No dia em que a morte da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco completa um ano, nesta quinta-feira (14), a representante para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Birgit Gerstenberg, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que a entidade comemora os "desdobramentos recentes e a prisão de dois suspeitos" do assassinato, mas acredita que é "fundamental que as investigações continuem para apontar os responsáveis intelectuais do atentado, para os levar à Justiça e desvendar os reais motivos do crime."
Para ela, a ação da Justiça "é crucial para prevenir e garantir" o trabalho dos defensores dos direitos humanos no Brasil. O escritório que ela comanda também está preocupado com a situação da Venezuela — o espaço é responsável por monitorar para a ONU a situação dos direitos humanos nos seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
— Nosso escritório recebeu numerosos relatos sobre o uso excessivo da força naquele país (Venezuela) pelas forças de segurança e por grupos civis armados — disse.
Birgit chefia a sede do ACNUDH na região desde maio de 2018 e tem em seu currículo passagens por trabalhos e missões de paz da ONU em países como Jamaica, Uganda Colômbia, Guatemala e El Salvador. Ela também afirmou que a intenção de aumentar as possibilidades de uso da força letal pelas forças policiais, conforme defendido pelo pacote do ministro da Justiça, Sergio Moro, deve ter como base o respeito ao devido processo legal.
— Neste sentido, capturar um suspeito deve ocorrer unicamente para colocar a pessoa à disposição dos mecanismos judiciais e não deveria facultar à polícia o uso da força letal.
Para ela, a prevalência de "certos grupos da população nas estatísticas sobre esse tipo de morte evidencia sua vulnerabilidade e deve servir de alarme para as instituições de proteção aos direitos humanos no país".
Confira a entrevista:
Que dados a senhora tem sobre a situação dos defensores dos direitos humanos no Brasil um ano depois da morte de Marielle Franco?
A Alta Comissária Michelle Bachelet denunciou alguns dias atrás, perante o Conselho dos Direitos Humanos da ONU, a violência contra os defensores de direitos humanos em todo o mundo por meio de ameaças, represálias, criminalização de suas atividades e, nos piores casos, assassinatos de ativistas. No Brasil, nos alarmam especialmente os casos de intimidação, ataques e até mesmo assassinatos de pessoas defensoras de direitos humanos, incluindo ambientalistas, sindicalistas e camponeses, povos indígenas, quilombolas e outros grupos tradicionais, bem como contra ativistas LGBTI, jornalistas e profissionais de comunicação, entre outros. Examinar a situação e propor medidas é um desafio importante para as autoridades brasileiras. A este respeito, o assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes é certamente emblemático. Há um ano, nosso escritório condenou este crime e pediu uma investigação rápida e completa.
Celebramos os desdobramentos recentes e a prisão de dois suspeitos por este crime. É porém, fundamental que as investigações continuem para apontar os responsáveis intelectuais do atentado, para os trazer à Justiça e desvendar os reais motivos do crime. Em todos os casos, a justiça eficaz é indispensável. Mas quando falamos de defensores dos direitos humanos — como foi Marielle Franco —, a ação da Justiça é crucial para prevenir e garantir seu trabalho. Desde seu ativismo social e político como mulher negra, lésbica, que levantou sua voz contra a violência que afeta especialmente os jovens afrodescendentes, Marielle foi uma referência e seu assassinato também é interpretado como uma tentativa de intimidar todos aqueles que defendem os direitos humanos. Por isso, é tão importante que estes casos não fiquem impunes, de modo que, com fatos, o Estado demonstre que entende o valor do papel que estas pessoas desempenham na sociedade e que não tolera os ataques contra elas.
Nestas questões, a chave é a prevenção, relacionada com a criação de um ambiente onde as instituições públicas estejam convencidas da legitimidade da defesa dos direitos humanos e que por tanto levam a sério a segurança dos defensores. Assim, na região e também no Brasil, nosso Escritório acompanha o trabalho das instituições públicas e organizações no monitoramento da situação dos defensores dos direitos humanos, e estamos comprometidos em contribuir com o Estado brasileiro nos seus esforços para melhorar a proteção destas pessoas no país.
A senhora acredita que o Estado brasileiro é capaz de dar segurança ao trabalho desses profissionais?
A criação de um Programa Nacional para a Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos no Brasil foi uma medida pioneira na região, o que representa um reconhecimento pelo Estado da importância do papel dos defensores e da necessidade de protegê-los, de criar um ambiente propício e seguro para que possam exercer seu direito. Um dos desafios do programa de proteção de defensores, para alcançar maior efetividade, é ser adotado como uma política pública e receber recursos adequados para garantir seu funcionamento institucional, descentralizado e com participação da sociedade civil. Estamos confiantes de que o Brasil poderá avançar em medidas concretas como essas, que são urgentes mas requerem sustentabilidade a médio e longo prazos. E nós estamos disponíveis para prestar assessoria, compartilhar boas práticas e experiência internacional nesses assuntos.
