A Polícia Civil enviou ao Judiciário nesta quinta-feira (1º) o inquérito que investiga a morte de quatro homens da mesma família por um policial militar na madrugada de 13 de junho dentro de uma pizzaria na zona norte de Porto Alegre. A investigação concluiu que o soldado de 25 anos agiu em legítima defesa e, por isso, não irá responsabilizá-lo pelas mortes. O caso agora será analisado pelo Ministério Público.
Embora os laudos com a localização dos disparos no corpo das vítimas ainda não tenham sido concluídos pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP), o titular da 5ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegado Gabriel Lourenço afirma que as imagens da pizzaria e os depoimentos demonstraram que o policial buscou evitar o confronto:
— Ele usou o único meio que possuía para repelir aquela injusta e iminente agressão. O crime é entendido como fato típico, ilícito e culpável. Matar alguém é crime, mas se tiver abarcado no excludente de ilicitude, devido a legítima defesa, deixa de ser crime.
Na madrugada de 13 de junho, o PM retornava de uma festa em Alvorada, na Região Metropolitana, quando, por volta das 5h, entrou na casa família Lucena, no bairro Morro Santana, procurando pela ex-namorada. No local acontecia uma confraternização. O soldado alega que chegou na casa para verificar se a ex-companheira estava lá, já que uma amiga dela morava na mesma rua. Ao entrar, ele não disse o nome da pessoa que procurava. Dentro do local, iniciou-se um desentendimento. A família alega que ele deu três tapas nas costas de uma das mulheres, o soldado nega. O PM correu e buscou abrigo em uma pizzaria delivery, na Avenida Manoel Elias. Seis pessoas da família foram atrás dele.
Dentro do estabelecimento, o PM se abrigou em um banheiro. Imagens de câmeras internas flagraram a ação e mostram o policial se escondendo do grupo e sendo seguido por quatro homens e duas mulheres. Com a porta do banheiro entreaberta, o policial visualiza o grupo chegando. Um dos homens, Christian Lucena Terra, 33 anos, para no corredor em frente à porta e abre os braços para os demais familiares não passarem por ele. Alexsander Terra Moraes, 26 anos, no entanto, furou esse bloqueio, foi em direção ao soldado e abriu a porta do banheiro, quando foi alvejado. Os outros três homens foram mortos em sequência enquanto as duas mulheres se afastaram e não se feriram.
É só observar as imagens que fica claro. A partir do primeiro disparo os outros continuam indo em direção ao policial militar. Se eles tivessem corrido, eles não teriam sido alvejados
GABRIEL LOURENÇO
5ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP)
As vítimas são os irmãos Christian e Cristiano Lucena Terra, 38 anos, o sobrinho deles, Alexsander, e o primo Alisson Corrêa Silva, 28 anos. Nenhum deles tinha antecedentes criminais.
Durante a investigação, a polícia ouviu 10 pessoas, entre elas as duas mulheres que acompanhavam as quatro vítimas, dois funcionários da pizzaria, a ex-namorada do PM — que era quem ele procurava ao entrar na casa da família Lucena — e amigos do soldado. A ex-namorada confirmou que tinha uma amiga que morava próximo ao local onde começou a discussão. Disse que teve um relacionamento com o PM por três anos e que estavam separados desde o ano passado. Segundo ela, ambos não se falavam há meses.
Os investigadores analisaram os vídeos da pizzaria, e também tiveram acesso a outras imagens da área externa. Porém, em razão da falta de luminosidade, o delegado afirma que não traziam informações relevantes. Os laudos do IGP, quando concluídos, serão remetidos direto ao Judiciário.
— Diante do que nós coletamos e das imagens, os laudos não fariam uma diferença significativa. É só observar as imagens que fica claro. A partir do primeiro disparo os outros continuam indo em direção ao policial militar. Se eles tivessem corrido (no sentido contrário), eles não teriam sido alvejados, que foi o que as mulheres fizeram.
Questionado por GZH se o policial cometeu algum excesso pela quantidade de disparos, o delegado argumenta que entende que não, devido ao espaço físico onde as mortes aconteceram:
— Ali ele não tinha muito ângulo (para tiro de contenção), o espaço era muito pequeno. E demonstramos isso no inquérito, no relatório de imagens, não dá para gente analisar friamente, de dentro de um gabinete, o que se passava naquela situação, em que quatro homens, de compleição física grande, estavam indo em direção a ele com gritos de ameaça. É complicado julgar o disparo e dizer que poderia ter sido no pé. Com pouco ângulo, ele fez o que ele podia e que estava ao alcance dele pra se safar. Essa análise de que poderia ter sido efetuado disparo no pé, acredito que não teria surtido efeito. O primeiro disparo não foi capaz de fazer com que o grupo se retirasse.
O advogado que representa a família Lucena, Ismael Schmitt afirma que as vítimas pretendiam tirar satisfação com o PM por ele ter invadido a casa durante a festa e que não tinham a intenção de agredi-lo. Também afirma que os tiros foram nas mãos e no rosto dos quatro homens.
— Aquilo em hipótese alguma se configura em legítima defesa. O autor dos disparos é treinado, é policial e estava embriagado, e foi para o corredor (da pizzaria) que virou uma verdadeira armadilha. O luto da família nunca vai passar, mas o sentimento de abatimento vai se transformar em força para lutar por justiça. Não queremos só o afastamento dele das atividades policiais, mas a prisão preventiva. O crime foi violento, ele não pode estar na rua defendendo a sociedade. Não pode ter uma arma perto dele.
Aquilo em hipótese alguma se configura em legítima defesa. O autor dos disparos é treinado, é policial e estava embriagado, e foi para o corredor (da pizzaria) que virou uma verdadeira armadilha.
ISMAEL SCHMITT
Advogado da família
Um dos amigos que acompanhavam o PM na boate em Alvorada disse à polícia que ele não consumiu bebida alcoólica naquela noite pois era o motorista da rodada. A GZH, o PM disse que bebeu refrigerante com energético. Após as mortes, o soldado não foi submetido a teste de bafômetro ou exame toxicológico. No entendimento do delegado, mesmo se tivesse ingerido álcool, não seria o suficiente para afastar a tese de legítima defesa:
— É importante destacar que o direito não prevê direito de vingança. A família teria tentado se vingar quando foi em direção ao policial, tirar satisfação. E isso não tornaria essa agressão justa.
Desde 2018 na BM, o soldado é integrante do 20º Batalhão de Polícia Militar (BPM) e está afastado das funções enquanto sua conduta também é analisada em um Inquérito Policial Militar (IPM). Para o advogado de defesa do soldado, David Leal, o PM não praticou crime e agiu para defender a própria vida.
— Nosso cliente agiu como cidadão comum, não como policial. Ele foi colocado numa situação que teve que agir para defender a própria vida. Ele presumiu que tirariam a arma dele e ele seria morto. Confiamos que agora também MP e o Judiciário tenham o mesmo posicionamento, que entendam não haver prática de crime.