pão, reparto o que não tenho. Era para eu ser uma pessoa que os governos deviam estar em cima. Eu sei o que fazer para transformar o sistema prisional. Não é o tratamento penal da Susepe que transforma a vida dos presos.
Faço encontros de ex-presidiários, visito as casas, procuro ajudar na medida do possível, reparto meu pão, reparto o que não tenho. Era para eu ser uma pessoa que os governos deviam estar em cima
O que transforma?
É a igreja. Os governos sabem disso. Fui chamado pelo ministro Sergio Moro (então titular da pasta da Justiça e Segurança Pública) para entrar na Penitenciária de Alcaçuz (Rio Grande do Norte), onde decapitaram presos. Entrei para dar palestra para integrantes de facção, passei o dia lá. Depois, me chamaram no Amazonas, tudo a serviço do Departamento Penitenciário Nacional. O diretor do Depen na época, um delegado da Polícia Federal, me chamou para ficar uma semana lá fazendo um trabalho no departamento. Depois, participei de reunião com todos secretários de Segurança do Brasil, e o diretor pediu que eu fosse nas principais penitenciárias de todas as capitais para palestrar. Tinha recebido até diárias e roteiro, mas começou a pandemia. Aqui no Rio Grande do Sul eu passo diariamente nas prisões.
Como é seu trabalho nas prisões no Estado?
Os diretores dos presídios, quando vai sair um preso que não tem ninguém, ligam para mim. Eu dou um rumo para a pessoa. Isso é um serviço de Estado! E eu, sem dinheiro, fazendo um trabalho voluntário. Gosto de fazer, porque sofri muita injustiça. Acredito que não existe ser humano irrecuperável. Sou íntegro, sério, responsável e honesto. Não entrei para o crime porque tinha índole criminosa. Entrei para a desgraça do banditismo por causa do próprio sistema. E alguma coisa desse passado ainda existe hoje, por isso não vai para frente e nunca muda o sistema.
Muitos têm dúvida sobre a conversão dos presos, se realmente estão largando a vida de crimes.
Meu trabalho não é passar a mão na cabeça de bandido. Sou respeitado, entro e entrego minha mensagem, meu abraço. Pergunto: quem é malandro, o servente de pedreiro ou vocês que estão aqui? O servente de pedreiro trabalha de segunda a sábado, com a mão cheia de calos. Mas no sábado e domingo, enquanto vocês estão aqui, o servente está em casa, tomando chimarrão, fazendo churrasco com os filhos em volta. E vocês estão aqui. Tem que mudar a vida. Podem perder a vida na mão de um colega. No crime não tem amigo. Dou uma mensagem impactante.
Com a repercussão a sua nomeação, o senhor pediu que o secretário Nogueira retirasse a indicação. Por quê?
Pedi para secretário tirar meu nome, não posso prejudicar a carreira da pessoa que quer me ajudar. Tenho honra. Falei com o secretário para tirar minha indicação e disse que acredito que tudo isso pode se reverter para o meu bem. Ano que vem é de eleição, todos vão concorrer. O próprio governador. Ele nem me conhece, mas espero que o governador me chame, não para tratar do trabalho, mas para tratar do sistema prisional. Tem que chamar a pessoa que conhece.
Ano que vem é de eleição, todos vão concorrer. O próprio governador. Ele nem me conhece, mas espero que o governador me chame, não para tratar do trabalho, mas para tratar do sistema prisional
E como foi a reunião no Piratini, o que lhe disseram?
Que se meu nome cumprir todos requisitos que a legislação exige não teria problema. A nota que o governo emitiu reconheceu que sou uma pessoa com bom currículo, tem as coisas negativas, mas que não podem ser faladas porque já paguei por elas. Ganhei indulto, fiz o pedido, mas todos os ex-diretores por onde passei assinaram, endossaram e eu mandei para o presidente da República. Mas reafirmei ao secretário (Nogueira) que deveria retirar meu nome da indicação.
Se a decisão do governo for de não contratá-lo, que mensagem o episódio deixa para o senhor?
Para mim, o pior foi a nota (do sindicato dos servidores penitenciários). Fiquei de luto. Triste, pois são pessoas que deveriam trabalhar na recuperação, na ressocialização, ou na socialização, porque tem muitos presos que nem socializados foram, são analfabetos de pai e mãe. A repercussão grande está nas redes sociais, gente dizendo que tem que matar (apenados). Num curso que palestrei para agentes, tinha 200 lá e eu perguntei quantos eram a favor da pena de morte. Uns seis levantaram a mão. Eu disse, pode baixar a mão, vou derrubar essa tese hoje. E disse: você deseja a pena de morte enquanto não é tua mãe ou uma filha que está lá. Tu só vai ser a favor da pena de morte quando for o outro, o que se diz bandido no banco dos réus. E a princípio, quem tem esse sentimento, não pode trabalhar com preso. Num presídio tu vai trabalhar para ressocializar ou socializar.