No início de março do ano passado, após moradores ouvirem disparos em um prédio no bairro Rio Branco, em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, policiais militares depararam com uma cena suspeita. Dentro do apartamento, onde estava uma adolescente, havia marcas de sangue, armas e R$ 2 milhões entre dólares e reais. A apuração descobriria que João Victor Friedrich de Oliveira, 31 anos, havia sido assassinado no local. Cinco réus respondem presos por envolvimento com o crime, entre eles os pais da garota. A primeira audiência ocorrerá somente em junho, mais de um ano depois.
Dos cinco denunciados pelo Ministério Público (MP), três são acusados diretamente pelo homicídio: os pais da adolescente e um ex-PM temporário, que foi expulso da corporação em junho do ano passado. Um primo do pai da adolescente e a cunhada dele também foram denunciados por outros crimes, como organização criminosa e fraude processual, por supostamente terem ajudado a esconder provas do crime. Todos permanecem presos – a cunhada, em domiciliar, com monitoramento por tornozeleira eletrônica. Além deles, a adolescente que tinha 16 anos à época, responde pela morte do namorado, em procedimento separado. Ela chegou a ser apreendida, mas atualmente está em liberdade.
Nas decisões tomadas ao longo do processo, a Justiça alegou que a complexidade do caso e a situação da pandemia justificam a demora na tramitação. A juíza Angela Roberta Paps Dumer, da 1ª Vara Criminal de NH, ressaltou a situação gravíssima enfrentada pelo município durante a pandemia e, por isso, optou por agendar a sessão por videoconferência. A primeira audiência, na qual serão ouvidas testemunhas de acusação, será dia 8 de junho, às 9h30min.
O MP inicialmente havia indicado 24 testemunhas, como vizinhos, zelador, síndicos, porteiro, parentes da vítima, policiais civis e militares, entre outros, mas a Justiça considerou o número excessivo. Segundo a juíza, embora a lei permita que sejam indicadas até oito por fato, a maioria das pessoas falaria sobre o homicídio. Por fim, a acusação optou por 18 nomes – a metade será ouvida na primeira audiência. Uma mulher indiciada pela Polícia Civil, mas que não foi denunciada, será uma delas.
No momento da sessão, as testemunhas devem estar sozinhas, sem interferência de outras pessoas, e sem uso de anotações. Os réus acompanharão tudo de dentro das casas prisionais onde estão recolhidos, e a mulher que está com tornozeleira deverá participar de casa. Novas audiências precisarão ser agendadas para tomar os depoimentos dos demais, num total de 48 testemunhas. As defesas dos réus indicaram 34 pessoas – no entanto, quatro coincidem com a acusação. Por último, serão interrogados os réus.
Ré queria remover tornozeleira para ir a casamento
No dia 10 de março, a Justiça negou mais um pedido realizado pela defesa de uma das rés. A mulher, que segundo a acusação auxiliou no crime transportando o pai da adolescente e ajudando a se desfazer de provas, pediu a remoção da tornozeleira por questões de saúde, e autorização para retirar o aparelho e ir ao casamento do filho. A juíza negou os dois pedidos.
A defesa da mãe da adolescente também pediu novamente a revogação da preventiva, alegando que a filha está desamparada. Os advogados relataram que o avô paterno, falecido recentemente, era quem mantinha a neta. No início de março, a Justiça também negou o pedido, argumentando que a adolescente possui outros familiares. A juíza cita que a garota "já tem idade suficiente para colaborar com seu sustento, buscando alguma atividade".
Queima de arquivo
João Victor, o rapaz morto dentro do apartamento, namorava a filha do casal que residia no imóvel. No início de março de 2020, ingressou no prédio durante a madrugada. A polícia apurou que ele havia agredido a namorada em uma festa e, por isso, a adolescente havia retornado para casa antes dele.
Logo após a chegada dele, vizinhos ouviram gritos e disparos de arma de fogo. Quando a BM esteve no local, somente a adolescente e a mãe foram encontradas. À polícia, a garota alegou que brigou com o namorado e que atirou na perna dele. Mas disse que ele havia ido embora. Como o namorado não foi localizado, a polícia passou a investigar o desaparecimento, com suspeita de homicídio.
Imagens do prédio revelaram que o pai da adolescente e um PM temporário entraram armados no imóvel e saíram com um corpo. A mãe da adolescente aparece tapando as câmeras de segurança e limpando a garagem. Uma Mercedes, usada no transporte do corpo, foi abandonada carbonizada em Portão. Dias depois, em uma chácara abandonada em São Sebastião do Caí, foi localizado um cadáver. O corpo estava sem as mãos, por isso, foi necessário realizar exame de DNA para identificá-lo. Ficou comprovado que era João Victor.
A investigação concluiu que o rapaz foi assassinado a tiros dentro do apartamento. Para a acusação, o crime teria sido premeditado como queima de arquivo, mas o plano teria sido acelerado em razão da agressão. Segundo a denúncia do MP, o assassinato foi a forma de garantir que os autores ficariam com o dinheiro encontrado no imóvel, que teria sido obtido por meio de atividades criminosas, que ainda estão sob apuração. A defesa dos pais e da adolescente nega que o crime tenha sido planejado e diz que a adolescente agiu para defender a família. Alega ainda que a origem da quantia é lícita.
