Se por um lado pretendiam manter o esquema escondido, a ostentação de alguns PMs - alvos de uma operação na última segunda-feira (11) - despertou desconfiança dos colegas. Gastos pareciam não condizer com o salário de policial. Viagens internacionais, carros luxuosos, jantares em restaurantes caros passaram a pipocar nas redes sociais. A vida de glamour era atribuída ao salário da mulher, da renda da família ou de alguma herança.
— Chamava a atenção policial ostentando em ambientes luxuosos. Mas entre perceber e provar que aquilo ali não é legal é difícil — conta um colega de batalhão.
Enquanto uns esbanjavam, outros tentavam apagar rastros deixados pelo envolvimento com o crime. Chegavam a pedir para trocar de escala ou elogiavam uns aos outros para a chefia, como forma de serem considerados fora de suspeita. Mas nem sempre conseguiam esconder os lucros. No dia da operação, R$ 240 mil foram apreendidos entre eles.
— Ter R$ 18 mil na tua casa, debaixo do colchão, não dá. Sem contar a questão de policiais com droga dentro de casa. Uma coisa não casa com a outra. Não é por ser policial que fica isento — revolta-se um servidor do batalhão.
“Depuração dos quadros é necessária”, diz subcomandante da BM
O MP solicitou à Justiça o sequestro e o bloqueio de bens. O pedido foi parcialmente deferido.
— A ação foi clara demonstração de que a sociedade gaúcha e suas instituições públicas não são tolerantes a desvios de condutas dos agentes públicos, principalmente quando estas dizem respeito àqueles que têm o dever de fazer cumprir as leis e proteger as pessoas, no caso policiais. A segurança deve começar dentro de casa e, por isso, a depuração dos quadros é necessária e tem o total apoio dos próprios profissionais — atesta o coronel Eduardo Biacchi, subcomandante-geral da Brigada Militar.
Agora, é urgente a continuidade do trabalho. Além dos policiais que acabaram presos, chegaram a ser realizadas buscas nas residências de outros PMs, sob investigação. A expectativa com as apreensões é de que surjam mais suspeitos e a descoberta de outros crimes. Se as informações de um único celular serviram para desencadear tantas descobertas, o conteúdo guardado nos 126 telefones apreendidos deve, no mínimo, surpreender. Os cinco dias das prisões temporárias venceram na sexta-feira e o MP pediu a renovação, que foi aceita pela Justiça – os flagrantes foram convertidos em preventivas. Os presos estão recolhidos no Presídio Militar da Capital.
O começo da apuração
As primeiras desconfianças de que algo estava errado dentro do 11º Batalhão de Polícia Militar – um dos três maiores de Porto Alegre – vieram justamente do lado oposto. Suspeitos de crimes reclamavam enquanto eram conduzidos às delegacias:
— Se fosse outro policial, a gente não estaria preso.
A frase, que poderia ser só forma de depreciar o trabalho dos PMs, começou a se repetir. Os presos resmungavam que se estivessem sob custódia de outra guarnição entregariam os produtos ilegais apreendidos (materiais furtados ou roubados, armas ou drogas) e sairiam livres.
Do outro lado, os policiais, que não integravam o esquema, começaram a estranhar a incidência dos relatos contra seus colegas. Mas os presos não citavam nomes. E não havia como comprovar que isso estava ocorrendo.
Em maio do ano passado, nova suspeita recaiu sobre uma guarnição do batalhão. Um homem procurou a BM para contar que havia sido extorquido por dois PMs. Ele admitiu que fazia o transporte de R$ 4 mil em dinheiro, obtido com transações do jogo do bicho, e disse que durante o trajeto foi interceptado pelos policiais, que teriam ficado com a quantia.
– Eles identificaram a pessoa como sendo responsável por levar o dinheiro das bancas do jogo do bicho para determinado ponto e abordaram essa pessoa. O cara estava levando dinheiro da Bom Jesus para outro lugar e eles foram acompanhando. E só conseguiram abordar lá na Zona Norte – conta um PM, ouvido pela reportagem.
