Na chegada aos locais de crimes, a perita Heloísa Helena Kuser já sabia que precisava cumprir um ritual: mostrar o crachá e se identificar como chefe da equipe. Quando ingressou no Instituto-Geral de Perícias (IGP) em Porto Alegre no início de 2004, a presença feminina na linha de frente era tímida. Nas posições de gestão, mais rara ainda. Dezesseis anos depois, a primeira diretora-geral do órgão que ajuda a desvendar crimes por meio da ciência se orgulha de reunir a equipe de gestão com maior presença feminina da história. Com ela, são sete mulheres na chefia – somente dois departamentos são dirigidos por homens.
— São mulheres que atuaram em cena de crime, embaixo de escombros, após incêndios. Todas têm vasta experiência técnica. Quero mostrar que elas podem, sim, estar nestes cargos — diz a diretora-geral.
De Caxias do Sul, na Serra, Heloísa ingressou no IGP deixando para trás 15 anos em sala de aula, lecionando biologia para adolescentes em um colégio de Porto Alegre. A professora adorava a energia da sala de aula, mas o mestrado em paleontologia – especialidade que estuda o passado por meio de vestígios – abriu a porta para a perícia.
— Comecei a ver filmes sobre cena de crime, e a paleontologia, que é a busca de fragmentos do passado para recontar uma história, vestígios como pegadas, ossos, se aproximava muito. Senti que na carreira de perito criminal teria uma continuidade de algo que já era apaixonada— recorda.
O trabalho na perícia iniciou no atendimento aos locais de crimes, onde precisava entender o que havia acontecido ali, para colaborar com a investigação. A primeira diferença que lhe despertou a atenção foi o silêncio, que contrastava com o agito da sala de aula. Percebeu também um universo dominado pelos homens.
— Onde está o perito? — questionavam quando ela chegava, muitas vezes a única mulher no local.
— Lá vou eu me apresentar de novo— brincava com a equipe de colegas, antes de desembarcar.
Neste período, trabalhou em um dos casos que mais lhe marcou, justamente de violência contra a mulher. Uma dentista torturada e morta em 2009, na Rota do Sol.
— Aquilo me incomodou por muito tempo — recorda Heloísa.
Naquele mesmo ano, assumiu a coordenação do curso de formação de peritos criminais. De 2007 a 2010, também foi coordenadora e professora nos cursos da Brigada Militar e Polícia Civil. Em 2011 foi chamada para atuar na Força Nacional, na missão montada para atuar nos deslizamentos com centenas de mortos, em Teresópolis, área serrana do Rio de Janeiro. Lá acabaria recebendo outra função, que demandaria comandar grupos majoritariamente masculinos. Foi destacada para coordenar em Brasília o treinamento da elite das forças de segurança:
— Todos que chegavam faziam um treinamento para nivelar o conhecimento. Era um ambiente muito masculino, militar. Usei muito do meu conhecimento de ensinar para me posicionar e atuar. Sempre fui apaixonada por ensinar. As coisas foram se somando.
Desde que assumiu a direção-geral, em 2018, Heloísa não esconde que vem tentando reforçar a presença feminina. Aos poucos, foi percebendo inclusive a transformação nos ambientes. Para a própria sala, buscou móveis antigos, no depósito da SSP, numa tentativa de resgate histórico. Gosta de receber as pessoas com café e doces.
Espero que as mulheres consigam ter todo o espaço que merecem e que tenhamos força para conciliar tudo que nos é demandado.
HELOÍSA HELENA KUSER
Diretora-geral do IGP
— Numa profissão que lida com a violência, o desumano, agora temos no ambiente uma planta, um quadro, um perfume. É um acolhimento no trabalho. Não é pré-requisito, mas as mudanças aconteceram. Gosto de trabalhar com essas mulheres. Nós nos cuidamos. Isso se estende ao olhar que temos para com o servidor — descreve.
