Um capacho preto escrito a mão dá as boas vindas a quem chega ao apartamento de Marley Silva. Após seguidos lances de escada - o prédio não tem elevador -, a porta de ferro suporta um cartaz que anuncia "cuidado, cão bravo", e a estampa de um rottweiler contrasta com o pano usado para limpar os pés. É na entrada de casa que Maria de Fátima Silva recebe a reportagem de GaúchaZH. Demonstrando um misto de medo de quem passou os últimos três anos visitando o filho no presídio e a vontade de provar a inocência do jovem, sustenta a tese de que a prisão foi motivada pela situação social da família.
— Olha pra minha casa. Somos pobres. Aqui é um condomínio de gente pobre. Mas a gente trabalha, e meu filho nunca matou uma barata. Foi preso por ser preto e por ser Silva — disse, com os olhos marejados. O filho dela, de 26 anos, foi solto nesta sexta-feira (14) a pedido da Promotoria.
O promotor Eugênio Paes Amorim mudou de entendimento após saber que o verdadeiro autor do crime estaria sob custódia do Estado em Charqueadas, na Região Carbonífera.
— Me chegou uma informação pessoal, por alguém que eu conheço, de que não era o guri mesmo o autor e que houve uma confusão, um erro. Aí eu pedi diligências, para dissolver o júri e soltar o réu — relatou o promotor, que justifica ainda que o jovem tinha passagens por tráfico e roubo e foi reconhecido em um banco de imagens.
Aos 59 anos, Maria de Fátima vinha dividindo os dias de trabalho em uma empresa de portaria e zeladoria na zona leste da Capital com as idas ao Presídio Central.
— Passei os dias levando tudo pra ele. Se fala muito do quanto custam os presos, mas a gente tem que levar as coisas. Foi um inferno nesses três anos, eu sozinha aqui olhando para as paredes — recordou, acrescentando que os outros cinco filhos não vivem mais sob o mesmo teto que ela.
A história é conhecida no condomínio em que Marley vive com a mãe. Ao passar pelos portões sem cadeado - controlados por um vigia que mantém certa distância da calçada, sentado, de boné e camisa do Real Madrid - a primeira resposta aponta que o engano já havia chegado aos vizinhos.
— O Marley ficou guardado lá sem ter feito nada — afirmou o homem.
Durante a audiência, uma professora do réu, que busca concluir o ensino médio por meio de um projeto de Educação para Jovens e Adultos (EJA), contou que ele se preparava para uma viagem à Alemanha. Pelo seu esforço, disse em depoimento, o jovem foi contemplado com o custeio do intercâmbio. Maria de Fátima disse que ele estava inclusive estudando espanhol para auxiliar na comunicação em sua viagem.
O crime do qual Marley foi acusado aconteceu em 2015. No feriado de 7 de setembro, Matheus Luiz Aguiar de Azevedo, 17 anos, caminhava pela rua Plácido de Castro, no bairro Azenha, acompanhado pelo irmão, quando foi executado a tiros, pelas costas. A motivação apontada pela investigação seria a disputa por pontos de tráfico de drogas. No reconhecimento dos suspeitos, o irmão da vítima apontou Marley como o autor, e ele foi preso. Segundo Maria de Fátima, naquele dia seu filho estava em casa com familiares.
A mãe de Matheus, Petti Leslie Almeida Aguiar, 41 anos, entrou em contato com GaúchaZH e contestou os motivos pelos quais o filho teria sido morto. Segundo ela, foi após uma tentativa de assalto:
—Meu filho foi morto por um boné. Ele morava em Alvorada e não na (Vila) Maria da Conceição (em Porto Alegre). Era trabalhador. Deixou um filho.
Mudança na fase final do julgamento
Nesta sexta-feira (14), o futuro do estudante seria definido por sete jurados, na última fase do tribunal do júri.
A juíza Karen Luise Souza Pinheiro, que concedeu liberdade a Marley, justificou soltar o jovem pelo longo tempo em que ele estava sob custódia, ainda de forma preventiva. Ela somou a isso as novas evidências de autoria do homicídio apresentadas pelo Ministério Público - que, até então, acusava o jovem do crime:
— Depois do interrogatório, o promotor pediu novas diligências, que se buscassem roupas do Marley, para comparar com o que o atirador usava no dia do fato. Pediu também perícia no vídeo que mostra o atirador em uma motocicleta, a fim de confrontar a altura, pois Marley é bastante alto, tem 1,85m. Deferi as diligências, dissolvi o conselho de sentença e por estar preso há tanto tempo, o coloquei em liberdade.
A magistrada pondera que não pode afirmar que tenha havido um erro no processo, mas reconhece que é necessário aperfeiçoamento de todo o sistema, para evitar efeitos como o deste caso.
— Nenhum magistrado se debruça em um processo para errar. Mas temos que olhar para nós mesmos e identificar onde estão as falhas do sistema e aperfeiçoá-lo, para fazer um trabalho mais justo possível e de uma resposta social adequada aos fatos que acontecem em nosso meio. Não se pode dizer, ainda, que um erro houve, pois ele não foi julgado. Mas há um reconhecimento de que o judiciário, que o Ministério Público principalmente, precisa de algo mais.
De posse das novas provas, a acusação poderá pedir condenação ou absolvição. Como ele foi denunciado e pronunciado, uma nova sessão de júri será marcada.