Era dezembro de 1974 e o primeiro Natal de um jovem casal de namorados em Porto Alegre. Quando abriu o presente, Helena estranhou. Tinha recebido copos de cristal. "É porque vou casar contigo", avisou Jairo. Ela riu. Era o primeiro namoro dela.
Quase 40 anos depois, a professora aposentada tenta com lembranças driblar o vazio de quem perdeu o companheiro. Em 31 de março, Jairo Maciel, 63 anos, tornou-se um dos 12 motoristas de aplicativo assassinados desde que o serviço foi implementado na Grande Porto Alegre. No mesmo período, oito taxistas foram mortos, numa estatística que indica migração da violência.
— Estou tentando juntar os pedaços. Foi o único homem da minha vida. Tivemos vitórias, tivemos derrotas, enterramos um filho (vítima de câncer, com um ano). Casamos e vivemos quase 40 anos por amor. A gente ficou junto porque se amava. Essa é nossa história. Quando estou muito triste, lembro dela e busco força — diz Helena Noms Maciel, 60 anos.
Cheio de vida, Jairo era a alegria da casa. Só sabia falar alto. Agitava as três filhas, mimava os quatro netos. No último verão, levou a família para a praia e alugou uma casa em formato de castelo. A neta, de nove anos, voltou realizada porque vô Jairo tinha lhe dado dias de princesa. O mesmo vô que lhe ensinou a nadar, quando ela morria de medo da água e parou de fumar após um pedido dela. Jairo também socorria os guris do condomínio. Bicicletas e crianças se reuniam em frente à casa da família. "Seu Jairo, conserta minha bike?". Socorria ainda os vizinhos quando precisavam.
— Ele tinha isso de ajudar os outros. Era uma pessoa que se doava — conta a mulher.
Era também assim nos trabalhos que teve. Nos 10 anos de taxista, atendia corrida em todos os lugares. Não sabia dizer não. Chegou a participar de um parto. Quando Helena se aposentou, o casal comprou um caminhão. Jairo finalmente realizaria um sonho de vida: se tornaria caminhoneiro. Era apaixonado pela estrada. Em 2006, no trajeto para Rio Grande, tombou o caminhão em uma ponte. Saiu inteiro, mas o veículo não teve conserto. Inquieto, tentou outras profissões. No início de 2017, comprou um Prisma zero e escolheu a placa que iniciava com JAI. Passou a fazer corridas pela Uber.
— Vou trabalhar nisso até fechar os 65 anos e me aposentar — planejava.
Durante as madrugadas, Helena monitorava pelo celular onde o marido passava. Se fosse área de risco, ligava e pedia que se cuidasse, mas sabia que Jairo não recusava clientes.
— Muitas vezes ele levou crianças doentes, pessoas passando mal, que moravam no fim do mundo. Os outros cancelavam. Ele não. Sempre pensava que podia ajudar alguém — recorda.
Três meses depois do crime, a professora tenta encontrar formas de consolar os netos. A pequena, de quatro anos, acredita que o avô é uma estrela. Todas as noites, corre na janela, procura uma no céu para conversar. Quando a saudade aperta, a família usa uma receita que ele mesmo deixou. Jairo chorava de tristeza, chorava de alegria, de emoção, numa Copa do Mundo, no jogo do Inter, no casamento, no nascimento dos filhos e dos netos. Emocionava-se com o hino do Rio Grande.
— Ele nos ensinou a chorar. Talvez isso esteja nos ajudando.
Em dezembro, o casal completaria quatro décadas de casamento.
— Tínhamos uma cumplicidade, um companheirismo. A gente teve uma boa caminhada juntos. Mas eu esperava fechar meus 40 anos de casados. Queria muito que ele fizesse os 65 anos e finalmente se visse aposentado, como ele queria. Em casa, tudo lembra ele. Tem o cheiro dele. O pior de tudo é o vazio.
Crime na véspera da Páscoa
Na véspera da Páscoa, Helena pediu que o marido não fosse trabalhar. "Não posso me dar ao luxo de não ir", respondeu Jairo. Às 5h30min, deixou a casa na Zona Sul e não retornou mais. Helena soube pela Brigada Militar que o carro havia sido encontrado, após ter sido usado para cometer assaltos na Restinga. Vizinhos e amigos percorreram os bairros durante horas em busca de Jairo
— Começou uma corrida contra o tempo. A gente pensava que podia estar ferido ou amarrado. A medida que foi anoitecendo, fui começando a achar que não... Não consigo saber porque mataram ele. Não entendo. Não é o aplicativo que levou ele para a morte. O aplicativo foi uma opção que ele teve de trabalho. Foi o livre arbítrio dele, a falta de filtro — lamenta.
