A destruição de mais de 11 mil armas recolhidas por órgãos de segurança pública e pelo Judiciário no Rio Grande do Sul, realizada na manhã de quinta-feira, em Sapucaia do Sul, reabre antigo debate no Brasil: a flexibilização da posse e do porte de revólveres, pistolas e afins. Só no primeiro semestre deste ano, Brigada Militar (BM) e Polícia Civil apreenderam um exemplar a cada 37 minutos no Estado. Ao todo, foram 7,1 mil armas, 2,5% a mais do que no mesmo período de 2015.
Das 11 mil unidades incineradas pelo Exército na Siderúrgica Gerdau, cerca de 6,6 mil eram de fogo – entre as quais, 4,4 mil revólveres de diferentes calibres, 450 pistolas, dois fuzis e até alguns equipamentos de fabricação caseira. As demais eram armas brancas, como facas, facões e foices.
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A maioria estava nas mãos de autores e suspeitos de crimes, presos por policiais civis e militares. Antes do descarte definitivo, o material foi parcialmente inutilizado no quartel do 3º Batalhão de Suprimento, em Nova Santa Rita. Para completar o processo, grande aparato foi mobilizado.
Em 13 anos, 200 mil peças destruídas
O transporte foi feito em carreta de 20 metros de comprimento por dois metros de largura, escoltada por militares da 1ª Companhia de Guarda. Cerca de duas dezenas de pessoas trabalharam na operação.
Na siderúrgica – que mantém parceria com o Ministério da Defesa desde a implantação do Estatuto do Desarmamento, no final de 2003 –, as peças foram retiradas do veículo por magnetismo, com o uso de um ímã gigante, e despejadas em um forno, para serem fundidas a temperatura de 1.600ºC.
– O objetivo é evitar qualquer tipo de reaproveitamento deste material enquanto armamento – explicou o tenente-coronel Ernesto Dutra, comandante do 3º Batalhão de Suprimento.
De acordo com levantamento do Exército, desde que o estatuto entrou em vigor, há 13 anos, cerca de 200 mil armas foram destruídas no Estado. Neste ano, foram cerca de 18 mil. Apesar disso, os números do Atlas da Violência de 2016, divulgado em março pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicam que pouco mudou nas estatísticas de homicídios no país.
Em 2014, 76,1% dos 59.627 assassinatos cometidos em território nacional envolveram armas de fogo. Em 2003, quando o estatuto passou a vigorar, o índice era de 77%.
Divergência sobre a eficácia do controle
Quem defende a reformulação das regras, como o movimento Armas pela Vida – que no último domingo reuniu cerca de 250 pessoas em manifestação no Parque Moinhos de Vento, na Capital –, avalia as estatísticas como provas de que a rigidez não contribuiu para reduzir a violência.
– Desde 2003, temos uma das legislações mais rigorosas do mundo e, ao mesmo tempo, contabilizamos 60 mil homicídios por ano. O estatuto fracassou. A população acreditou em algo que nunca foi comprovado – argumenta João Pedro Petek, um dos organizadores do movimento.
Aqueles que repudiam a flexibilização, como Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirmam que os números teriam piorado sem a norma de controle – segundo estimativas do Altas da Violência, a quantidade de assassinatos teria sido 41% maior em 2014:
– Culpar o estatuto pela crise na segurança é como reclamar que as doenças não acabaram depois das vacinas. O problema é muito mais complexo.
Na Câmara, lei mais branda pronta para ir à votação
Depois de quase 13 anos em vigor, o Estatuto do Desarmamento pode ser substituído por novo arcabouço legal, menos restritivo.
O projeto de lei 3.722/2012, também chamado de Estatuto do Controle de Armas de Fogo, revoga a atual legislação e cria novas normas para aquisição, posse, porte e circulação de armas e munições.
A proposta final passou por comissão especial e está pronta para ser votada na Câmara – o que pode ocorrer ainda este ano. Se aprovada pela maioria dos deputados, precisará passar pelo Senado e ir à sanção presidencial.