Que informações a senhora tem sobre a ação de milícia formadas por policiais e ex-policiais no Brasil? Qual o risco que elas representam?
A violência é um fenômeno muito presente em nossa região e sem dúvida tem impactos profundos no gozo e implementação efetiva dos direitos humanos. O Estado tem o monopólio do uso da força legal, e deve usar essa prerrogativa para assegurar a proteção de todas as pessoas, porém observando sempre os princípios de legalidade, necessidade, não-discriminação, proporcionalidade e humanidade. A ação de pessoas que têm treinamento, meios e/ou recursos do Estado mas usam a força fora do quadro legal é uma anomalia grave que ameaça o estado democrático de direito, afetando o acesso à Justiça e a governabilidade.
O Estado tem sempre o papel principal de respeitar, proteger e fazer cumprir todos os direitos humanos para todas as pessoas. Isso também significa que deve tomar medidas para que terceiros não interfiram no gozo dos direitos humanos, e portanto as autoridades devem implementar ações efetivas para prevenir, deter e punir as ações desses grupos. E aqui quero enfatizar novamente a prevenção, pois a implementação de medidas efetivas de segurança cidadã, a investigação eficaz do crime organizado e medidas de prestação de contas na lei e na prática institucional, sempre com uma perspectiva de direitos humanos, podem ser ferramentas poderosas para enfrentar o problema premente da violência na região.
Como a senhora a senhora analisa a ação das forças militares e paramilitares na Venezuela?
Nosso Escritório recebeu numerosos relatos sobre o uso excessivo da força que tem sido usado em várias circunstâncias pelas forças de segurança e outros grupos de civis armados. Há poucos dias, sobre os recentes acontecimentos nas fronteiras da Venezuela com o Brasil e a Colômbia, a Alta Comissária Bachelet condenou a violência e pediu ao governo para determinar às forças de segurança para cessar o uso excessivo da força contra manifestantes desarmados e cidadãos comuns. A situação dos direitos humanos na Venezuela já foi documentada pelo ACNUDH em dois relatórios, publicados em 2017 e 2018. E o Escritório está desenvolvendo um terceiro relatório, que deverá ser publicado este ano, de acordo com uma resolução do Conselho de Direitos Humanos de setembro de 2018, onde os próprios Estados encarregam o Alto Comissariado para documentar a situação em um relatório exaustivo.
A crise que envolve o povo mapuche no Chile é um padrão para os povos indígenas da região? Quais são as diferenças entre a violação dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil e em outros países da região?
Nosso escritório está ciente do desafio que representa encontrar um equilíbrio entre as demandas legítimas do povo mapuche por seus direitos e outros interesses sociais e econômicos. Esta situação tem profundas raízes históricas e causas estruturais relacionadas aos direitos humanos, como a discriminação, estigmatização e vulneração de direitos econômicos, sociais e culturais. Embora com suas peculiaridades, nosso escritório observa que boa parte dos povos indígenas da região continua enfrentando desafios muito similares para o gozo efetivo de seus direitos humanos. Uma parte essencial de nosso mandato no Brasil e em todos os países que cobrimos, é contribuir para a plena realização dos direitos humanos de todas as pessoas sem discriminação. Em particular, apoiamos e promovemos o reconhecimento constitucional dos povos indígenas onde ainda não existe.
Como o Estado brasileiro deve atuar para controlar o uso da força letal pela polícia no País?
Com base em sua obrigação jurídica de proteger o direito à vida e a integridade física, todos os países devem adotar e aplicar um marco normativo coerente para regular o uso da força, não apenas reconhecendo que os funcionários encarregados da aplicação da lei têm o mandato para usar a força em tarefas de segurança e ordem pública, mas também determinando quando, como e onde pode ser usada a força em forma legítima, conforme as normas e tratados internacionais de direitos humanos ratificados no tema. O Brasil não possui uma lei federal que regulamente o uso da força, e portanto um primeiro passo seria promover um processo de discussão participativo e democrático sobre o assunto, incluindo não apenas parlamentares e funcionários policiais, mas também a sociedade civil e instituições nacionais como o Conselho Nacional dos Direitos Humanos e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
Os Estados devem fornecer treinamento e dotar os funcionários policiais com distintos tipos de armamento e munições para que possam fazer um uso diferenciado da força e as armas de fogo, visando a restringir cada vez mais o uso de meios que possam causar ferimentos ou mortes. O uso das armas letais ou potencialmente letais deve ser regulamentado expressamente no marco regulatório do uso da força. Neste assunto, a regra principal é que os policiais só poderão usar armas letais intencionalmente quando for estritamente inevitável para proteger uma vida. Também é importante reforçar a fiscalização sobre a ação das forças de ordem e melhorar os processos de seleção e avaliação dos funcionários policiais, procurando que tenham qualidades éticas, psicológicas e físicas apropriadas para o exercício eficaz de suas funções.
