A Justiça determinou que seja realizada reprodução simulada dos fatos (RSF), popularmente conhecida como reconstituição, da morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos. O autônomo morreu em 19 de novembro, após ser espancado no estacionamento do hipermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre.
A decisão da juíza Cristiane Busatto Zardo, da 2ª Vara do Júri da Capital, é uma resposta a uma série de pedidos da defesa do ex-PM temporário Giovane Gaspar da Silva, que está preso pelo crime. Seis réus respondem pelo homicídio triplamente qualificado – três deles presos. Outra solicitação dos advogados era para que o réu respondesse em liberdade, o que foi negado pela Justiça.
Segundo a decisão da magistrada, embora deva ser feita, a perícia não impede o recebimento da denúncia, que ocorreu em dezembro, e o seguimento do processo. Isso porque, no entendimento da juíza, trata-se de “processo em que a materialidade está provada” por meio de filmagens e depoimentos. “A inexistência de reprodução simulada dos fatos não obsta o recebimento da denúncia, embora deva, ainda ser feita e é possível o ser.”
No despacho, a magistrada determina que a Polícia Civil seja informada sobre a decisão, para encaminhar a realização da reprodução simulada. A data de perícia deverá ser informada com pelo menos um mês de antecedência para que sejam intimadas as partes e formulados os quesitos a serem respondidos com a reconstituição.
David Leal, um dos advogados responsáveis pela defesa de Giovane, diz que a intenção é compreender o papel de cada um dos réus na morte de João Alberto e quais fatores podem ter contribuído para o óbito. Sobre o pedido de liberdade, que foi negado, a defesa afirma que recorrerá da decisão.
— Quero entender basicamente como de fato se deu a morte. Inicialmente, vemos que o resultado pode ter sido atingido por múltiplas causas. Queremos entender qual o limite de atuação de cada e qual a contribuição para o resultado. Muito do que se sabe é pelas imagens, mas elas podem não dizer tudo — afirma.
A reconstituição é realizada no mesmo local do crime e todos os movimentos são acompanhados, registrados e analisados por peritos. A técnica, realizada pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP), é a mesma empregada no caso da morte de Rafael Mateus Winques, 11 anos, em Planalto, no Norte. A mãe do menino acabou presa pela morte da criança. Durante a reconstituição, que se estendeu por seis horas, a mulher precisou mostrar como o filho teria sido morto e levado até a garagem de uma casa vizinha.
O advogado Gustavo Nagelstein, que representa a companheira de João Alberto no processo como assistente de acusação, também atua no caso de Rafael, na defesa de Alexandra Dougokenski, mãe do garoto.
— Acredito que a reprodução é boa porque traz esclarecimentos do fato. É uma espécie de prova que se produz. Quem realizada a RSF são peritos do IGP, de acordo com o que eles já têm de provas no processo. Acredito que seja uma prova muito importante porque tenta se aproximar ao máximo do que aconteceu. Para nós, acaba sendo muito bom. Os peritos não são parte no processo, são isentos. Eles só tentam reconstituir o que aconteceu — afirma Nagelstein.
O Ministério Público informou por meio de nota que o interesse da defesa pela reconstituição do crime jé era algo esperado e que esta perícia não foi solicitada pela Promotoria "em razão da intensidade das imagens que existem sobre os fatos". "Essas próprias gravações já serviriam para contestar a narrativa de como os fatos transcorreram, que é o que se procura, muitas vezes, com esse tipo de perícia", afirma a manifestação.
Entenda
Todos os réus são chamados a participar da reconstituição, mas podem se recusar a fazer parte dela. A polícia é a responsável por garantir a segurança dos réus. A Justiça já espera que esta seja uma tarefa complexa, devido ao clamor público gerado pelo caso. A perícia precisará também ser agendada com o hipermercado, já que deverá ser realizada em horário normalmente de funcionamento. As testemunhas não são obrigadas a participar do ato, embora a participação delas seja importante. Defesa e acusação
O caso
João Alberto foi morto na noite de 19 de novembro, no hipermercado Carrefour, no bairro Passo D'Areia, na zona norte da Capital. Três seguranças do grupo Vector, empresa terceirizada, e três funcionários do hipermercado são réus por homicídio triplamente qualificado. Além de Giovane, Magno Braz Borges está preso de forma preventiva e Adriana Alves Dutra está em prisão domiciliar. Os demais réus — Paulo Francisco da Silva, Rafael Rezende e Kleiton Silva Santos — estão em liberdade.
CONTRAPONTOS
O que diz a defesa de Giovane Gaspar da Silva
O advogado David Leal defende que seu cliente não tinha intenção de matar a vítima e sim de imobilizá-la. A defesa encaminhou nota, onde afirma que o “caso adotou uma proporção que colocou agentes públicos a serviço do clamor social” e critica a manifestação do governador Eduardo Leite sobre o caso.
