A família de Gustavo dos Santos Amaral não descansa desde abril de 2020. No dia 19 daquele mês, o engenheiro eletricista estava indo trabalhar quando foi morto por engano, aos 28 anos, em uma barreira da Brigada Militar em busca de assaltantes de carro em Marau, no norte do Rio Grande do Sul.
Cinco meses depois, a Polícia Civil concluiu que o policial que atirou agiu em legítima defesa imaginária, ao confundir o celular que o rapaz carregava com uma arma. O Ministério Público (MP) concordou com a conclusão, bem como a Justiça local. A investigação foi arquivada. Na apuração interna da Brigada Militar, o mesmo ocorreu, e o procedimento administrativo foi extinto.
Desde o resultado das apurações, a família busca incessantemente por justiça. Uma perícia particular foi entregue nesta terça-feira (20) ao chefe do MP no Estado, o procurador-geral Fabiano Dallazen, com resultados que são diferentes das autoridades do Estado. O documento é a base para um pedido de desarquivamento na marca de um ano do ocorrido.
A perícia é assinada por Eduardo Llanos, perito chileno radicado em São Paulo que afirma ter 30 anos de experiência na área e ser formado em Ciências Policiais. Segundo ele, está claro que o "policial tinha todas as capacidades visuais e auditivas para identificar quem era criminoso e quem não era":
— A atitude é muito diferente entre uma pessoa inocente e um criminoso. E, mais ainda, identificar um celular como arma em uma distância de quatro metros. A desculpa, aceita de forma irresponsável pela Justiça, permite no futuro que outros policiais a utilizem em caso de novos erros ou na finalidade de matar alguém.
O MP informou que a documentação recebida será enviada ao promotor do caso, Bruno Bonamente, para análise e posterior resposta se concorda ou não com o desarquivamento.
Convivendo com o vazio da perda do filho, o pai do rapaz mistura sentimentos de dor e revolta. Gilmar Amaral acredita que o Gustavo foi morto por ser negro.
– É negro e está correndo? É bandido. Se realmente quisessem detê-lo, tinham atirado na perna, no braço. Todos nós achamos que o fato de ele ser negro foi fator fundamental para que o brigadiano tenha atirado nele – afirma o pai.
O fato
A morte de Gustavo se deu na RS-324, em Marau. Ele estava indo trabalhar com a Doblô da empresa do pai, ao lado de colegas, quando deparou com a barreira da BM em busca de assaltantes de carro. O veículo que era procurado surgiu em seguida e bateu no carro dele. Assustado, o engenheiro desceu do seu veículo e tentou se esconder. Naquele momento, um policial se aproximou e abriu fogo, acreditando que Gustavo era um dos criminosos.
Testemunhas afirmam que chegaram a alertar o policial de que ele estava se equivocando. Funcionário que estava no carro com Gustavo, o montador eletricista Evandro Motta, 31, detalhou o que viu.
— Gustavo entrou em choque, estava apavorado, e quis correr para se proteger dos tiros. Nisso, avistei um policial passando e comecei a gritar "não atira, não atira, é o dono da empresa". O policial passou em nossa frente e efetuou os disparos, sendo que um atingiu o ombro do nosso chefe. Em momento algum, ele deu voz de prisão, ou pediu para que o Gustavo levantasse o braço — narrou Motta.
Na conclusão do inquérito, o delegado à frente do caso, Norberto dos Santos Rodrigues, afirmou que houve uma série de "coincidências infelizes, aliado ao comportamento da vítima, que estava em pânico".
— As circunstâncias que se apresentaram para o policial militar, naquele milésimo de segundo, naquela ocorrência, o enfrentamento que teve com a vítima nas coincidências infelizes. O criminoso e a vítima usavam casacos similares. A vítima correu em trajeto semelhante ao que o criminoso fez – justificou, à época, o delegado.
Todos nós achamos que o fato de ele ser negro foi fator fundamental para que o brigadiano tenha atirado nele
GILMAR AMARAL
Pai de Gustavo acredita que racismo tenha influenciado na morte do filho
Após a conclusão do inquérito, o caso chegou a ficar 42 dias parado na delegacia de Marau. Ele foi entregue à Justiça dias após a reportagem de GZH detalhar que o documento não havia sido encaminhado. A chefe de polícia, Nadine Anflor, chegou a reunir-se com a família para explicar o ocorrido.
Um protesto, em setembro do ano passado, reuniu em Porto Alegre integrantes de movimentos antirracistas, que criticaram a ação policial. A carreata terminou em frente à sede do Ministério Público, onde os manifestantes gritaram por justiça.
Nesta terça (20), a Secretaria da Segurança Pública enviou nota a GZH em que afirma que as instituições respeitam as "manifestações legítimas de familiares de Gustavo" diante da "fatalidade que resultou em sua perda". No entanto, declarou que o caso já foi "exaustivamente analisado pelas instituições do Sistema de Justiça Criminal".