Como a senhora analisa a intenção do Brasil de aumentar as circunstâncias em que a força letal pode ser usada legalmente pela polícia contra um suspeito?
Gostaria de dizer que temos recebido informações alarmantes de que as taxas de homicídios no país vêm atingindo recordes históricos nos últimos tempos e que o número de pessoas mortas por causa da ação de policiais também tem aumentado com o passar dos anos. Também são preocupantes as informações que revelam que a violência letal afeta desproporcionalmente os jovens afrodescendentes no país.
Embora o uso da força seja necessário e legal em alguns casos, quando existe uma ameaça séria contra a ordem pública e a segurança, sempre deve responder a um objetivo legítimo de aplicação da lei e respeito aos direitos humanos. E ainda mais o uso da força letal, que segundo as normas internacionais sempre deve ser excepcional, e repito, estritamente inevitável para proteger a vida. Neste sentido, capturar um suspeito — fora dos casos onde existe um perigo real para a vida de uma pessoa — deve ocorrer unicamente para colocar a pessoa suspeita à disposição dos mecanismos judiciais, e não deveria facultar a polícia para fazer uso da força letal. Qualquer medida que desrespeite estas normas poderia atentar contra princípios básicos para um estado democrático de direito, como a presunção de inocência e o devido processo legal.
Qual a diferença entre a situação do Brasil da defesa dos direitos humanos em relação a outros países da região?
Cada país tem uma situação particular a respeito da proteção dos direitos humanos. Seus diferentes fatores políticos, históricos, sociais e outros fazem com que seja difícil realizar comparações. No entanto, temos identificado vários desafios comuns e elaboramos uma estratégia por país para a região, para os próximos quatro anos.
A estratégia inclui enfoques sobre como trabalhar com os Estados nas legítimas demandas das vítimas das ditaduras que continuam sem resposta, prestar assistência em direitos humanos e segurança pública, a prevenção da tortura, enfrentar a discriminação contra parcelas da população que vivem a vulneração de seus direitos em todos os âmbitos, bem como a igualdade e os direitos das mulheres, a proteção de defensores dos direitos humanos, os espaços para o exercício das liberdades públicas e os direitos humanos no campo do desenvolvimento sustentável, com ênfase no direito a um meio ambiente saudável e a responsabilidade das empresas neste tema. Esta agenda é comum para a região e a nossa ideia é dialogar com as autoridades brasileiras em um breve prazo, sobre como podemos prestar assistência em programas e planos sobre estes assuntos, bem como com a sociedade civil para identificar formas de fortalecer seu trabalho em direitos humanos.
América Latina tem um histórico de ativismo muito importante, por exemplo na denúncia de violações dos direitos humanos durante as ditaduras militares e a defesa da democracia. No Brasil, um tema que mobiliza os ativistas é a discriminação derivada das iniquidades em termos de recursos, renda, poder, o acesso a condições de vida adequadas e em geral aos direitos econômicos, sociais e culturais no contexto de um desenvolvimento sustentável. Desde as Nações Unidas, uma prioridade é apoiar os Estados em seu compromisso de implementar uma agenda de desenvolvimento sustentável para o ano 2030, e combater a desigualdade é indispensável para atingir esse objetivo. Além disso, estamos preocupados com a situação das mulheres e os altos números de feminicídios, violência e os ataques contra as mulheres ativistas por defender a igualdade de gênero.
Há poucos dias, o relator da ONU sobre defensores de direitos humanos, Michel Forst, alertou por exemplo sobre o aumento do uso do conceito "ideologia de gênero" que, principalmente nesta região, é apresentado como uma tentativa de movimentos feministas e defensores dos direitos LGBTI para desestabilizar a ordem social. Enfim, gostaria de insistir em um ponto: embora tenham passado 70 anos desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e apesar de todas as conquistas alcançadas graças ao trabalho de incansáveis defensoras e defensores, não podemos baixar a guarda. Devemos fazer todos os esforços necessários para que a defesa dos direitos humanos seja uma causa nobre em cada sociedade, e jamais considerá-los como garantidos.