Entre as principais alterações, estão a redução da idade mínima para quem pretende comprar armamento de 25 para 21 anos e a garantia, a todos os cidadãos que cumprirem os requisitos mínimos exigidos, do direito de possuir e de portar arma para legítima defesa ou proteção do próprio patrimônio. Atualmente, o estatuto prevê que o interessado comprove a efetiva necessidade da arma, o que permite que a licença seja recusada pelo órgão expedidor.
Projeto autoriza posse a processados
O texto final também estende o porte a autoridades como deputados e senadores e autoriza posse e porte a pessoas que respondam a inquérito policial ou a processo criminal – só quem tiver condenação criminal por infração penal dolosa (intencional) nas esferas estadual, federal, militar ou eleitoral ficará impossibilitado.
– A condenação de quem quer que seja ocorrerá ou não ao final do processo. Manter esse dispositivo seria condenar previamente alguém sobre o qual o Judiciário ainda não se pronunciou – justificou o relator, deputado Laudivio Carvalho (PMDB-MG).
ENTREVISTAS
“O estatuto não reduziu a criminalidade”, diz deputado federal autor do projeto que pretende alterar a lei de desarmamento no país
Autor do projeto de lei que revoga o Estatuto do Desarmamento, o deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC) defende a aprovação de nova lei de sua autoria, considerada mais flexível e denominada Estatuto do Controle de Armas de Fogo.
Por que o senhor defende a revisão da lei do Estatuto do Desarmamento?
Em 2005, tivemos um referendo no Brasil, e 64% da população disse não ao desarmamento. Mesmo assim, o governo não acatou a decisão e, até hoje, o Estatuto do Desarmamento não reduziu a criminalidade. Pelo contrário. Enquanto isso, países como Uruguai e Paraguai, que flexibilizaram suas leis, têm índices de criminalidade comparáveis aos do primeiro mundo. É o que queremos para o Brasil.
Qual é o principal benefício da nova lei proposta?
O grande benefício é acabar com a discricionariedade. Queremos que o cidadão brasileiro que atenda aos requisitos legais tenha o direito de obter automaticamente o porte de arma, sem precisar depender da boa vontade de ninguém. Hoje não é assim. Hoje, o que se vê é o bandido armado.
Armar a população leva ao aumento dos índices de violência no país?
Discordo totalmente. Os números demonstram isso. O cara que vai pedir uma arma, que faz curso de tiro, que apresenta atestados, exame psicotécnico, que faz tudo conforme a lei, vai pegar a arma e cometer um crime? Claro que não. Vai, sim, reduzir os furtos e roubos, porque os bandidos vão pensar duas vezes antes de atacar.
“Sem o estatuto, os índices seriam piores”, diz economista autor do Atlas da Violência, contrário a alterações na lei de desarmamento no país
Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Daniel Cerqueira é um dos autores do Atlas da Violência e um dos pesquisadores que assinaram manifesto contra a substituição do Estatuto do Desarmamento por nova lei.
Por que o senhor é contrário à revisão da lei do Estatuto do Desarmamento?
A tentativa de revogação é uma verdadeira tragédia anunciada. Vários estudos mostram que, quanto maior a difusão de armas, maior a prevalência de crimes contra a vida. Para cada 1% a mais de armas, a taxa de homicídios aumenta 2%. Se não houvesse o estatuto, os índices de criminalidade seriam ainda piores do que são hoje. É um mito pensar que armas protegem famílias de bem. Pelo contrário. Aumentam a insegurança.
Qual é o principal problema da nova lei proposta?
São vários problemas. Um deles é a tentativa de diminuir a idade mínima de 25 para 21 anos para quem quer adquirir uma arma, sendo que é justamente entre os jovens que a violência se manifesta com mais força. Essa redução é muito preocupante e certamente terá consequências graves.
Armar a população leva ao aumento dos índices de violência no país?
Não tenho dúvidas disso. É um consenso científico mundial. Na minha tese de doutorado e nas teses de vários colegas, brasileiros e estrangeiros, isso já está mais do que comprovado, tanto que elaboramos manifesto contra a revogação do atual estatuto, que foi assinado por 57 pesquisadores.