Era dezembro de 1974 e o primeiro Natal de um jovem casal de namorados em Porto Alegre. Quando abriu o presente, Helena estranhou. Tinha recebido copos de cristal. “É porque vou casar contigo”, avisou Jairo.
Ela riu. Era o primeiro namoro dela. Quase 40 anos depois, a professora aposentada tenta, com lembranças, driblar o vazio de quem perdeu o companheiro. Em 31 de março, Jairo Maciel, 63 anos, tornou-se um dos 12 motoristas de aplicativo assassinados desde que o serviço teve início na Grande Porto Alegre, em novembro de 2015.
No mesmo período, oito taxistas foram mortos, uma estatística que indica migração da violência.
— Estou tentando juntar os pedaços. Foi o único homem da minha vida. Tivemos vitórias, derrotas, enterramos um filho juntos (vítima de câncer, com um ano). Casamos e vivemos quase 40 anos por amor. A gente ficou junto porque se amava. Essa é nossa história. Quando estou muito triste, lembro dela e busco força — diz Helena Noms Maciel, 60 anos.
O condutor foi um entre os quatro mortos neste ano em Porto Alegre e Viamão. Em contrapartida, em 2018, não houve registro de assassinato de taxista. O maior número de condutores de aplicativos em circulação – embora não revelado pelas empresas – e o fato de o carro não ter identificação estão entre fatores citados para explicar mudança nos alvos de criminosos.
— Motorista de aplicativo não tem aquela experiência de rua. É alvo fácil. A fragilidade do app permite que criminosos utilizem cadastros falsos. Ficou muito mais cômodo para o bandido chamar o carro. Migrou muito. Temos de criar mecanismos que deem certa segurança. O bandido não quer se identificar — argumenta Reinaldo Ramos, presidente da Associação dos Motoristas Privados e de Tecnologias (Ampritec), que defende maior rigor no cadastro dos usuários.
Quantidade de taxistas caiu em Porto Alegre
O Sindicato dos Taxistas (Sintáxi) da Capital concorda que houve migração da criminalidade. Para a entidade, a redução está atrelada ao menor número de táxis em circulação à noite. O número de profissionais caiu de 10 mil, em 2015, para cerca de 6 mil hoje.
— Gostaria que tivesse melhorado a segurança, mas é ilusório. O que houve foi migração para outra vítima. Os aplicativos têm carros que podem ser usados para assaltos e para venda. O nosso, com essa cor (vermelho ibérico), não serve. O taxista, geralmente, conhece os locais perigosos. No aplicativo, tem muitos condutores novos. Para o assaltante, é uma barbada — afirma Nei Lazzari, presidente do Sintáxi.
À frente da Associação de Motoristas Particulares e de Aplicativos do Rio Grande do Sul (Ampa-RS), Carlos Guessi afirma que a violência tem aumentado devido à fragilidade do cadastro dos usuários com pagamento em dinheiro – emenda que exigia mais documentos foi vetada na Capital.
Para o representante da categoria, seria necessário enviar foto de documentos e do usuário. Assim, cairiam casos em que ladrões usam celulares de outras pessoas e perfis falsos para atrair vítimas, argumenta:
— Temos um cadastro rigoroso com motoristas. O mínimo que as plataformas devem fazer é exigir cadastro completo dos usuários para garantir segurança. Hoje, qualquer um pode entrar no aplicativo e chamar. O criminoso não vai querer se identificar.
Emendas vetadas
Nelson Marchezan, prefeito da Capital, sancionou em junho o projeto de lei que regulamenta o serviço de transporte por aplicativos. Foram vetadas emendas que obrigavam a indicar ao condutor o destino da viagem antes de começar a corrida e a enviar foto, CPF e RG do usuário para pagamentos em dinheiro.
O prefeito argumentou que essas emendas gerariam interferência no modelo de negócios e criariam situações que podem resultar em preconceito ou assédio sexual.
Falta de acesso aos dados de condutores dificulta investigações
Diretor do Departamento de Polícia Metropolitana, Fábio Motta Lopes confirma a migração da criminalidade, mas ressalta que, em parte os casos de assaltos, os condutores não estavam com o app operando:
— Não estou jogando responsabilidade na vítima. Mas nem sempre estão em serviço.De acordo com o delegado, o perfil de criminosos varia, já que o objetivo do roubo pode ser obter dinheiro, celular ou mesmo o veículo. Para o policial, o fato de os criminosos usarem celulares de outros ou roubados dificulta a identificação:
— Eles usam linhas vinculadas a outras pessoas (parte delas roubada). Tratamos esses casos como prioridade.
“Nas barreiras, não tem como selecionar motorista”, diz oficial
Para o comandante do policiamento da Capital, coronel Jéfferson Jacques, o fato de não haver cadastro para saber quem são os motoristas em serviço dificulta o trabalho de prevenção. Sobre os latrocínios (roubos com morte), o oficial afirma que a Brigada Militar atua na repressão aos roubos de veículos, como forma de precaução.
— Nas barreiras, não temos como selecionar só o motorista de aplicativo. Temos acesso aos dados depois que acontece o delito. Traçar ações de proteção fica difícil. Elas acabam incluídas na estratégia global de segurança. Muitas vezes não é por ser motorista de aplicativo que foi morto. É por contexto pregresso, que só conhecemos depois que ocorre.
Jacques não entende que tenha ocorrido migração dos ataques aos táxis, mas afirma que fatores contribuem para tornar o aplicativo mais atrativo.
— Acho que o alvo é o carro. E tem a questão da oportunidade. Em vez de ir até o táxi, o criminoso chama a vítima.
Detalhe GZH
Isabel Lazzarin Gonsalves, 29 anos, moradora de Gravataí, foi encontrada morta dentro do carro em Mostardas, na Região Sul, no dia 2 de julho. Na quarta-feira passada, Tiago Farias Lima, 33, foi morto a tiros em Alvorada. A Uber informou que ele estava bloqueado pela plataforma. Os dois casos não estão contabilizados nesta estatística.
CONTRAPONTOS
O que dizem as empresas
Uber – A empresa informou que 10 vítimas não estavam em corrida pelo app quando houve o crime. Informou ainda que, no caso em que foi confirmada suspeita de autoria pelo usuário, colaborou com a polícia. A plataforma afirma que tem mais de 32 mil motoristas no Estado e que segurança é considerada prioridade. A empresa informou que o aplicativo exige que seja informado CPF e data de nascimento para pagamentos em dinheiro e que o motorista pode compartilhar informações sobre o trajeto com quem desejar.
99 – A plataforma alegou que segurança é prioridade máxima do aplicativo. A empresa montou uma equipe composta por mais de 30 pessoas incluindo ex-militares, engenheiros de dados e psicólogos para atuar na área. A plataforma manifestou ainda que usuários precisam informar CPF e data de nascimento para pagamentos a dinheiro. A empresa estuda a solicitar foto do cliente. Motoristas podem optar por não receber pagamento em dinheiro. O aplicativo faz mapeamento de áreas de risco e envia notificações sobre essas zonas.
Cabify – Afirma que a segurança é um dos seus principais pilares de atuação. A Cabify relata que investe e desenvolve continuamente tecnologias para reduzir possíveis riscos de segurança. O aplicativo não atua em regiões da cidade onde considera a demanda baixa ou por considerar área de risco. Aceita somente pagamento em cartão. A empresa reforça que está à disposição para ajudar as autoridades competentes e orienta usuários e motoristas parceiros para que relatem toda e qualquer situação atípica e suspeita para o suporte da Cabify.