A Corregedoria foi informada do caso e buscas foram feitas na viatura e nos veículos particulares dos PMs. No carro de um deles, foram encontrados R$ 247 e com o outro R$ 1 mil – este último alegou que era dinheiro para pagar a pensão do filho. Os policiais negaram ter interceptado o homem e diziam não ter ido até o local onde teria ocorrido a abordagem.
GPS de viatura comprovou que PMs deixaram área de batalhão
Como saíram da área do batalhão – que se estende da Bom Jesus até o bairro Mont’Serrat – precisaram produzir relatório de serviço para justificar o percurso. Ali constava que tinham estado na área onde ocorreu a abordagem. Por meio do GPS da viatura, os investigadores conseguiram comprovar o trajeto do carro e a parada para abordar o “bicheiro”.
Os dois PMs foram presos, mas após três meses, deixaram o cárcere do 1º Batalhão de Operações Especiais (BOE), para onde são encaminhados policiais. E acabaram afastados da BM. Um deles acabou novamente preso na última segunda-feira.
Na casa do outro, foi cumprido mandado de busca e apreensão. Zero Hora apurou que ele está em processo de exclusão da corporação.
– Esse envolvimento deles com marginais estava atrapalhando o serviço – conta um policial, que atuou no mesmo batalhão.
As estratégias dos PMs presos
A prisão dos dois policiais militares, há mais de um ano, ajudou investigadores a desvendar parte da atuação do grupo organizado dentro do batalhão.
A apreensão do celular de um dos PMs levou a BM a descobrir que outros policiais podiam estar envolvidos no esquema. A partir do aparelho, conseguiu se identificar os rastros deixados pelo envolvimento dos PMs com criminosos. Os investigadores também descobriram que os policiais tinham ao menos três celulares para fazer as negociações, o que ajuda a explicar a quantia de mais de cem aparelhos apreendidos na operação da semana passada.
GaúchaZH apurou que policiais agiam pelo menos com três estratégias diferentes, desde pouco elaborada até mais complexa. Todas com intuito de obter dinheiro dos criminosos.
Em duas situações, a “propina às avessas” ocorria nas abordagens na rua. Para liberar criminosos, os policiais exigiam pagamento em dinheiro. O valor era entregue ali mesmo ou logo depois, por depósito bancário. A quitação do “pedágio do crime” garantiria caminho livre, sem a ida a uma delegacia.
— Se o policial aborda alguém suspeito e encontra algo, uma mercadoria suspeita de roubo ou furto, drogas ou armas, se não age com legalidade, abre-se o leque da corrupção – afirma outro PM.
Policiais envolvidos temiam ser descobertos
Mas o envolvimento dos policiais com criminosos não se limitava à extorsão, segundo investigações. Uma terceira estratégia mais elaborada consistia em se apropriar de produtos roubados ou furtados nas blitze. Os objetos acabavam sendo entregues à facção aliada aos PMs, eram vendidos, e parte do lucro retornava para os policiais. O esquema valia para eletrônicos, mas também servia para o comércio de drogas ou armas.
— A corrupção como um todo é difícil de comprovar. Se tu não tens prova, não tem como pegar ninguém. O bandido chega e diz “o policial tirou dinheiro do meu bolso”. O cara tem uma ficha policial e tem todo interesse em querer manchar a imagem da polícia. Mas nesse caso se conseguiu prova – relata um oficial.
À medida que o esquema vinha à tona, policiais envolvidos passaram a temer serem descobertos. Alguns decidiram deixar o 11º BPM e pedir transferência para outras unidades da corporação. Isso ajuda a explicar as prisões de policiais pertencentes a outros batalhões.
— Essas pessoas começaram a se sentir incomodadas e pediram transferência. E muitos foram aceitos. Todas as transferências ocorreram a pedido dos interessados e alguns conseguiram por estar dentro do prazo estabelecido — conta um PM que já trabalhou no 11º BPM.
Dos 10 presos, cinco tiveram a transferência negada pelo comando. Os pedidos eram para realocação ao Interior. Além deles, pelo menos outros quatro PMs – alguns integrantes da lista de exclusão do quadro da BM – conseguiram a transferência.
