“Aqui entra o homem e o delito fica lá fora.” A frase grafitada em cima da porta de entrada do pavilhão de regime fechado da Apac Porto Alegre não é por acaso. O objetivo desse método de ressocialização dos presos é justamente dar uma outra visão de vida aos que cometeram delitos e que um dia voltarão às ruas. A orientação é que não se fale em crime dentro do local, diferentemente do sistema prisional tradicional, onde esse assunto é tratado 24 horas por dia.
GZH acompanhou durante a manhã de terça-feira (6) a rotina dos chamados recuperandos da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) de Porto Alegre, a primeira do Rio Grande do Sul, localizada o antigo Albergue Pio Buck, no bairro Partenon, que completa dois anos e meio de funcionamento.
Trata-se de uma espécie de prisão onde os próprios detentos possuem a chave. Não há guarda armada no local. Ou seja, praticamente tudo que ocorre dentro da Apac é na base da confiança. Todos que estão cumprindo pena através desse método manifestaram interesse pela Apac. As regras, tarefas e horários são rígidos. Quem não se adaptar, volta para o sistema tradicional de cumprimento de pena, em presídios.
Desde a instalação da Apac, quatro progrediram de regime, mas como ainda não existia o semiaberto nesse método, passaram a ser monitorados por tornozeleira eletrônica. E outros três saíram em liberdade condicional. Nenhum reincidiu no crime.
Os crimes cometidos por quem cumpre pena no local são os mais variados, desde roubo a estupro e homicídio. Há recuperandos cumprindo pena de até 120 anos de prisão. As idades são as mais variadas, dos 25 aos 69 anos. Atualmente, são 30 recuperandos em regime fechado e quatro no semiaberto.
Há funcionários e voluntários, mas são os próprios recuperandos os responsáveis pela maioria das atividades no local. Logo na chegada, por exemplo, um deles monitora por vídeo quem se aproxima do portão. A limpeza das celas, no caso do regime fechado, e dos alojamentos, no caso do semiaberto, além de banheiros, corredores e demais instalações, também é de responsabilidades deles. São os recuperandos que preparam a comida e lavam louças e roupas, controlam o estoque de alimentos, abrem e fecham as portas para os demais passarem de um ambiente para outro.
No pavilhão do regime fechado, as celas ficam com grades abertas. Os beliches lado a lado e os armários onde ficam as roupas e materiais de higiene estavam impecáveis quando GZH esteve no local. Nada fora do lugar. Numa das celas, um troféu, ganho pela dedicação na limpeza e organização do local. Já em outra, havia um porquinho de borracha, sinal de que a cela deixou a desejar nessa obrigação. Nas prateleiras dos armários, calçados com cadarço e cintos, dois itens que não podem entrar em presídios, por exemplo.
Os recuperandos têm uma série de atividades desde a hora que acordam até a momento de dormir. Uma delas é a laboraterapia. Quando GZH esteve no local, eram realizados trabalhos artesanais, como quadros, réplicas de barco e tanque de guerra e crochê.
O ambiente limpo, arejado e com as paredes bem pintadas não faz lembrar uma prisão. No mesmo local, os recuperandos faziam o lanche que antecede o almoço. As cascas das bananas consumidas eram colocadas numa lixeira específica para compostagem. Na horta, há plantação de alface, rúcula, couve, vários tipos de temperos, cenoura, pimenta, pimentão, repolho e tomate. No verão, deu até melancia e melão.
Num dos ambientes, parte dos recuperandos assistia a uma aula sobre o método Apac. Eram novatos e também quem cometeu alguma infração e precisava ser relembrado das regras. Em outra sala, mais de uma dezena de computadores são disponibilizados para uso de quem cumpre pena no local. Há três que estão no Ensino Superior cursando Administração e Tecnólogo em Agronegócio. Outro vai começar a cursar História. Mas não é a realidade da maioria, que tem escolaridade baixa, muitos deles ingressam na casa sem saber ler e escrever e são alfabetizados dentro da unidade.