Para conciliar as demandas da direção-geral e a vida pessoal, usa o foco que aprendeu a ter na cena de crime, para manter distanciamento de cenas brutais. Em casa, orgulha-se de outra conquista. A filha escolheu seguir carreira na segurança pública e cursa a Academia de Oficiais da PM de São Paulo.
— Espero que as mulheres consigam ter todo o espaço que merecem e que tenhamos força para conciliar tudo que nos é demandado. Em casa, com a família, com o trabalho. Nos doamos muito no que fazemos. Mas vale a pena — diz Heloísa.
As diretoras
Com formação acadêmica e experiência no front das perícias, todas se dizem apaixonadas pela profissão. Conheça o perfil de quatro diretoras do IGP:
Sheila Wendt
Departamento de Criminalística
Ao longo de 15 anos, a engenheira civil atuou em perícias de incêndios, desabamentos e explosões. Hoje, dirige aquele que é considerado o coração do IGP: o departamento onde são realizados diferentes tipos de perícias. Nascida em Estrela, no Vale do Taquari, passou a morar na Capital em 1996, onde se formou em 2001, na UFRGS.
— No início, senti dificuldade para me colocar em serviços tradicionais da engenharia. O canteiro de obras é um local que tem permeabilidade pequena para mulheres. No concurso público, dependia apenas do meu esforço. O gênero não interfere. A forma de ingresso e a questão salarial, acaba refletindo numa situação bem mais igualitária —acredita.
Após ingressar na perícia aos 27 anos, em 2004, foi alocada na Divisão de Engenharia Legal, devido à formação. Ainda percebe que a presença masculina é maior no setor de engenharia. Crê que isto é reflexo do número de profissionais no mercado.
— A engenharia tem realidade diferente de outros setores. Não tenho nenhuma engenheira eletricista e poucas engenheiras mecânicas. Mas dentro do setor nunca houve discriminação nem dúvidas sobre minha capacidade de executar as perícias. Todos são tratados como iguais. Algo que não se vê muito na iniciativa privada — afirma.
Marguet Mittmann
Departamento de Perícias do Interior
Natural de São Paulo das Missões, no noroeste do RS, Marguet sonhava ser tradutora. Formou-se em Letras na UFRGS e depois passou a cursar farmácia. Neste período, descobriu a perícia em uma palestra.
— Nem sabia que isso existia. Mas me apaixonei pela profissão. Estudei para concurso e passei em 2008. Fui direto para o local de crime. Queria ser CSI — brinca, em alusão à série norte-americana de investigação forense.
Já no começo, percebeu que teria desafios por ser mulher. Os colegas queriam sempre sentar ao lado do motorista, ainda que ela chefiasse a equipe. Causava estranheza quando decidia dirigir a viatura. Não poucas vezes ouviu a frase: "Deve estar de TPM".
— Ser vista como mulher numa cena de crime, por exemplo, e não como técnica, ou ser desacreditada, é muito ruim. Competência não tem gênero. Mas uma mulher precisa mostrar que é eficiente três vezes mais do que um homem para reconhecerem que é inteligente e sabe o que está fazendo — diz.
Mesmo que a realidade não seja igual à ficção, Marguet se encantou pela profissão. Tornou-se especialista na análise de manchas de sangue. Consegue entender, por meio delas, por exemplo, o tipo de arma usada e quantos golpes foram dados.
— Numa mancha, há série de informações pertinentes para determinar o que aconteceu ali — ensina.
De lá para cá, trabalhou em outras setores, onde conseguiu aplicar sua formação acadêmica. Da Farmácia retirou o conhecimento ao analisar drogas, por exemplo, e de Letras a experiência em fonética para comparar vozes. Há dois anos, chefia as perícias no Interior, além de ser diretora-geral substituta.