Confira a nota na íntegra:
“O caso adotou uma proporção que colocou agentes públicos a serviço do clamor social, que não é o critério correto a ser adotado no caso de prisão no curso do processo. Giovane foi um bode expiatório para demandas sociais e concretamente o oportunismo político foi a demonstração clara de uma razão cínica presente nos postos de poder que pouco querem fazer pelos seus representados, mas que só pensam nas suas próprias carreiras. O atual governador do Estado garantiu que os dois “seguranças” envolvidos seriam punidos com rigor, chegando a dizer que a investigação também seria realizada com esse mesmo rigor. Na verdade, o rigor foi a senha de entrada para a legitimidade do ato de instrumentalização política dos fatos. Com isso, a Polícia Civil e o IGP se mostraram coagidos pela ordem do governo, pouco se importando o nosso representante com a verdade dos acontecimentos. Não seria diferente quando se está a falar de um caso que recebe o tratamento não por aquilo que é, mas pelo que representa. Por outro lado, no processo as coisas acontecem como de praxe, pela lógica fria máquina burocrática que é o poder judiciário. Enquanto isso, Giovane faz cursos e estuda na prisão, sonhando com o dia que poderá voltar a viver com a família que tanto se preocupa com o futuro desse que sempre foi um bom rapaz”.
Em resposta, o governo do Estado afirmou também por nota que a atuação dos órgãos de segurança envolvidos no caso se deu de maneira técnica e com direito à ampla defesa.
Confira a íntegra:
“O governo do Estado lamenta que a estratégia de defesa faça uso de referências pessoais à atuação do governador, que fez apenas manifestações de solidariedade com a família da vítima e sobre o rigor elementar que qualquer processo criminal e de Justiça exigem. Trata-se de uma tentativa de desqualificar a seriedade e a autonomia com que os órgãos da Segurança Pública agem em todos os casos. Neste, não seria diferente. A atuação de todos os órgãos de Segurança envolvidos no atendimento e na investigação do homicídio triplamente qualificado de João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 50 anos, morto no dia 19 de novembro, no estacionamento do supermercado Carrefour, na Capital, se deu de forma absolutamente técnica. Desde o atendimento à ocorrência no local, pela Brigada Militar, a emissão de laudos periciais, pelo Instituto-Geral de Perícias, e a investigação conduzida pela Polícia Civil, todos os procedimentos observaram os ritos normais e prazos previstos na legislação. O respeito ao amplo direito de defesa e contraditório se fez permanentemente presente, tanto no inquérito conduzido pela Polícia Civil, quanto no Processo Administrativo Disciplinar da Brigada Militar, que resultou na exclusão do acusado da corporação. As conclusões do inquérito policial sobre o homicídio triplamente qualificado foram integralmente acolhidas pelo Ministério Público no oferecimento de denúncia, já aceita pelo Poder Judiciário, esfera no qual se dará o desfecho do devido processo criminal.”
O que diz a defesa de Rafael Rezende
David Leal afirma que o cliente não deveria ter sido investigado e nem denunciado, por não ter, em sua versão, participação no crime e nem poder de interferir nas ações dos demais envolvidos.
— Ele até tentou apaziguar a situação. Ele em nenhum momento praticou ato violento. O Rafael nem sequer deveria ser denunciado, tanto que foi ouvido como testemunha inicialmente. No momento não teve participação alguma. Não tinha ingerência sobre os atos dos demais, tampouco sobre sua superior, que era a Adriana—afirma Leal.
O que diz a defesa de Paulo Francisco da Silva
O advogado Renan Jung Henrique encaminhou a GZH nota, na qual afirma que o cliente não teve participação no caso, pois chegou ao local no final do desenrolar da situação e não agrediu a vítima. Confira a sequência da nota:
“A Defesa de Paulo Francisco aguarda a intimação da data acerca da reprodução simulada dos fatos, posto que ainda não restou informada pela autoridade policial de quando se dará sua realização. Salientando que, assim como vem fazendo desde o início da investigação, se coloca à disposição das autoridades para prestar quaisquer esclarecimentos que forem necessários.
No mais, a Defesa reitera que Paulo Francisco não teve qualquer participação no lamentável acontecimento que ceifou a vida da vítima João Aberto Freitas.
Paulo foi chamado via rádio, seguindo ordens de seus superiores hierárquicos, e chegou ao local dos fatos já ao final do desenrolar de toda a situação. Em momento algum agrediu ou mesmo tocou a vítima, exceto quando foi verificar seus sinais, a fim de prestar os primeiros socorros.
Por fim, a Defesa salienta que Paulo é pessoa NEGRA, sua esposa é NEGRA, seus filhos são NEGROS, seus familiares são NEGROS, seus melhores amigos são NEGROS, sendo, portanto, absurda a acusação por, supostamente, dar causa a um homicídio motivado pelo racismo, cujas autoridades que o acusam são, em totalidade, de cor branca, e que agora, ao que parece, para buscar reconhecimento da mídia e autopromoção, desejam enclausurar mais um negro nas masmorras do nosso falido sistema penitenciário.”
