— Não alerta a polícia. Responde as perguntas que ele quer. Negócio é sério. Eles tão comigo, eu tô com uma arma na minha boca, não avisa ninguém, se não eu vou morrer.
O apelo da mãe a uma filha foi registrado em áudio pelo celular e com direito a foto para comprovar a ameaça: na imagem, uma mulher cabisbaixa aparece com uma arma apontada para a cabeça. No comando da ação, estava um criminoso preso em Charqueadas, que ordenou o ataque à família porque, dias antes, a filha foi visitar a mãe em um condomínio em Canoas na companhia do namorado, um policial militar (PM).
No mesmo dia, houve uma ação da Brigada Militar (BM) no local para prender um suspeito de participação em chacina, e os criminosos desconfiaram que o foragido havia sido delatado pelo PM que foi ao residencial. Queriam então punir a família por ter levado um PM ao reduto das atividades ilegais.
Primeiro, determinaram a expulsão da moradora do residencial. Dias depois, sequestraram a mulher para exigir a identificação do soldado. O plano era atraí-lo para um "acerto de contas".
O drama imposto por criminosos, porém, não era só daquela família. A Polícia Civil descobriu que dois condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida, situados no bairro Rio Branco, funcionam como espécies de cativeiro para quem lá vive. Traficantes ligados a uma facção instalaram parentes nesses locais, de onde já expulsaram, ao menos, 23 famílias, e controlam o entra e sai com a ajuda de funcionários.
A investigação, que durou um ano, embasou a Operação Cativeiro, desencadeada na manhã desta terça-feira (3), em cinco cidades: Canoas, Porto Alegre, Cachoeirinha, Pelotas e Charqueadas.
A ofensiva, que conta com aparato de 500 policiais civis e militares, guardas municipais e agentes penitenciários, é também uma resposta à máxima que os criminosos costumam alardear aos moradores, de que a polícia não pode resolver o problema deles. Além de apoio aéreo da BM e Polícia Civil, policiais foram posicionados no matagal aos fundos do residencial para bloquear eventuais tentativas de fuga.
— O ataque a um policial é um ataque ao Estado, pois o policial é a última barreira entre a criminalidade e a sociedade. Nosso objetivo é restaurar a ordem nos condomínios. Os criminosos que ameaçaram moradores serão todos identificados e responsabilizados — diz o delegado Mario Souza, diretor da 2ª Delegacia Regional Metropolitana.
O comandante do 15º Batalhão de Polícia Militar, tenente-coronel Jorge Dirceu Filho, ressaltou que as ações de combate à criminalidade organizada em condomínios populares de Canoas têm sido frequentes e que o trabalho tem sido em conjunto à Polícia Civil.
— É inadmissível. A gente pode até pensar que é um ato isolado contra o PM, mas não nós enxergamos isso de forma diferente: foi contra a Brigada, foi contra o Estado, foi um desafio daqueles criminosos contra todo o Estado — afirma o oficial.
Foram cumpridos oito mandados de prisão preventiva — dois deles em presídios — e 60 de busca e apreensão. A polícia não revela quem são os suspeitos, mas GZH apurou que um dos alvos de prisão é um porteiro do condomínio, que atuaria como "olheiro" do grupo criminoso. Até o meio-dia, nove pessoas foram presas.
A vítima que durante 10 horas foi mantida refém e ameaçada com uma arma contra a cabeça teve de ingressar no Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência à Testemunhas Ameaçadas e, hoje, vive fora do Estado. O PM, que pertence ao 15º BPM e atuava em ações nos dois condomínios, foi trocado de região. A BM deu autorização para que ele ficasse com arma e colete da corporação por 24 horas para aumentar a proteção pessoal.
Há 13 meses, um sequestro
Tudo começou em 1º de outubro de 2019, quando a jovem foi até seu apartamento para buscar roupas. Ela estava acompanhada de um soldado da BM, que usava a roupa de treinamento físico da corporação.
Logo depois de os dois saírem do local e de ocorrer uma operação no residencial, a moradora, mãe da jovem, foi interpelada por dois criminosos, que a chutaram e a fizeram falar com um criminoso preso que lidera o tráfico na região. Pelo celular, ele determinou que a mulher fosse embora do condomínio. Apavorada, ela obedeceu.
Doze dias depois, ela soube que seu apartamento havia sido arrombado e saqueado. Voltou ao condomínio para verificar a situação. Foi quando se tornou alvo do sequestro. O criminoso preso orientou a ação, determinando que ela fosse mantida refém até que revelasse o nome, foto e o endereço do PM namorado de sua filha. Ela foi levada a outro apartamento por dois homens, que intermediavam conversas dela ora com a filha, ora com o presidiário. Para o criminoso, a refém tentava se explicar:
— Eu tô na rua, eu não tô morando em lugar nenhum. Larguei meus filhos na casa da minha mãe, os pequenos, porque os grandes moram lá com ela, e fui para a rua. Posei um dia na casa de uma amiga, essa noite dormi na casa de outra amiga, eu tô assim. Recém ontem que eu consegui uma casa pra eu alugar, e faltam 300 pila ainda. A milha filha larga às 10 horas, o que tu quer que eu faça? Quer que eu mande uma mensagem para esse cara (o PM), marque um encontro e vocês vão lá e peguem ele, eu faço.
