Acusação e defesa que atuam no processo da boate Kiss, uma das maiores tragédias ocorridas na história do Brasil, já começam a preparar suas estratégias para o plenário do Tribunal do Júri. Nesta segunda-feira (5), o novo titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri do Foro Central de Porto Alegre, Orlando Faccini Neto, marcou a data do julgamento do incêndio na Kiss que, em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, causou 242 mortes.
Começará em 1º de dezembro, às 9h, sem data para terminar. A tendência, no entanto, é de que seja o júri mais longo da história no Rio Grande do Sul. Até então, o de maior duração no Estado foi o que resultou na condenação dos quatro réus acusados de matar o menino Bernardo Boldrini, de 11 anos, crime que aconteceu em abril de 2014. Foram cinco dias de sessão no Foro de Três Passos, em março de 2019.
A projeção feita por advogados dos réus e pelo Ministério Público é de que o julgamento dure de 10 a 30 dias. O tempo vai depender, entre outros, do número de testemunhas que serão ouvidas em plenário. Os sócios da boate Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann e os músicos Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão são réus por homicídio doloso, quando há intenção de matar.
O julgamento, que inicialmente ocorreria em Santa Maria, foi transferido para a Capital por decisão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Inicialmente, o desaforamento foi concedido a três dos quatro réus – Elissandro, Mauro e Marcelo. Luciano foi o único que não manifestou interesse na troca (seu julgamento chegou a ser marcado em Santa Maria) mas, através de pedido do Ministério Público, o Tribunal determinou que ele se juntasse aos demais.
Conforme o magistrado que conduz o processo, a realização do julgamento nessa data dependerá da evolução da imunização contra o coronavírus, bem como da minimização dos riscos sanitários. Ressalta que, de acordo com o setor de logística do TJRS, as providências para estruturação do júri carecem de, no mínimo, seis meses, o que envolve alojamento e alimentação dos jurados, segurança interna e externa, cobertura da imprensa.
O local ainda não está definido. A expectativa de Faccini Neto é de que seja decidido até o final do mês de maio.
"Com todas as providências burocráticas que o cercam, mormente considerada a expectativa de que, em virtude de sua complexidade, o Plenário se estenda por número expressivo de dias", observou o juiz em sua decisão.
Para a promotora Lúcia Helena Callegari, há uma tranquilidade por parte do Ministério Público que o julgamento tenha sido marcado antes do fim do ano para que seja possível “fechar 2021 com uma resposta” para os familiares e para a sociedade sobre o que ocorreu. Espera que, diante do andamento da vacinação contra o coronavírus, seja possível que o júri ocorra com a presença dos familiares das vítimas.
— O Ministério Público espera que a sociedade de Porto Alegre faça Justiça. E entendo que a sociedade de Porto Alegre está preparada para esse julgamento. E para dar a resposta que a sociedade de Santa Maria, do Brasil e do mundo esperam. Para que nós não tenhamos a impunidade para essas mortes que foram terríveis — diz a promotora, ao tecer elogios à conduta do magistrado na condução de julgamentos anteriores pelo Tribunal do Júri.
Advogado de Elissandro Callegaro Spohr, Jader Marques, ressaltou a experiência do juiz Orlando Fachini Neto para conduzir o julgamento, afirmando que “traz muita tranquilidade para a defesa”. Sobre a data, espera que se confirme.
— Agora é aguardar para ver se os recursos manejados pelo Ministério Público poderão adiar esse julgamento. Porque o Ministério Público ainda insiste com alguns recursos no Superior Tribunal de Justiça. E se mantida a data, o que a defesa espera, vamos para o julgamento apresentar as teses defensivas, ouvir o Ministério Público e as demais defesas, para que, enfim, o caso da Boate Kiss possa chegar ao seu fim —disse Jader.
O advogado de Mauro Hoffmann, Mário Cirpiani, lembra que há recursos pendentes da defesa para acesso a materiais de prova, e que isso ainda pode refletir em alteração de data de julgamento.
—Me preocupa um pouco a designação de uma data na pendência de todas essas decisões. A rigor, as datas são marcadas após a resolução de todos os pedidos que são realizados pelas partes, e de todos os recursos que ainda existem, independente do seu efeito suspensivo ou não. Vamos avaliar a íntegra da decisão do eminente magistrado, e depois a defesa tomará as medidas que entender necessárias — destaca Cirpiani.
O advogado Jean Severo, que defende Luciano Bonilha Leão, diz que a defesa está preparada para o plenário desde o ano passado, quando chegou a ser marcado júri, mas houve adiamento após recurso do Ministério Público aceito pela Justiça.
— O Luciano está pronto para o plenário. Está com o coração na mão. Ele não aguenta mais, ele gostaria de já ter sido julgado. Vamos ao plenário, tem tempo suficiente para preparar esse júri. É um júri muito grande, que acho que não tem nada parecido no mundo. Que se faça justiça com a absolvição do Luciano – ressalta Severo.
A advogada de Marcelo de Jesus dos Santos, Tatiana Borsa, preferiu não se manifestar.
Presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Flavio Silva, disse que membros da associação "não abrem mão de estar presente e assistir ao júri:
— Temos a expectativa que ocorra tudo bem e que até lá as pessoas estejam imunizadas e em condições de assistir ao júri que é muito importante. A gente luta há oito anos para que o juri seja realizado.
Juiz linha dura à frente do Caso Kiss
Orlando Faccini Neto assumiu o juizado onde tramita o processo da Kiss nesta segunda-feira (5), após a juíza Taís Culau de Barros deixar a vaga para integrar a Corregedoria-Geral da Justiça.Presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), ele vai acumular a função, o que é motivo de controvérsia na classe. É a primeira vez desde que a Ajuris conquistou o diteiro de seu presidente se dedicar exclusivamente à entidade que um juiz acumula as funções.
O magistrado é doutor em Ciências Jurídico-Criminais, pela Universidade de Lisboa – Portugal, mestre em Direito Público e especialista em Direito Constitucional. Faccini Neto é considerado bem preparado, estudioso, detalhista e com decisões muito bem fundamentadas por operadores do Direito ouvidos por GZH para um caso dessa envergadura, mesmo assumindo o processo agora, oito anos e dois meses depois do fato. É tido como um juiz linha dura, que costuma aplicar penas altas, por vezes, pena máxima.
Em janeiro de 2018, por exemplo, ele condenou dois acusados de estuprar e matar uma criança de cinco anos em Porto Alegre à pena máxima, de 61 anos de prisão.
Em 2016, ele atuou junto ao gabinete do ministro Felix Fischer, no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, que é relator da Lava-Jato na corte.