Contrapontos
Procurado pela reportagem, o comandante do 11º BPM, tenente-coronel Douglas da Rosa Soares, salientou que procurou a Corregedoria da Brigada Militar logo após ter conhecido do envolvimento de policiais com criminosos, há mais de um ano. A partir daí, o comando passou a apoiar as investigações, que culminaram nas prisões dos 10 PMs.
— Nosso objetivo foi ser transparente. Porque é inadmissível ter policial corrupto no serviço.
Os investigados
Soldados do 11° BPM que ingressaram na corporação em 10/8/2009
Vitor Ronaldo Pereira Hernandez
Tinha mandado de prisão por associação com organização criminosa
O que diz a defesa: o advogado Marcio Rosano Dias de Souza informou que só deve se manifestar sobre o caso após ter acesso aos autos do processo.
Romário Soares Corrêa
Tinha mandado de prisão por associação com organização criminosa (encontrado com armas e drogas)
O que diz a defesa: não foi localizada.
Italo Vitcoscki Bevilaqua
Tinha mandado de prisão por associação com organização criminosa e comércio de armas O que diz a defesa: os advogados Carlos Eduardo Galant Lopes e Gabriela John dos Santos Lopes afirmaram que ainda não tiveram acesso à íntegra do processo.
— Estamos aguardando para tomar ciência de toda a situação e começar a estudar o que pode ser feito — afirmou Gabriela.
Alisson Fernando Frizon
Tinha mandado de busca e apreensão (foi encontrado com drogas)
O que diz a defesa: não foi localizada.
Tiago Aquino de Souza
Tinha mandado de busca (associação com organização criminosa e armas)
Gabriel Luis Corrêa da Costa
Tinha mandado de busca e apreensão e foi encontrado com drogas
O que diz a defesa de Tiago e Gabriel: o advogado Fabio Cesar Rodrigues Silveira observa que ainda não teve acesso aos autos, o que foi negado pela Justiça. Entretanto, deve pedir a liberdade do seu cliente.
— Vamos seguir tentando a liberdade dos nossos clientes, apesar da excepcionalidade de estarem negando o direito básico de saberem do que são acusados — observou o advogado.
3º sargento André Ricardo Simplício Soares
Tinha mandado de busca e apreensão e foi encontrado com drogas
Data de ingresso: 02/10/1993
O que diz a defesa: a advogada Andrea Ferrari salienta que o seu cliente nega “veementemente” envolvimento com o grupo criminoso. Ela observou que vai pedir a liberdade do sargento, mas está tendo dificuldades para obter acesso aos autos.
Soldado Roger Lopes da Silva, do 31° BPM
Não há informações sobre o tipo de mandado
Estava lotado: 31ºBPM.
Foi do 11º BPM entre 2010 e 2015
Data de ingresso: 10/8/2009
O que diz a defesa: O advogado David Leal da Silva observa que ainda não teve acesso aos autos e, por isso, desconhece o motivo de Roger estar preso. Ele ainda defende um dos cinco civis presos.
— Se analisarmos a legislação pertinente e a própria súmula vinculante número 14 do STF, é fácil de perceber que é totalmente inadequada toda situação em que nos encontramos. Meus clientes foram presos na segunda-feira, estão dispostos a contribuir com a justiça, tanto é que prestaram depoimento na delegacia, mas até agora não se sabe do que realmente se trata.
Ainda segundo o advogado, as armas encontradas com Roger estão "devidamente registradas" Roger também é defendido pela advogada Raiza Hoffmeister.
3º sargento Daniel dos Santos Fagundes
Não há informações sobre o tipo de mandado
Data de ingresso: 12/07/1994
Estava lotado: 20º BPM. Não pertenceu ao 11º BPM
O que diz a defesa: o advogado Fabio Cesar Rodrigues Silveira observa que ainda não teve acesso aos autos:
— Vamos seguir tentando a liberdade dos nossos clientes, apesar da excepcionalidade de estarem negando o direito básico de saberem do que são acusados.
1º tenente da reserva Rogério Oliveira Cardoso
Não há informações sobre o tipo de mandado
Data de ingresso: 12/06/1989
Estava lotado: 20º BPM. Atuou no 11º BPM até 1998
O que diz a defesa: não foi localizada