Em 11 de janeiro deste ano, Gabrielle França, 18 anos, fez uma homenagem ao padrasto no Facebook. Na publicação em que aparecem juntos em oito fotos, escreveu que esperava um dia retribuir tudo que ele tinha feito por ela e frisou: "continue sendo essa pessoa que tu és, uma boa pessoa e um homem de caráter". Era o aniversário de 42 anos de Niel Mateus da Rosa Alves. Nessa época, Gabrielle estava feliz por estar com a família completa em casa, e o texto marcava uma tentativa da jovem de selar a boa relação com o padrasto em meio a um ambiente familiar conturbado. Três meses depois de ter recebido a demonstração pública de carinho, o homem confessou o assassinato da enteada que criou como filha desde bebê.
Gabrielle foi morta por estrangulamento dentro de casa, no bairro Agronomia, zona leste de Porto Alegre, na madrugada de domingo (11) para segunda-feira (12). Na residência, ela vivia com o padrasto e mais três irmãos — filhos de Niel. Naquela noite, o homem pediu que os dois filhos, de 16 e 10 anos, fossem dormir na casa de amigos — a filha de 15 estava com a mãe. Sozinho com Gabrielle, matou a menina, escreveu uma carta justificando que o crime foi motivado por vingança e, no começo da manhã de segunda, ligou para mãe pedindo que viesse ver a filha. Niel estava separado da esposa desde 2018, mas, durante este período, o relacionamento teve idas e vindas e a última delas havia sido há pouco mais de um mês.
— Ele chamava ela de filha e ela chamava ele de pai. Ele sempre foi muito grosso, rude, firme e não era amoroso. Mas nada que parecesse agressivo. A gente sempre vê nos noticiários esses crimes e nunca imagina que vai acontecer na nossa família. Difícil de digerir — comenta um familiar que prefere não se identificar.
Estudante do terceiro ano do Ensino Médio da Escola Estadual Agrônomo Pedro Pereira, Gabrielle era extrovertida e carinhosa com os amigos, confidenciava sobre os problemas em casa, mas não dava detalhes. Era fechada e, de tempos em tempos, sumia das redes sociais e chegava a ficar uma semana sem ir à escola. Com a pandemia, os amigos passaram a ter menos acesso a Gabrielle. Apesar de parecer vaidosa em fotos, tinha baixa autoestima, segundo pessoas próximas. Chegou a enfrentar depressão, mas nos últimos meses corria atrás do sonho de encontrar um emprego para sair de casa. Queria ser independente. Fez uma série de entrevistas, fazia bicos como babá e chegou a trabalhar por uma semana em um supermercado, mas deixou a função sem dar explicação aos amigos.
— Apesar de todos os problemas que ela tinha em casa, tínhamos um grupo de amigos que era bem feliz. Ela amava ler, sair para caminhar, falar sobre diversidade, era inteligente e militava pelo direito das mulheres — afirma a estudante Ágata Marques Cardoso, 19 anos.
No Facebook, os posts de Gabrielle revelam seu posicionamento feminista. Na sala de aula, levantava a mão para falar do tema e gostava de expor seu ponto de vista. Quando Niel e a mãe se separam, ela decidiu ficar em casa com o padrasto e três irmãos mais novos, de quem era uma das principais referências.
— Isso demonstra o carinho que ela tinha por ele. Ela escolheu ficar com ele. Não via nenhum perigo. Niel falava de Deus, era religioso e foi fazer isso por vingança. Não tenho nem palavras. A Gabi tinha uma vida inteira pela frente. O que mais me dói é ver o amor que ela tinha por ele e do nada ele resolve fazer isso. Ela amava ele como pai. Não via problema em ficar com ele só em casa — conta a prima, a estudante Núbia Oliveira, 19 anos.
"Ele tinha relação possessiva com a enteada", diz delegada
Familiares ouvidos por GZH contam que Niel tinha ciúmes da ex-esposa inclusive quando ela visitava parentes, costumava ligar perguntando que horas voltaria. O mesmo sentimento Niel reproduziu por Gabrielle. Segundo amigos do círculo mais íntimo da jovem, o padrasto buscava ela pessoalmente na escola quando demorava a chegar em casa por ficar conversando com os colegas e não gostava que amigos a acompanhassem até em casa. O trajeto em grupo ocorria só até a esquina da residência. Relatos de possessividade de Niel também apareceram nos diversos depoimentos dados à titular da Delegacia da Mulher de Porto Alegre, delegada Jeiselaure Rocha de Souza:
A Gabi tinha uma vida inteira pela frente. O que mais me dói é ver o amor que ela tinha por ele e do nada ele resolve fazer isso. Ela amava ele como pai.
NÚBIA OLIVEIRA
Prima
— Ele vasculhava as conversas no telefone da Gabrielle. Não gostava que ela se envolvesse com namorados, tinha ciúmes. Com certeza ele tinha uma relação possessiva com a enteada. Ouvimos ontem (segunda-feira, 12) durante o dia inteiro diversas pessoas que confirmam isso. É um contexto bem evidente de feminicídio, em um sentimento de posse, agressão física, ofensas e ameaças à mulher. E os filhos também sofriam agressões.
À polícia, a mãe de Gabrielle contou que havia terminado o relacionamento pois estava cansada das ameaças de Niel. Na manhã de segunda-feira (12), quando soube da morte da filha, precisou ser amparada por vizinhos e foi levada para atendimento médico.
— Ele mata a enteada pra se vingar, ele atribui o crime à ex-companheira. A culpa pela atrocidade do que esta fazendo. Não descartamos que Gabrielle sofria outros tipos de violência, tudo está sendo apurado — afirma a delegada.
Ele dizia para todo mundo que ia fazer picadinho dos filhos. A família, nesses casos, precisa acreditar que um dia as ameaças podem se concretizar, deve procurar as autoridades e romper esse ciclo de violência. As crianças eram vítimas secundárias de violência doméstica.
JEISELAURE ROCHA DE SOUZA
Titular da Delegacia da Mulher de Porto Alegre
Niel foi capturado no final da manhã de segunda-feira por policiais do Comando Ambiental da Brigada Militar no momento em que se atirou de uma ponte no Guaíba, em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana. Em depoimento, confessou o crime. Disse que matou a enteada após uma discussão e que não lembra direito o que fez, que foi em um momento em que perdeu a cabeça.
Em 2019, já separada do marido, a mãe de Gabriella registrou uma ocorrência em Alvorada relatando ameaças do ex-companheiro de que iria matar os filhos.
— A irmã dele nos relata que ele vivia dizendo que mataria as crianças, as ameaçava de morte. Era uma ameaça constante. Nesse meio tempo eles retomaram a relação algumas vezes. Ele dizia para todo mundo que ia fazer picadinho dos filhos. A família, nesses casos, precisa acreditar que um dia as ameaças podem se concretizar, deve procurar as autoridades e romper esse ciclo de violência. As crianças eram vítimas secundárias de violência doméstica — conta a delegada.
Contraponto
Responsável pela defesa de Niel Mateus da Rosa Alves, o advogado Semarino Alves Nunes aguarda ter acesso ao inquérito policial para se manifestar. E acredita que o cliente teve um surto no momento.