O que diz a defesa de Kleiton Silva Santos
O advogado Márcio Hartmann nega que o cliente tenha participado do crime:
— O Kleiton não participou do crime de homicídio, ele apenas ajudou a conter a vítima, que estava em luta corporal com os demais acusados, e fez isso porque recebeu ordens de seus superiores. No momento em que a vítima faleceu, o Kleiton não estava mais no local. Estava trabalhando na loja.
O que diz o Carrefour
Por nota, o hipermercado informou que após o fato reforçou as ações de combate ao racismo, desligou todos os funcionários envolvidos no caso e que “segue oferecendo suporte social, psicológico e financeiro à família”.
Confira a íntegra da nota:
"Desde o fim de 2020, o Carrefour reforçou as ações de combate ao racismo e assumiu publicamente diversos compromissos para aprimorar suas políticas e práticas antirracistas em toda sua cadeia, promover a carreira de pessoas negras dentro do Carrefour e a inclusão social de negros e negras no mercado de trabalho. Com isso, a companhia vem implementando mais de 50 iniciativas, que envolvem colaboradores, parceiros, fornecedores e toda a sociedade. O plano de ação foi elaborado junto ao Comitê Externo que se formou imediatamente após o caso e cujo objetivo é assessorar, de maneira livre e independente, a companhia e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas.
Os compromissos da empresa podem ser acompanhados pelo site www.naovamosesquecer.com.br, lançado no início deste mês como um portal de transparência, trazendo o detalhamento das ações que estão sendo implementadas pela rede em combate ao racismo estrutural no Brasil.
Sobre o evento trágico ocorrido em novembro, o Carrefour repudia veementemente todo e qualquer ato de violência e reforça que naquela ocasião rompeu imediatamente o contrato com a empresa Vector, toda a segurança de loja das unidades de Porto Alegre foi internalizada e todos os envolvidos foram desligados. A empresa segue oferecendo suporte social, psicológico e financeiro à família e vem avançando nos acordos com os advogados."
O que diz o grupo Vector
Por nota, o grupo Vector informou que segue contribuindo com a apuração do caso e repudia atos de violência. Confira a manifestação na íntegra:
“As prioridades estabelecidas pelo Grupo Vector, desde os lamentáveis acontecimentos no dia de 19/11/20, se mantiveram inalteradas. Continuamos contribuindo integralmente com as investigações e a Justiça. Reforçamos nosso repúdio a ações de violência. E nos comprometemos totalmente com a evolução de nossa cultura empresarial.
Acreditamos que para agir é necessário ouvir. Compreendemos os anseios da sociedade e evoluímos nossa cultura organizacional progressivamente através do amplo debate estabelecido. Somos responsáveis em treinar cada vez melhor as pessoas que compõem nossa empresa, para que elas possam cuidar melhor de outras pessoas. Afinal, nossa missão é atuar pela vida.
Para saber prevenir é necessário estar prevenido. A transformação cultural inerente à “nova vida” do Grupo Vector está sendo construída por várias mãos. A tríade de Seleção, Educação e Reciclagem, programa nomeado de S.E.R., compõe a base da cultura empresarial de treinamento dos nossos profissionais que atuam pela vida. O novo caminho definido pela direção da empresa se mostra como o mais autêntico e efetivo possível, pois nossa transformação contempla a participação da equipe de gestores e colaboradores, juntos, na construção da nossa nova “casa” cultural.
A participação integrada dos funcionários na transformação cultural da empresa, em coparticipação com a liderança, traz mais um resultado positivo. Afinal, um processo amplo de formação continuada acaba por educar também as famílias dos colaboradores e, portanto, toda a comunidade que gravita ao redor da empresa evolui com ela.
Através da formação continuada as ações de treinamento, doravante nomeadas “ações de transformação”, se configuram como oficinas virtuais e presenciais, quando possível, em que se possam instituir troca de ideias e compartilhamento de novos conhecimentos sobre diferentes aspectos da vida. Dessa maneira, toda a comunidade tem a oportunidade de debater temas sensíveis ao mundo contemporâneo e refletir sobre crenças, posturas e comportamentos que podem não ser próprios ao mundo atual. Por meio do compartilhamento e diálogo, o processo tende a ser muito mais eficiente e construtivo.
Vamos oferecer aos colaboradores a oportunidade de refletir sobre questões humanas e, assim, evoluir em suas relações sociais, aprimorando competências necessárias ao mundo atual. O objetivo desses encontros e oficinas se constitui no crescimento individual com respeito às diferenças.
Ofereceremos, por meio de programas de letramento, a ampliação do conhecimento sobre vários assuntos, cumprindo, assim, o compromisso social da educação em processo.
Em síntese, vamos trabalhar conjuntamente para o desenvolvimento integral de pessoas e não apenas habilidades básicas de nossos colaboradores. Nesse momento, nosso grupo busca evoluir e superar as dificuldades recentes, manter o respeito e zelo pelas mais de 2.000 famílias de seus colaboradores e provar seu valor para sociedade.”
GZH entrou em contato com as defesas de Adriana Alves Dutra e de Magno Braz Borges e aguarda retorno.