Na noite da quarta-feira (25), Jacques Vianna Xavier, 49 anos, repousou sobre a mesa da sala do apartamento onde vive, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, uma folha de papel. Era o comprovante de que havia pago a primeira mensalidade como doador da organização Médico Sem Fronteiras. E também um presente para o filho Kauê Borile Weirich Xavier, 16 anos. O pai esperava ver o adolescente orgulhoso, mas adormeceu no sofá enquanto aguardava. Despertou minutos depois com telefonema da polícia. Kauê havia sido assassinado.
— A delegada me ligou para que eu fosse até o Deca (Departamento Estadual da Criança e do Adolescente). Cheguei lá e havia uma história muito confusa de que um rapaz tinha se entregado, por ter matado meu filho. É algo inacreditável o que aconteceu. É muito injusto — lamenta Jacques.
Antes de o pai ser acionado, um adolescente de 16 anos havia procurado a Brigada Militar (BM), no bairro Menino Deus. Machucado e com as roupas rasgadas, contou aos policiais que havia cometido um homicídio na Zona Sul. Relatou que, junto de um amigo de 15 anos, havia assassinado Kauê. A história brutal fez os policiais cogitarem que poderia não ser verídica, até encontrarem o corpo do adolescente desfigurado em um matagal no bairro Aberta dos Morros.
A partir do primeiro adolescente, a polícia chegou ao outro autor. Era o que mantinha a relação mais próxima com a vítima. Os dois estudaram na mesma escola, no Ensino Fundamental. No 9º ano, Kauê seguiu para um colégio particular na área central da Capital, onde estava cursando o 1º ano do Ensino Médio. Mesmo não estando mais na mesma escola, o adolescente costumava visitar Kauê. Jacques diz que chegou a aconselhar o filho para que se afastasse do amigo.
— Lembro ele me respondendo: "Pai, sou o único amigo dele. Vou trazer ele para o lado do bem". Por ser bom desse jeito, é que foi morto — conclui.
À polícia, os adolescentes confessaram que o crime foi planejado por três meses. No fim da tarde de quarta-feira (25), os três seguiram de ônibus até a Zona Sul, onde ingressaram no matagal. Na mochila, os autores carregavam machadinha, martelo e faca de cozinha, que seriam usados para atacar Kauê.
Os adolescentes, ambos apreendidos pelo crime, alegaram que o assassinato foi motivado por ciúmes, porque o garoto teria se envolvido com a namorada de um deles. A família de Kauê não acredita na versão e a própria polícia tenta entender o que realmente levou ao homicídio. Os celulares estão sendo periciados.
— O Kauê se tornou amigo dele (do adolescente de 15 anos). Confiava cegamente nele. Ia na casa da mãe do meu filho, sentava no sofá. Não foi uma ou duas vezes, foram várias. Descobri depois que estava tudo planejado. Achamos que deve ser um psicopata. Não pode ser uma pessoa normal. Meu filho era um menino lindo. Bom. Um filho amado. Não acredito que tenha sido por uma menina. Ou ele teria me contado. Acredito que foi maldade pura deles — lamenta o pai.
O desaparecimento
Na manhã de quarta-feira, antes de sair para o trabalho, o advogado beijou o filho e disse que o amava. Kauê dormia na cama do pai, como costumava fazer. Não porque não tivesse a dele, mas preferia assim. Jacques pediu ao adolescente para não sair de casa, mas sabia que ele andava inquieto por conta do confinamento. As aulas estavam suspensas em razão do risco de contaminação por coronavírus.
— Tá, pai. Vou ficar — prometeu Kauê, sonolento.
Mas não ficou. À tarde, o pai soube que ele estava na casa de um familiar, no Centro Histórico. Repreendeu o adolescente por telefone e pediu que o aguardasse para que eles voltassem juntos. Combinaram de assistir ao filme Apollo 13 à noite. No fim da tarde, Jacques tentou contato com o filho, mas ele não atendia. Nesse momento, o jovem já havia sido chamado para ir até a Zona Sul pelos dois amigos, sem suspeitar que estava sendo vítima de emboscada.
— Largava qualquer coisa para ajudar um amigo. E era muito ingênuo. Era muito bom. Adotava as pessoas, se preocupava, cuidava. Abria mão das coisas que gostava para ajudar. Fazia de coração — relata o pai.
Por volta das 19h30min, o celular de Kauê não chamou mais. O advogado passou a procurar pelo adolescente nos amigos, parentes e locais que costumava frequentar. Depois de buscar por ele, voltou para casa, convencido de que o filho deveria ter esquecido mais uma vez de carregar a bateria do celular. Foi quando dormiu à espera dele e acabou sendo despertado do cochilo pela polícia.
Despedida
No velório de Kauê, o pai depositou sobre o caixão o documento que comprovava o pagamento da mensalidade para a organização Médico Sem Fronteiras. Era uma forma de homenagem ao filho. Há cerca de dois meses, os dois olhavam televisão quando o adolescente mais uma vez cobrou que ele se tornasse doador.
— Não tem vergonha pai? A gente gasta com tanta coisa — criticou, afiado com as palavras, como costumava ser.
Só pude levar no velório dele e colocar em cima do caixão. Disse para ele que agora o pai vai pagar o resto da vida. Fiz um discurso, pedindo para todo mundo se tornar doador. É muito duro. Muito duro. Um menino tão bom.
JACQUES VIANNA XAVIER
Pai de Kauê
Daquela vez, o advogado pegou o telefone e fez o cadastro. Quando o boleto chegou, acabou postergando o pagamento. Na quarta-feira, às 12h32min, disposto a não atrasar mais, quitou a mensalidade. Após procurar por ele, chegou em casa e deixou o boleto à mostra, na espera de Kauê.
— Só pude levar no velório dele e colocar em cima do caixão. Disse para ele que agora o pai vai pagar o resto da vida. Fiz um discurso, pedindo para todo mundo se tornar doador. É muito duro. Muito duro. Um menino tão bom — comove-se.
Além do pai, Kauê deixa ainda a mãe, Fabiane Borile, 35 anos, e duas irmãs.
Investigação
Segundo o delegado Raul Vier, da 2ª Delegacia de Polícia para o Adolescente Infrator, a motivação do caso ainda está sendo investigada. A aposta da polícia é em uma análise técnica que está sendo realizada nos celulares dos três adolescentes. Estão sendo avaliadas mensagens, áudios e vídeos trocados entre o trio. Também estão sendo ouvidos familiares e amigos.
Ainda conforme o delegado, despertou a atenção da polícia a crueldade do crime e o fato de que o adolescente de 15 anos já tinha histórico de ameaça contra familiares.
— Chamou a atenção a frieza com que os infratores confessaram a morte do próprio amigo, com detalhes cruéis e extremamente violentos. O mais jovem dos autores constantemente ameaça os seus próprios familiares de morte, referindo que irá matá-los a golpes de facão — disse.