Há uma semana, João* tentou levar um celular de uma mulher próximo da Avenida Independência, na região central de Porto Alegre. Com uma arma de brinquedo nas mãos e acompanhado de um comparsa, tomou o aparelho das mãos da vítima. Na fuga, acabou sendo preso por policiais militares que passavam pela Avenida Farrapos. O parceiro acabou escapando, sem conseguir levar o celular.
Do local do crime, foi encaminhado para a 2ª Delegacia de Pronto Atendimento (DPPA), no Palácio da Polícia. Sem vaga em presídios, acabou sendo acomodado na parte traseira de uma viatura. E ali ficou. Por volta das 8h30min desta quarta-feira (19), era um entre 20 presos algemados dentro de nove viaturas e sob vigia de 19 PMs de cinco batalhões diferentes – uma proporção de quase um preso para cada policial.
— Tô há sete dias sem tomar banho nem nada — reclama o preso.
Sem contato com a família, não conseguiu avisar que tinha "caído", gíria para dizer que foi preso. GaúchaZH conversou por telefone com a ex-esposa dele, com a qual tem um filho de cinco anos.
— Não estou surpresa. Separei justamente por isso. Ele dizia que ia trabalhar e saía para fazer isso. Avisei para ele parar — conta a mulher, que não quis ser identificada.
Os PMs que prenderam João vieram do reforço do Interior para a Copa América. Na lataria do carro, é possível ver que a viatura pertence ao 3º Batalhão de Choque, de Passo Fundo. Há uma semana, os brigadianos cumprem jornada de oito horas em frente ao Palácio da Polícia ao invés de patrulhar ruas da Capital. Alguns metros à frente, duas policiais de outro batalhão monitoravam três presos. Chegaram à 2ª DPPA perto das 6h e, diferente dos colegas do Interior, ficaram 12 horas no local.
— Não gosto. As viaturas têm de estar nas ruas, não aqui, paradas. Não é o nosso trabalho, isso deveria ser feito por agentes penitenciários da Susepe — opina a PM, que também não quis ser identificada.
Um dos presos sob supervisão está com tuberculose. Há três dias em uma viatura, Flávio* conta que tem dificuldade para seguir com o tratamento, realizado de forma descontinuada há nove meses. Na terça-feira, a esposa dele foi até a calçada do Palácio, na Avenida Ipiranga, e levou os medicamentos. Devido à doença, as PMs que o monitoram temem o contágio.
— A gente não está preparado. Não tem luva, máscara nem nada para lidar com esse público — conta a policial, que fica pelo menos duas vezes na semana em frente à delegacia, seguindo escala do batalhão.
Baleado e com as mãos engessadas
Duas viaturas à frente, cinco presos se acotovelavam em um carro da Brigada. O cheiro no carro era forte, revelando a falta de higiene dos ocupantes. Garrafas de plástico e restos de comida se acumulavam no assoalho. Do lado de fora, uma porção de arroz com batata foi descartada na calçada, sem cerimônia.
Um dos presos estava há seis dias nessa viatura. Perto das 11h, ele deixou o carro e, sem tempo para o banco ficar livre, outro detido já foi colocado no lugar. Foragido há dois anos do semiaberto, Miguel* foi identificado durante atendimento médico na noite de terça após ser baleado nas duas mãos. Das salas brancas do hospital foi levado para a viatura, onde mostrava os dois braços engessados, ainda com a bermuda ensanguentada.
— Minha mulher veio aqui e não me deixaram trocar de roupa — reclama Miguel.
— E os Direitos Humanos? — rebate outro preso.
Nas três horas que esteve no local, a reportagem não avistou nenhum defensor público circulando pelas calçadas da 2ª DPPA. O defensor público Mário Silveira Rosa Rheingantz reforçou que a situação está sendo acompanhada pelo órgão e que o governo tem descumprido a liminar expedida em maio deste ano que proíbe a permanência de presos em viaturas.
Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária informou que o Estado pretende alugar imóveis para abrigar presos.
(*) Nomes fictícios
"É uma situação constrangedora", afirma chefe da Polícia Civil
A reportagem chegou à frente da 2ª DPPA, na Avenida Ipiranga, por volta das 9h. Naquele horário, um cordão impedia a circulação de pessoas pela calçada. Quem precisava passar por ali tinha de seguir pelo acesso de cadeirantes, descer as escadas e contornar entre as viaturas. A chefe da Polícia Civil, Nadine Anflor, afirmou que a decisão foi tomada pela Brigada Militar para assegurar o isolamento da população.
Moradora há 20 anos do bairro Santana, uma idosa de 64 anos contou que, na terça-feira, teve de caminhar entre os carros, na Ipiranga, para passar com os cães Vicky e Max, de seis e dois anos.
— Tive de ir no meio da rua — conta a idosa, que também não quis se identificar.
Acostumada a passar pelo local, ela teme ficar em meio a um fogo cruzado caso aconteça um resgate de presos. Outra moradora da região, de 72 anos, caminha apressada pelo local, também com o cachorro.
— A gente sente medo, mas em que lugar não está violento?
Ciclistas também enfrentavam problemas. Uma obra em uma das pontas da ciclovia impedia a circulação no trecho entre a Avenida João Pessoa com a Rua Santana, em frente ao Palácio da Polícia. Quem queria seguir caminho precisava pedalar em meio aos carros ou seguir por uma rua paralela. Na manhã desta quarta, o trecho foi liberado.
A chefe da Polícia Civil, Nadine Anflor, observa que o governo tem trabalhado para encontrar soluções para o acúmulo de presos em viaturas e nas delegacias, que, segundo ela, tem atrapalhado o andamento dos trabalhos da Polícia Civil e do atendimento à população.
— É uma situação constrangedora. O que dá alento é que ontem (terça-feira) foram abertas 25 vagas para presos que saíram da 2ª DPPA - observa a chefe da polícia.
Nadine salienta a necessidade de encontrar uma solução definitiva. Em fevereiro deste ano, o governo retirou presos da Penitenciária Estadual de Porto Alegre para desafogar as carceragens. Segundo a chefe da polícia, a medida surtiu efeito, mas o acúmulo de presos novamente foi registrado.
— A solução é ampliação de vagas em presídios — entende Nadine.