Repercussão política
O caso de Gustavo também teve repercussão também em gabinetes políticos. O governo do Estado criou um grupo de trabalho sobre violência policial e racismo após o fato, com discussão por membros do movimento negro. O relatório do grupo, com 23 sugestões de mudanças, foi entregue na semana passada.
Entre outros pontos, o grupo pede maior controle interno da atividade policial pelo MP, uso de câmeras e GPS por todos os agentes de segurança, capacitação frequente, novos protocolos de abordagem e a criação de uma secretaria específica contra o racismo, com verba própria.
O governo do Estado disse que o núcleo do Piratini irá discutir as sugestões do grupo de trabalho.
Além disso, um projeto de lei de autoria da deputada Luciana Genro (PSol) pede que todos os policiais passem a usar câmeras e aparelhos de GPS acoplados ao uniforme, como ocorre nos Estados Unidos. O projeto, que leva o nome de Gustavo Amaral, está parado para análise desde outubro do ano passado pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), deputado tenente-coronel Zucco.
Nesta terça, Zucco declarou à reportagem que dará parecer favorável ao projeto. Com isso, ele poderá ser levado ao plenário da Assembleia Legislativa.
O pai de Gustavo também adianta que pretende criar uma ONG que buscaria justiça por casos semelhantes:
– Queremos que o nome dele seja lembrado para sempre.
O que diz a defesa dos PMs
Em nota enviada à reportagem, os advogados Ricardo de Oliveira de Almeida e José Paulo Schneider afirmam que as declarações da família mostram "desrespeito e o descrédito injustificado às instituições" e que a perícia independente não traz fatos novos, "sendo facilmente rechaçada" pelo laudo oficial.
Confira a nota na íntegra:
A defesa técnica dos Policiais Militares investigados no “Caso Gustavo Amaral”, por ocasião da perícia independente apresentada pelo advogado da família, vem a público apresentar os seguintes contrapontos:
1. A soluções jurídicas aplicadas pelas autoridades competentes foram adequadas e encontram respaldo na doutrina, jurisprudência e na Lei.
2. A família da vítima tem todo o direito de não concordar com as decisões a que chegaram as autoridades, sendo legítima e inquestionável a sua dor.
3. Não se pode admitir, entretanto, o desrespeito e o descrédito injustificado às instituições e aos profissionais que de forma séria e célere encontraram uma solução jurídica correta para este triste episódio.
4. Não existem fatos novos capazes de provocar a reabertura de uma investigação arquivada com acerto pelo Poder Judiciário, haja vista a comprovada ocorrência de causa excludente de ilicitude na conduta dos PMs (art. 23, II, do Código Penal).
5. A perícia apresentada pelo advogado da família não traz fatos novos. Busca, na verdade, rediscutir, intempestivamente, a interpretação dada a provas antigas, que foram profundamente apreciadas pelas autoridades competentes.
5.1. As conclusões da perícia independente são facilmente rechaçadas pela perícia oficial, pelos depoimentos das testemunhas presenciais e pelas reproduções simuladas constantes nos autos.
5.2 A visão isolada de um perito, que não participou das investigações, não possui força para fragilizar os entendimentos da Autoridade Policial, da Autoridade Militar, dos Promotores de Justiça e da Juíza de Direito que decidiu o feito.
6. O advogado da família da vítima estava devidamente cadastrado e ciente das investigações em curso, não tendo, por opção sua, comparecido em qualquer ato investigativo ou requerido diligências para que a sua versão fosse analisada pelas autoridades.
7. Não é verdadeira a alegação de que não foi realizada reprodução simulada dos fatos.
7.1 A autoridade policial realizou a reprodução simulada dos fatos, cujas fotos e vídeos estão nos autos do Inquérito. Além disso, foi realizada reprodução por croqui, com uso de drone, para a melhor ilustração fática.
7.2 O advogado representante da família da vítima, mesmo estando cadastrado no feito, jamais requereu que a autoridade policial realizasse nova ou complementar reprodução simulada.
8. Outro ponto alegado pela família é de que se os PMs tivessem câmeras em seus uniformes a verdade seria de conhecimento. A verdade foi devidamente provada e, em que pese à ausência de câmeras, há 5 testemunhas que atestam a correção e a moderação na conduta policial.
9. É preciso desconstruir, de uma vez por todas, a equivocada afirmação de que o Inquérito Policial Militar contradiz a decisão da Delegacia de Polícia Civil de Marau/RS.
9.1. A Promotoria Militar declinou a competência para a Promotoria de Marau/RS, a qual opinou pelo arquivamento do feito. No âmbito administrativo, o Cel QOEM Rodrigo Mohr Picon, Ex-Comandante Geral da PM, concluiu “não haver razões para a submissão do Soldado a Conselho de Disciplina”.
10. Ressalta-se, por fim, a necessidade de respeito à legalidade e à coisa julgada material, não podendo o advogado da família pretender, após um ano, rediscutir, sem a presença de qualquer fato novo, decisões proferidas com responsabilidade e de acordo com a doutrina, jurisprudência e a lei.
Ricardo de Oliveira de Almeida
José Paulo Schneider
Escritório Zimmermann Almeida Advogados