Há duas suítes para visitas íntimas, que ainda não estão sendo usadas em razão da pandemia. As visitas tradicionais são feitas aos domingos. A revista de quem entra é feita com uma raquete detectora de metais, mas sem muita minúcia. Recuperandos e familiares sabem que receber materiais proibidos pode fazer com que eles voltem ao sistema tradicional. No método Apac, a família está no topo da pirâmide de importância.
Aposta em nova chance
GZH conversou com dois recuperandos, cujos nomes e os crimes pelos quais estão presos não serão divulgados. João (nome fictício) cumpre pena de 120 anos de prisão. Aos 52 anos, está no sistema prisional há 30 anos. Recém-havia feito a faxina no local onde é feito o videomonitoramento e também é usado para estudo. Escrevia em um caderno e visualizava as tarefas de seu curso na tela de um computador. Casado, com seis filhos e quatro netos, fez a sua primeira saída do sistema prisional após 17 anos e estava retornando naquele dia.
— É uma sensação maravilhosa poder reencontrar os filhos da gente, os netos, a família. Estar junto com eles foi a coisa mais importante da minha vida — conta o recuperando, ao ressaltar que “crime nunca mais”.
João, que estava na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) antes de ir para a Apac, diz que em presídios a recuperação é muito difícil e que decidiu, 30 anos depois de cumprir pena, mudar de vida.
A Apac dá possibilidade de a pessoa se reinventar.
JOÃO
Recuperando na Apac
— A Apac dá possibilidade de a pessoa se reinventar. Uma nova vida. Dá oportunidade para a gente aprender uma profissão, ajuda a voltar para o seio da família. A minha família estava pedindo há muito tempo para que eu tivesse uma vida diferente, que não voltasse a delinquir — relata.
Pedro (nome fictício), 42 anos, está há dois anos e três meses na Apac. Cumpre pena de 61 anos de prisão. Já está há 22 dentro do sistema. Diz que cansou da vida do crime e, por isso, decidiu pela oportunidade de ressocialização através do método Apac:
— Fui recebido com abraço e essa confiança. Cheguei com algumas intenções. Eu vi que tinham várias coisas que eram fáceis de driblar, tipo a segurança, ter algum telefone, de fugir. Essas cosias que no comum (presídio) a gente pensa sempre. E vim com essa intenção para cá, mas quando cheguei aqui, vi tudo diferente. Pensei: eu não posso trair essas pessoas que me deram confiança.
O filho está preso. Pedro se separou da esposa, porque ela não queria que ele mudasse para o método Apac.
— Ela não queria que eu viesse porque ela estava acostumada a ganhar as coisas fáceis do mundo do crime — relata.
Pedro diz que precisa mostrar para a sociedade que mudou. Diz que fez mal para muita gente e agora é hora de buscar novos caminhos:
— Pessoas que eu assaltei, fiz e aconteci. Essas pessoas que me fizeram refletir. Fiz tanto mal para elas e elas estenderam a mão para mim. Não estou fazendo isso para o Judiciário. Estou fazendo isso para elas.
O recuperando passou por vários presídios e sempre teve convivência com as facções criminosas. Diz que quando o Estado vira as costas para os presos no sistema, as facções costumam acolher de braços abertos:
— Eles te oferecem tudo. Te dão suporte para a tua família. Só que quando chegar teu tempo de sair, aí tu tem um dever a cumprir na rua. Daqui a pouco eles vão te ligar e te dizer para tirar a vida de alguém que está atrapalhando a facção.
Justamente por conhecer como funcionam as facções criminosas e o mal que fazem é que Pedro decidiu deixar o sistema prisional tradicional e passar a cumprir pena numa unidade da Apac.
Rotina de trabalho
Nesses dois anos e meio de funcionamento, dois recuperandos pediram para retornar ao sistema por não terem se adaptado e outros três precisaram voltar por decisão da própria gestão do local.
— As regras são firmes. É trabalho e atividades o dia todo. Eles (recuperandos) têm uma espécie de virada de chave, quando realmente se dão conta de que estão ali e que as regras são aquelas — relata Célia Amaral, voluntária, professora aposentada da rede estadual, bacharel em Direito e presidente da entidade.