— Felizmente, a figura feminina está tomando seu espaço. Com o tempo, os homens foram entendendo que as mulheres não representam ameaça por serem mulheres e sim por serem competentes. Hoje temos no IGP um grande número de servidoras e de mulheres na direção. Não é questão de ser homem e mulher, mas dar oportunidades para os dois gêneros. Ser valorizada pela competência, pelo trabalho — afirma.
Bianca de Almeida Carvalho
Departamento Administrativo
Bióloga e formada em farmácia, ingressou no IGP aos 34 anos, também em 2004. Já dirigiu o Departamento de Perícias Laboratoriais. Iniciou seu trabalho como perita no laboratório, na análise de DNA. Na época, estava iniciando o doutorado na área de Biologia Molecular.
— Via notícias sobre exame de DNA e achava fascinante. Foi uma realização poder trabalhar nessa área — diz.
Mesmo atuando no laboratório, muitas vezes precisava ir a locais onde se suspeitava que havia acontecido algum crime em busca de vestígios como sangue — nestes casos, fazia aplicação de luminol, ou perícias em veículos, por exemplo. No seu caso, diz que nunca se sentiu desprestigiada por ser mulher.
— Na época em que ingressei, a área forense no Brasil não trabalhava com DNA mitocondrial, e meu chefe me chamou para desenvolver essa parte aqui. Isso acabou se replicando para todo o Brasil. Foi uma aposta no meu trabalho, logo na chegada.
— Acho que o importante é competência, comprometimento. Não associo muito ao sexo. Mas sim ao empenho e dedicação ao trabalho — diz.
Katia Reolon Bittencourt
Departamento de Identificação
Formada em engenharia civil pela UFRGS, a porto-alegrense de 50 anos ingressou no IGP em 2004 como papiloscopista (na identificação por impressões digitais). Nesta área, antes de se tornar diretora, foi chefe da divisão de papiloscopia do Interior. Ao longo dos anos, especializou-se nessa área de impressões digitais e passou a considerar tanto a parte criminal como social recompensadoras.
— O papiloscopista é responsável pela carteira de identidade, assim como coleta vestígios em local de crime para tentar identificar quem esteve ali. Outra área de cidadania é a identificação de desconhecidos, muitas vezes pessoas que estão perambulando e não sabem dizer o nome. A gente fica com coração tranquilo quando consegue devolver um ente a uma família. Mesmo quando identifica um morto, ao menos a família tem o corpo para enterrar e encerrar aquele episódio triste — diz.
Há dois anos, quando assumiu o Departamento de Identificação, passou por uma situação que considera engraçada. As carteiras de identidade passaram a ter a assinatura dela, junto ao termo "diretor" — o layout na época não permitia alterar para "diretora".
— Dois dias depois, começou série de ligações para o departamento de que havia carteiras alteradas no comércio. As pessoas diziam: o diretor é um homem e não uma mulher. Muitas ligações fui eu que atendi. Explicava que não tinha nada de errado e a resposta era sempre: nunca foi uma mulher! — conta.
Katia considera que estudo, empenho e dedicação fundamentais para alcançar destaque, independentemente do gênero. Mas diz que é gratificante perceber o aumento da presença feminina na segurança pública do Estado.
— Dentro do departamento a minha busca é exatamente isso. Não por ser exclusivamente mulher, mas pela competência dessas profissionais. Sempre digo em reuniões: hoje estou aqui, amanhã pode ser qualquer uma de vocês — acredita.
Outros cargos
Outros cargos de gestão no IGP ocupados por mulheres são a Corregedoria, que tem como titular Tathiana Suarez, e a Supervisão Técnica, com Greice de Amorim. Ambas são peritas criminais, com experiência na linha de frente.
O órgão ainda possui o Departamento Médico-Legal (DML) e o Departamento de Perícias Laboratoriais, esses dirigidos por Eduardo Kupper Terner e Daniel Scolmeister, respectivamente. Em janeiro deste ano, dos 738 servidores do IGP, 315 eram do sexo feminino, ou seja 42,6% de mulheres.