Os promotores que atuam na execução criminal de Porto Alegre encaminharam à Procuradoria-geral de Justiça pedido para que sejam apuradas as responsabilidades civil e criminal de autoridades do Executivo que deveriam promover a criação de vagas no sistema penitenciário.
A solicitação foi feita a partir de uma decisão do juiz Luciano Losekann, da Vara de Execuções Criminais, na qual ele questiona a concessão de prisão domiciliar especial - que não está prevista em lei - a detentos como forma de driblar a falta de vagas no regime semiaberto.
O pedido dos promotores, que pode resultar em abertura de inquérito civil contra o superintendente da Susepe, Gelson Treiesleben, e o secretário da Segurança Pública, Airton Michels, está em análise na Promotoria de Defesa do Patrimônio Público.
Ao se manifestar no processo de um preso, Losekann registrou que a gestão do sistema prisional passou a ser de responsabilidade de juízes, já que a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) teria se "demitido" das suas atribuições. E foi contundente ao destacar o papel do Executivo no problema: "... mexa-se o Poder Executivo do Estado, pois este está a gerar insegurança pública, não apenas ao descumprir ordens judiciais de remoção ao semiaberto, mas também os gestores da coisa pública estão a cometer improbidade administrativa por não adotarem as providências que lhe competem e para as quais, diga-se, sem rodeios, foram eleitos!", diz trecho da manifestação.
Uma das promotoras que atuam na execução criminal na Capital, Ana Lucia Cioccari Azevedo diz que "ações e omissões de quem tem o dever legal de gerar vagas têm de ser apuradas".
- Os presos estão recebendo da Susepe atestados de que não há vagas no semiaberto e estão sendo inscritos em planilhas por antiguidade a fim de concorrer a uma vaga, só que vagas não estão sendo criadas. A sociedade precisa saber que crimes estão impunes, que há insegurança nas ruas e que estabelecimentos prisionais estão sendo fechados - diz Ana Lucia.
ENTREVISTA
Luciano André Losekann
Juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre: "Eu sou juiz, não sou gestor da Susepe"
Zero Hora - Qual a situação que o senhor encontrou no Estado em relação à prisão domiciliar?
Luciano André Losekann - Havia concessão de prisão domiciliar sempre que havia inexistência de vaga no regime semiaberto e aberto. É concedido prazo de cinco dias para que a Susepe arranjasse a colocação desse preso em algum estabelecimento. Não havendo a vaga, se concedia a prisão domiciliar especial.
ZH - É "especial" porque não está prevista em lei para estes casos?
Losekann - Não está prevista em lei. É uma interpretação para compor essa situação caótica. Então, esgotados esses cinco dias, a situação não se resolveu, se agravou. Ou se começou a dar prisão domiciliar especial para presos com saldo de pena de 20, 30, 40 anos de pena para cumprir ou se colocou a tornozeleira eletrônica, que tem limite de mil. Não se tem mais tornozeleira para colocar. Mas se observa ausência de critérios para conceder essas tornozeleiras.
ZH - Por que ausência de critérios?
Losekann - Presos trabalhadores, com condição de estar vinculado a um protocolo de ação conjunta (PAC) da Susepe com alguma empresa, esses estão em estabelecimentos prisionais, não importando a quantidade de pena a cumprir, digamos que tinham saldo de seis, cinco, quatro, três anos para cumprir, esses estão nas casas prisionais. Outros presos, com saldo de pena de 20, 30, 40 anos estão com tornozeleira cumprindo prisão domiciliar especial. Estão fora. Ou seja, há disparidade, uma injustiça muito grande, especialmente, com o preso trabalhador. Quem tem de se beneficiar com prisão domiciliar ou tornozeleira eletrônica é o preso que trabalhou e que tem menor saldo de pena a cumprir.
ZH - Qual é a justificativa para isso ocorrer?
Losekann - O problema alegado é que esse preso que vai para o semiaberto com pouco saldo de pena, como está vinculado a um PAC, se vai para a prisão domiciliar, perde a possibilidade do trabalho. Mas essa não pode ser a razão pela qual não lhe dou a possibilidade de domiciliar e dou para um preso com saldo de pena grande, que não trabalha, que tem contra si a prática de inúmeros delitos pesados e que, na rua, representa muito mais risco do que o trabalhador.