Fuga de delegacia
Dias após o crime, a equipe da Delegacia de Homicídios de NH prendeu o pai da adolescente. Segundo a polícia, ele se preparava para fugir com armas e dinheiro. Um primo, morador de Santa Catarina, que estaria auxiliando na fuga, também foi preso. Naquele mesmo dia, o pai da garota escapou de dentro da delegacia, enquanto estava algemado no corredor. Dez dias depois, foi recapturado pela polícia do RS em São José, Santa Catarina. Com ele, foi apreendida uma Hilux e cerca de R$ 60 mil em dinheiro.
Os crimes pelos quais respondem
- Pais da adolescente - homicídio qualificado, ocultação de cadáver, fraude processual, posse ilegal de arma de fogo, receptação, adulteração de veículo, organização criminosa e corrupção de menor. O pai responde ainda por falsificação de documento público.
- Ex-PM temporário - homicídio qualificado, ocultação de cadáver, posse ilegal de arma de fogo, fraude processual, organização criminosa e corrupção de menor.
- Primo do pai da adolescente - ocultação de cadáver, organização criminosa, fraude processual e favorecimento pessoal.
- Mulher - organização criminosa, fraude processual e favorecimento pessoal.
Contrapontos
O que diz a defesa do casal e da filha adolescente
O advogado Jean Severo, um dos responsáveis pela defesa do casal e da garota, nega que o crime tenha sido planejado. Alega que a adolescente atirou para se defender e proteger a família. O advogado admite, no entanto, a ocultação de cadáver que teria sido feita pelo pai da adolescente.
– A vítima descobriu que havia valores na casa e queria agir contra a família. Foi atrás da menina, começou a esmurrar a porta. A mãe deu um tiro de aviso na porta. Mesmo assim, ele continuou, até que desceu e encontrou o pai da namorada com outro rapaz, que pediram para ele subir para conversarem. Lá dentro, ele teve um ataque de fúria. A adolescente entendeu que a única solução era atirar nele, para defender o pai e a mãe. Se fosse planejado, por que faria isso dentro de casa? Foi uma tragédia – alega.
Sobre os valores dentro do imóvel, retidos na Justiça, alega que foram obtidos por meio de uma construtora da qual o réu seria proprietário. O advogado diz que a adolescente está em tratamento psicológico, estudando e "torcendo para que os pais saiam logo". O advogado reclama da demora na instrução, que concorda ser impactada pela pandemia.
– Estamos aguardando as audiências para poder começar a explicar melhor para a magistrada o que aconteceu – diz.
O que diz a defesa do ex-PM temporário
A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul informou que está acompanhando o acusado, "visando a garantir os princípios da ampla defesa e do contraditório". O réu está preso preventivamente desde 8 de abril do ano passado. Antes disso, já havia sido detido de forma temporária, em 11 de março de 2020. A defensora pública Camila Mollerke Santos ingressou com habeas corpus neste mês. A defesa alega que já transcorreu mais de ano de sua prisão e até o momento não houve encerramento da instrução processual. Por nota, a instituição "informou que, quanto ao mérito dos fatos, se manifestará apenas nos autos do processo". Segundo a Brigada Militar, o então policial militar temporário foi excluído da corporação em 10 de junho do ano passado.
O que diz a defesa do primo do pai da adolescente e esposa
A advogada Ester Venites, que representa o primo do pai da adolescente e a esposa dele, afirma que ele não possui envolvimento com os crimes. Segundo a defesa, ele e a esposa residiam em Santa Catarina, onde estavam na data em que aconteceu o crime e que isso pode ser comprovado por meio de câmeras e pedágios.
A advogada diz que o cliente teria seguido até o RS a pedido do primo, que queria e lhe acompanhassem até um advogado em Porto Alegre. Ester argumenta que no momento em que foram presos, seu cliente e o pai da adolescente, estavam indo para a delegacia para que o então investigado se apresentasse. Afirma que seu cliente não tinha conhecimento de que dentro do veículo do primo havia armas de fogo.
Sobre a mulher, que chegou a ser indiciada pela polícia, diz que ela não possui qualquer participação e que não foi denunciada pelo MP.
O que diz a defesa da mulher em prisão domiciliar
A advogada Adriana Kafer alega que ela não teve envolvimento no fato e que sequer conhecia os pais da adolescente e considera as acusações "totalmente absurdas". Ela diz que a cliente confirma ter dado carona para o pai da garota, de Taquara até um posto de combustíveis em Portão, a pedido do cunhado – que residia com a irmã dela em Santa Catarina.
Ainda conforme a defesa, a acusada possui problemas de saúde, desenvolveu depressão e síndrome do pânico. "Resta mais do que comprovado que a acusada não teve qualquer participação, apenas deu uma carona a (cita nome do pai da adolescente), que sequer falou com a acusada sobre o que havia acontecido", afirmou em manifestação enviada à reportagem.
Por que não publicamos os nomes dos réus?
GZH não identifica os réus por envolvimento no desaparecimento e morte de João Victor Friederich de Oliveira, 31 anos, em Novo Hamburgo, para preservar a identidade da adolescente de 16 anos. A preservação do nome de adolescentes infratores é determinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).