Pela segunda vez no ano, um assassinato com a vítima sendo queimada ainda viva foi filmado e espalhado pelas redes sociais na Região Metropolitana. Nas imagens, enquanto um homem agoniza em um matagal às margens da Avenida Belém Velho, no bairro Vila Nova, no meio da tarde, um dos criminosos se aproxima e lhe dá um tiro. Era por volta de 16h de quarta-feira (20) quando a polícia foi informada do homicídio.
Conforme o levantamento da editoria de Segurança de GaúchaZH e Diário Gaúcho, pelo menos 32 pessoas foram mortas carbonizadas na Região Metropolitana em 2017. No ano passado, foram 25 vítimas desta forma — o que representa aumento de 28% nos casos. Na maioria dos crimes não é possível saber se as pessoas estavam vivas quando tiveram fogo ateado aos corpos.
Apenas oito horas depois do morto queimado vivo na zona sul da Capital, outras duas pessoas — provavelmente um homem e uma mulher — foram mortos com a mesma crueldade, dentro de um carro em chamas, no bairro Medianeira. Neste caso, um homem ainda conseguiu escapar do carro e sobreviveu.
— Nos agachamos todos dentro de casa, e começou aquela rajada de tiros. De repente, o carro estava incendiando, e uma cena acho que nunca vou esquecer. Ouvíamos a mulher gritando no porta-malas. Não tinha o que fazer — conta, ainda assustado um dos moradores próximos ao local onde o carro foi deixado, no bairro Medianeira, por volta da meia-noite desta quinta (21).
A perícia contabilizou pelo menos 40 estojos recolhidos junto do veículo, um Prisma com placas clonadas. Um galão pequeno, de plástico, com gasolina, também foi recolhido para ser examinado. Na Rua Caieira, ficaram os destroços do veículo e o rastro, por cerca de 15 metros, do sangue. É que o sobrevivente conseguiu escapar chutando a porta. Mesmo queimado, arrastou-se levando consigo o outro homem, ainda não identificado e, àquela altura, já morto. Os dois estavam algemados.
Foi neste momento que moradores correram para ajudá-lo. Os matadores fugiram em um carro vermelho.
Nunca imaginei ver a crueldade das pessoas a esse ponto. Tiros e fugas já aconteceram aqui na região, mas queimarem as pessoas vivas, é demais.
MORADOR DO BAIRRO MEDIANEIRA, NA CAPITAL
— Nunca imaginei ver a crueldade das pessoas a esse ponto. Tiros e fugas já aconteceram aqui na região, mas queimarem as pessoas vivas, é demais — comenta outro morador.
Para Francisco Amorim, pesquisador do Grupo de Estudos de Violência e Cidadania da UFRGS, a tendência do nível de violência nas execuções decorrentes dos conflitos criminosos é aumentar.
— Se no ano passado nos chamaram muito a atenção os casos de esquartejamento e decapitação, incendiar as pessoas vivas é mais uma forma de crueldade extrema para legitimar o poder de influência e a demonstração de necessidade de obediência imposta por quem comete o crime. Não basta impor o sofrimento à vítima, é preciso mostrar aos comparsas dela, à comunidade e também à toda a cidade qual o seu poderio — acredita.
Além dos casos desta semana, pelo menos outro foi filmado e expôs a crueldade dos executores. Em agosto, circulou pelas redes sociais, e foi noticiado em sites internacionais, o vídeo gravado por criminosos que executaram os primos Vitor da Rosa, 22 anos, e Vagner da Rosa, 17 anos, em Gravataí. Depois de serem obrigados a cavar a própria cova, os dois foram baleados e tiveram fogo ateado aos seus corpos. Pelo menos um ainda estava vivo quando o fogo começou. Um suspeito foi preso e o outro, adolescente, apreendido. Nenhum deles explicou à polícia tamanha crueldade. Ficaram em silêncio na delegacia.
No vídeo, exibem o nome da facção para a qual estariam agindo.
Depois das decapitações, carbonizados
No ano passado, o aumento da violência dos grupos criminosos ficou marcado pelos casos de esquartejamentos e decapitações. Mas não houve mudança de estilo nas execuções. Neste ano, a Região Metropolitana teve pelo menos 12 pessoas vítimas de decapitação, mesmo número verificado em 2016. Para Francisco Amorim, o fenômeno é pior do que uma variação no estilo das mortes.
— É a naturalização da violência. Quanto mais a sociedade banaliza episódios violentos, mais difícil é frear essa escalada — diz o especialista.
A resposta para isso, defende o pesquisador, é o cada vez mais recursos aplicados em investigação, com repressão qualificada.
— Reagir somente prendendo mais, agindo com mais força do que o crime, não adianta. Porque o perfil dos executores é de pessoas que geralmente já passaram pelo sistema. Sabem que podem ser presas em algum momento, e que podem morrer também. Isso não é um obstáculo para eles — define Amorim.
Segundo ele, a apuração não pode se limitar aos executores, mas subir a pirâmide do crime.
— Neste ano observamos aquela ação contra lideranças. Pareceu ter reduzido o conflito, mas não foi suficiente. É preciso seguir atuando no caminho do dinheiro destes grupos e, principalmente avançar nas apurações em nível nacional, com plano nacional de segurança efetivo — avalia.
Desde a Operação Pulso Firme, que transferiu líderes de facções para penitenciárias federais, a Polícia Civil já fez pelo menos três grandes operações focadas na lavagem de dinheiro dos bandos que atuam na região.