De sua cela em uma prisão de Charqueadas, o traficante intercalava ameaças à mulher e à filha dela (confira abaixo). E exercendo o poder de decidir quem pode ou não morar em seu próprio imóvel dentro do condomínio, o traficante determinou:
— Vou te passar a visão agora, tá? Agora tu vai ser moradora daí, tá? Vai morar na tua casa e tu vai ficar aí até eu resolver essa fita aí, tá? Se eu pegar o brigadiano, tá, se eu pegar o brigadiano, eu vou levar tu e a tua filha livre, só quero o brigadiano só, nem quero vocês, tá. Tu vai ficar na tua casa aí, tu não vai sair mais daí, tá. Fica tranquila que ninguém vai botar pé na tua porta, tu vai morar aí, entendeu? Morar aí, tá? Se tu bandear para outro lado aí, daí é contigo, tá. Chama tua filha que quero trocar uma ideia com ela. Vocês vão ter que pifar o brigadiano para mim, meu, só vou te passar a visão. E tu vai ficar aí, não sai daí, a casa é tua, né.
O sequestro teve fim porque a BM começou uma ação no condomínio, avisada da situação pela filha da vítima, que estava recebendo as exigências do presidiário por telefone. O porteiro que é suspeito de ligação com o grupo foi ao apartamento para avisar os criminosos sobre a presença de policiais.
A mulher foi libertada, mas ainda sob condição: teve de andar de mãos dadas com um dos criminosos e mentir que se tratava de um namorado. Desta forma, ele conseguiu escapar de um flagrante. A polícia desconfiou da versão e começou a investigação. Dois dias depois, a mulher contou em detalhes o que sofreu e revelou o plano dos criminosos para atrair e matar o PM. A investigação foi conduzida pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) de Canoas e teve colaboração da BM.
Depois que a vítima ingressou no Protege, a Polícia Civil voltou ao residencial para escoltar a mudança da família.
O contato com a filha
Assim que a moradora foi imobilizada por criminosos, em 13 de outubro do ano passado, um dos homens usou o celular dela para contatar a filha da mulher, que tinha um relacionamento com um policial militar.
Ela estava no trabalho quando começou a receber mensagens de ameaça, por volta das 19h. A conversa se estendeu até o começo da madrugada. Confira algumas das mensagens entre a jovem e o presidiário que comandava a ação:
Presidiário: Manda foto deles (do PM) aí?
Jovem: Que foto? Não tenho foto dele.
Presidiário: Meu se tu comentar isso pra esse cara se tu acha q Polícia vai resolver vou te diser q vou pegar ele e quem tiver apoiando isso.
Presidiário: Nossa conversa término.
Jovem: O que tu vai fazer?
Presidiário: É foda vcs vem prejudica quem não atrapalha a vida de vcs aí quer que eu bata palma acha q voume intimida com brigadeiro morto de fome
Jovem: Já te falei tudo que sei. estamos resolvendo
Presidiário: Bota na tua cabeça Q esse saco de lixo que tu ta protegendo não vai poder faser nada por vc
Presidiário: Ta numas que me tímida tua farda. Agora vai ser assim cada ação uma reação
Os crimes investigados
A Operação Cativeiro é mais uma que nasceu para coibir abusos de criminosos contra moradores de condomínios populares, erguidos pelo Programa Minha Casa Minha Vida.
O cenário é de expulsão de moradores, ameaças e uso do local para organizar o tráfico de drogas e esconderijo de armas.
Os condomínios, conhecidos pelos nomes das ruas em que estão situados — Pistóia e Machadinho —, no bairro Rio Branco, foram, conforme a investigação, invadidos por uma facção criminosa, que mantém o controle de acessos pela portaria e permanentes postos de observação em pontos estratégicos. Foi no condomínio Machadinho que ocorreu o sequestro da sogra de um policial militar. Também foi do residencial que a polícia captou, durante as investigações, conversas de criminosos reclamando da frequência de ações policiais.
A operação identificou oito criminosos que estariam ligados com o sequestro da moradora, ameaças à família dela e o plano para matar o policial militar. A polícia não revela nomes dos envolvidos, mas GZH apurou que um deles também foi responsável pelo ataque a um ônibus no Terminal Mathias Velho, no ano passado. Entre os feridos com o fogo, estava uma mulher grávida, que ficou 11 dias internada.
— Foi uma investigação complexa, visando a dar uma resposta enérgica para que aqueles que tentam, por meio da coação e do medo, manter o controle nestes condomínios, onde o sonho da casa própria pode se tornar um pesadelo se o Estado não se fizer presente — diz o delegado Thiago Lacerda, titular da Draco.
Como realizar denúncias anônimas
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