ZH - O senhor estabeleceu novo critério envolvendo o saldo de penas para conceder a domiciliar?
Losekann - Para não colocar os presos com menor saldo e bom comportamento numa situação injusta, se comprada com os que têm elevado saldo a cumprir. Estavam tratando igualmente os desiguais e tenho que tratar desigualmente os desiguais.
ZH - Os critérios anteriores para liberar esse tipo de preso tinham sido construídos pela Susepe e a Justiça?
Losekann - De início, sim. Só que a situação caótica do sistema prisional gaúcho foi se agravando de tal forma que os colegas acabaram sendo atropelados pelo número de presos que tiveram a progressão (do fechado para o semiaberto) deferida e não encontraram vaga. A saída por eles encontrada foi a concessão da prisão domiciliar especial no aguardo de uma vaga no semiaberto, que a gente sabe que não vai surgir. É pouco provável.
ZH - Qual o cenário de criação de vagas no semiaberto?
Losekann - Nenhuma. pelo contrário, temos a extinção este ano de 1,4 mil vagas no semiaberto. Seja pela superlotação das casas e limitação judicial de número de detentos por casa prisional, seja porque certo estabelecimentos foram fechados, como é o caso de Mariante, que praticamente não tem preso e o caso do IPV de Viamão, que não tem preso. E o pior disso é que o estado já está em tratativa com o município de Viamão para transformar aquele espaço em escola e não oferece alternativa de construção de vagas no semiaberto para aquela região. Eu perco vagas, aposto todas minhas fichas na tornozeleira como se fosse a solução para o problema e não é. Enquanto existir na lei a necessidade de criação de vagas no semiaberto é o poder executivo como gestor do sistema que tem que abrir essas vagas.
ZH - Então se chega a um impasse: os juízes não vão conceder a prisão domiciliar com tanta liberalidade, mas também não há vagas de semiaberto sendo criadas. O que vai acontecer?
Losekann - A Susepe vai ter de começar a administrar o problema novamente. Isso deve gerar de início uma superlotação dos estabelecimentos, com todos os riscos que isso representa, especialmente, de mortes no semiaberto por brigas entre facções, mas essa é uma situação que a Susepe tem que administrar. Não é o poder Judiciário.
ZH - Aumentam os riscos dentro do sistema reduzindo os riscos nas ruas?
Losekann - Exatamente. estamos num dilema de Sofia. O que fazer? É necessário chamar o Poder Executivo, o Estado, a administração, o governo do Estado à responsabilidade.
ZH - O senhor fala em um despacho sobre responsabilizar gestores por improbidade.
Losekann - Sim, por má gestão, por não investirem no sistema e por não criarem vagas no sistema, estando a apostar na monitoração eletrônica que é limitado, é sistema de exceção, não é regra para substituir todo um regime carcerário, como é o caso do semiaberto.
ZH - O senhor pede a responsabilização?
Losekann - Todas as decisões para o preso passe do fechado para o semiaberto nós temos feito a intimação do superintendente e também do secretário da segurança pública no sentido de que sejam intimados pessoalmente para cumprir a decisão me prazo de 24 horas, 48 horas, mas, no máximo, cinco dias. Tem de ser cumprido.
ZH - Se não cumprir?
Losekann - Se encaminha para o Ministério Público ingressar com eventual ação de improbidade contra essas pessoas.
ZH - O senhor saiu da VEC e ficou mais de três anos no CNJ. Como vê a situação no Estado depois desse tempo?
Losekann - Naquela época, já tínhamos problema aqui. Mas o sistema piorou muito.
ZH - Em que sentido?
Losekann - Se degradou muito. Tivemos tentativa de solução para o semiaberto com criação de casas no governo Yeda (Crusius, PSDB). Mas o problema é que criaram em casas inadequadas, muito frágeis. Tanto que a casa albergue feminina aqui chove mais dentro do que fora. Esses semiabertos do governo Yeda estão todos degradados e depois disso não se criou mais nenhuma vaga de semiaberto.
ZH - O que lhe impressionou mais ao retornar do CNJ?
Losekann - O absoluto descontrole da Susepe sobre a gestão penitenciária. Isso é o mais assustador. Como o Estado conseguiu se demitir de suas funções.
ZH - O que Susepe deixa de fazer?