Quem entra com alguma dependência química acaba tendo que vencer o vício na base da conversa e atividades.
— O máximo que a gente dá para eles são balas de hortelã — exemplifica Célia, ao ressaltar que o cigarro também não é permitido.
A rotina é intensa desde a hora de acordar, às 6h, até a hora de dormir, às 22h.
— A vida deles é muito ocupada. Ficam muito preocupados também com aquilo que estão sentindo. Essa integração das atividades com as regras criteriosas da metodologia faz com que repensem a vida — diz Célia.
O chefe da segurança é um recuperando que está em liberdade condicional após cumprir 17 anos de pena. A ideia é justamente essa, trazer para ajudar outros presos quem já conhece o sistema e sabe que não vale a pena seguir no crime.
Na estrutura do regime semiaberto, que fica no mesmo pátio, além do alojamento onde estão as camas, ficam a cozinha e uma sala usada para estudo. Já se aproximando do meio-dia, o cardápio era guisado com batata, arroz, feijão e saladas de cenoura, beterraba, chuchu, alface e couve-flor.
Avaliação do sistema
A juíza Sonáli da Cruz Zluhan integra o grupo de magistrados de Porto Alegre responsável pela execução das penas. É direta e objetiva quando fala sobre o sistema carcerário:
— Não se presta para absolutamente nada. As facções tomaram conta das cadeias e seguem angariando cada vez mais pessoas para atuar no crime. Quando a pessoa é presa, ela deve, necessariamente, escolher uma facção, pois caso contrário não sobrevive no sistema carcerário. Ou seja, não há como se pensar em desvincular uma pessoa do crime, quando ela é recolhida nas prisões, atualmente.
Sonáli classifica a Apac como “a luz no final do túnel”:
— Lá os presos são recuperandos. São tratados individualmente e o que eles fizeram no passado, fica no passado. É a única chance que o preso tem de efetivamente mudar de vida. Portanto, se o Estado quiser mesmo vencer a luta contra a violência e a criminalidade, a Apac é a esperança que se apresenta.
Coordenador do Núcleo de Apoio à Fiscalização dos Presídios do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), o procurador de Justiça Gilmar Bortolotto é designado pela instituição para acompanhar a metodologia Apac no Estado. Diz que além de ser um método que realmente visa a ressocialização do preso, ainda é mais barato que o sistema prisional tradicional.
— Mesmo sem ter conseguido ocupar todas as vagas por conta da pandemia, o custo do nosso recuperando foi de R$ 1,3 mil por mês. Isso é bem abaixo do que custa um preso no sistema tradicional, que fica em torno de R$ 2 mil — destaca Bortolotto.
Para o procurador, o ideal é continuar ampliando unidades da Apac no Rio Grande do Sul:
— Fiquei 17 anos fiscalizando presídios. Não adianta a gente só ficar olhando as coisas que não funcionam bem e não pensar em algo diferente. É um projeto complementar. Ele não é para substituir o sistema e nem teria como, mas é muito importante.
O procurador-geral de Justiça, Marcelo Dornelles, reforça que há apoio institucional do Ministério Público nesse método de busca pela ressocialização dos apenados devido a sua importância para o sistema.
— É uma oportunidade para aqueles que querem sair do sistema e não tem condições em virtude de como é modulado o sistema prisional. É um regime de responsabilidades, muito mais barato e cujos índices de reincidência são extremamente menores — observa Dornelles.
Coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça, o juiz-corregedor Alexandre Pacheco lembra que, no sistema tradicional, entre 70% e 80% dos presos voltam a cometer crimes. Diz que por meio do método Apac é possível também evitar mais prejuízos à sociedade:
— Uma vez a gente recuperando essa pessoa, nós acabamos protegendo a sociedade e prevenindo um novo delito.
No Rio Grande do Sul, há outra Apac em operação em Pelotas. Há intenção ou encaminhamento de instalação também em Três Passos, Palmeira das Missões, Passo Fundo, Cruz Alta, Santa Cruz, Santa Maria, Guaporé, Novo Hamburgo, Canoas, Rio Grande e Cachoeira do Sul. No Brasil, há 61 unidades.
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