O corpo foi encontrado na Estrada do Rincão, no bairro Belém Velho, no domingo de Páscoa. Um dia depois, Helena viu uma multidão no cortejo no Cemitério São Miguel. Do lado de fora, motoristas se uniam em um buzinaço de protesto e homenagem ao colega.
— Sabíamos o quanto ele amava ajudar os outros, mas aí me dei conta que as pessoas amavam ele. Ele vivia intensamente. Era muito empolgado com a vida. Uma pessoa feliz. Isso me mostra que a vida dele não foi em vão. Só não sei porque ele teve que partir agora. A parte mais difícil é a brutalidade.
A investigação
A Polícia Civil identificou dois suspeitos de terem atacado o motorista para utilizar o carro em assaltos. O motorista foi morto a tiros. Os dois foram expulsos da Restinga por uma facção criminosa após o crime. Os líderes estariam contrariados porque após a morte a polícia passou a circular com frequência em condomínios da região. Um dos suspeitos foi encontrado morto em 25 de maio e Jaderson Ataídes dos Santos, 20 anos, segue foragido.
Nota da Uber:
"A Uber lamenta que o parceiro Jairo Maciel tenha sido vítima desse crime terrível. Compartilhamos nossos sentimentos de mais profundo pesar com sua família, a quem já contatamos a fim de prestar todo o auxílio necessário nesse momento de enorme tristeza e dor. A Uber está colaborando ativamente com as autoridades policiais nas investigações, fornecendo todos os dados necessários, na forma da lei, e espera que os responsáveis pelo crime sejam punidos."
"Lá em casa estão sempre com medo"
Após ficar desempregado, um motorista de 40 anos começou a fazer corridas para aplicativos há dois anos. Há sete meses, deixou de circular à noite, por conta do nascimento da filha.
– Minha mulher decretou que eu não ia mais. À noite, o trânsito é mais tranquilo, gasta menos combustível, pega corridas boas, mas não compensa. É muito risco – relata o homem, que não quis ser identificado.
Para o condutor, um dos perigos é o cliente pedir corrida para outro. Foi assim que acabou obrigado a circular com traficante dentro do carro. Por precaução, rejeita levar pessoas quando desconfia.
— Se é suspeito, cancelo e vou embora. Lá em casa estão sempre com medo – conta.
Um taxista de 30 anos conta que trabalhou três meses por aplicativo, mas desistiu. No táxi também atende por aplicativo. Ele avalia que o principal perigo está no veículo usado pelos condutores das plataformas, que não é identificado.
– Migrou mesmo. Se roubam o táxi, tu avisas os colegas, diz o prefixo, os carros têm GPS e com essa cor não tem como esconder. Não é um veículo atrativo para o crime.
Na última semana, foi derrubado o veto do prefeito Nelson Marchezan que permitia que os carros seguissem vermelhos – agora, serão brancos.
Outro condutor de táxi, de 58 anos, viu um dos filhos optar pelos aplicativos como forma de complementar a renda. Preocupado com a violência, deu orientações ao jovem sobre como proceder:
— Disse a ele aonde não ir. E para recusar corridas se achar suspeito. No táxi, houve uma seleção. Reduziram os motoristas.
Corridas por fora e descontos acertados direto com clientes
Um condutor de 35 anos, morador da Capital, há um ano e meio no aplicativo, admite que aceita fazer corridas por fora da plataforma. Para isso, chegou a divulgar o número em redes sociais. O valor é acertado com base no que seria cobrado pelo app. Como não precisa arcar com o desconto da plataforma, oferece descontos de 10% ou 20%.
– Sei que tem mais risco. Tento ver quem é o cliente. Alguns já conheço. Tenho valores acertados. Mas a verdade é que a gente não pensa muito na hora. Só lembra que tem de voltar para casa e pagar as contas.
Outro motorista de aplicativo conta que se recusa a aceitar corridas por fora, por saber do risco:
– Para mim, é aí que as mortes acontecem, com os conhecidos, porque não querem ser identificados. Os caras fazem uma, duas vezes corrida para o passageiro, por fora. E não acontece nada. Aí pegam confiança. Na terceira, ele te assalta.
Detalhe GZH
Isabel Lazzarin Gonsalves, 29 anos, moradora de Gravataí, foi encontrada morta dentro do carro em Mostardas, na Região Sul, no dia 2 de julho. Na quarta-feira passada, Tiago Farias Lima, 33, foi morto a tiros em Alvorada. A Uber informou que ele estava bloqueado pela plataforma. Os dois casos não estão contabilizados nesta estatística.