Losekann - Tudo. Não cumpre ordens judiciais, não cria vagas no semiaberto, não há projetos sólidos para a criação de vagas, há condenação judicial contra o Estado ordenando a criação de mais de 2 mil vagas no semiaberto que o MP está executando provisoriamente.
ZH - Está executando, mas não tem vaga.
Losekann - Não tem vaga. Há uma inapetência, uma falta de vontade de resolver a solução, transferindo para o Judiciário a gestão do órgão penitenciário do Estado, quando não é nosso isso aí. Eu sou juiz, não sou gestor da Susepe.
ZH - No CNJ o senhor teve um olhar nacional sobre o sistema. A situação do Rio Grande do Sul é parecida com o restante do país?
Losekann - Não. Em outras unidades, por pior que esteja o semiaberto, são as secretarias de administração penitenciária ou superintendências que mantém essa gestão, nunca é o poder Judiciário. Não tem em outras unidades da federação essa falta de vontade de administrar por parte do Poder Executivo. Por mais problemático que seja o semiaberto em outros locais, não se compara a demissão de atribuições a que se submeteu a Susepe aqui no Rio Grande do Sul.
ZH - O que mais chama a atenção?
Losekann - Essa demissão do Poder Executivo e esse descontrole. Hoje, os funcionários da Susepe estão acuados no semiaberto, acuados e reféns dos presos. isso é segurança pública? Isso é insegurança pública. E parece que a Susepe não acorda para essa realidade que é gritante. Eu ouço todos os dias notícias de presos com tornozeleira sendo preso em tal situação, preso em domiciliar cometeu novo delito. Por dia, eu revogo, só nesse juizado, cinco prisões domiciliares por novo delito. Em 20 dias úteis de trabalho, são praticamente 100 pessoas cometendo novos delitos em prisão domiciliar, que também precisa de fiscalização.
ZH - Tem fiscalização?
Losekann - Deve ser feita pela Susepe, que não faz. Então, estou atraindo para mim uma responsabilidade que não é minha. Pois é muito fácil dizer que quem concedeu a domiciliar, a tornozeleira, foi o juiz. Mas o sistema é da Susepe, a administração é deles. Eu digo se o sujeito tem direito ou não de ir ao semiaberto, agora gerir internamente o sistema não pode ser eu. Não fiz concurso para agente penitenciário nem fui nomeado pelo governador superintendente da Susepe.
Contraponto
O que diz a Superintendência dos Serviços Penitenciários
Sobre críticas do Judiciário referente a promessas que não são cumpridas:
"Desconhecemos tal crítica. A Susepe já criou nos últimos três anos 2.313 vagas de regime fechado e 590 de semiaberto. Além disso, estão em andamento diversas outras obras, tanto no regime fechado quanto no semiaberto."
Sobre 3,4 mil criminosos estarem em casa, somente em prisão domiciliar, no
Estado, por falta de vagas:
"É importante ressaltar que a prisão domiciliar não está subordinada à Susepe. É uma decisão e controle exclusivos do Judiciário. São vários os motivos para o Judiciário determinar a prisão domiciliar."
Sobre vagas geradas para os regimes semiaberto e aberto este ano na Região Metropolitana:
"Com o convênio firmado entre a Susepe e o Judiciário de colocar presos do semiaberto com tornozeleiras, o que está acontecendo é exatamente o contrário, as vagas do semiaberto estão sendo extintas, como ocorreu com o Instituto Penal de Torres, que foi fechado, e o Instituto Penal de Viamão, em vias de extinção. Outros institutos penais deverão seguir o mesmo caminho, pois, atualmente, há 721 detentos usando tornozeleiras, e a programação prevê mais de 4 mil em todo o Estado."
Sobre aluguel de prédios que gerariam 300 vagas para o semiaberto na Região Metropolitana:
"A Susepe desistiu das locações. Atualmente, há um processo para construir um anexo no Instituto Penal de Novo Hamburgo com 150 vagas. Com um convênio firmado entre a Susepe e o Judiciário para colocar tornozeleiras nos presos do semiaberto da Região Metropolitana, diminuiu o número de detentos neste regime, e o maior exemplo é o Instituto Penal de Viamão, que atualmente tem apenas 15 apenados, e já esteve com cerca de 600 presos, e o Instituto Penal Pio Buck, que hoje tem 95 detentos e já esteve também acima de 600 presos."