Internada no Instituto de Cardiologia, Isabel Cristina Pereira acompanhava os batimentos da filha ficando mais lentos dentro da barriga. Eles já não passavam muito de 50 por minuto, quando o normal é três vezes isso. Na 34ª semana de gestação, o médico avisou que precisavam antecipar o parto.
Marlise Pereira de Boer nasceu em 11 de dezembro de 1993, com 46 centímetros e 2,6 quilos, e, no mesmo dia, passou por uma cirurgia para colocar marca-passo. Ela ainda perderia peso, chegando a apenas 1,9 quilo. Ficou seis meses na UTI.
— Enxergar ela era difícil, de tanto fiozinho que tinha em volta dela — lembra a mãe, referindo-se aos eletrodos que captavam os batimentos, ao tubo do respirador e à sonda de alimentação.
Marlise foi um dos primeiros bebês das páginas do Vida, caderno de Zero Hora que chega a 1.500ª edição neste sábado (10). Sua foto em um berço do hospital, com a mãe, ao lado, esboçando um sorriso contido, foi publicada no Natal de 1993 em uma reportagem sobre avanços da medicina fetal (os três parágrafos acima reproduzem trechos da matéria). A menina tinha recém inaugurado a sala de parto da Unidade de Cardiologia Fetal do Instituto de Cardiologia (IC), o primeiro espaço da América Latina destinado a tratamento de doenças do coração em bebês que ainda não nasceram.
O que gerou na menina o bloqueio atrioventricular (problema na condução dos impulsos dos átrios aos ventrículos no coração) foi uma doença autoimune que a mãe nem sabia que tinha, chamada Síndrome de Sjögren. Por sorte, Isabel fez o exame de ecocardiografia fetal, que não era comum como hoje.
Quem pode atestar isso é o médico delas na época, Paulo Zielinsky, 71 anos, que segue chefe da unidade fetal no IC. Se Marlise não tivesse o diagnóstico antes do nascimento, iria morrer dentro da barriga.
— A especialidade de cardiologia fetal hoje é uma realidade, mas, naquela época, a gente estava começando isso. Era comum problemas cardíacos serem vistos apenas no nascimento, o que muda muito a perspectiva dos resultados — explica Zielinsky.
No bairro Farrapos, onde mora desde que nasceu, Marlise voltou a ser fotografada para o Vida em agosto deste ano. A jovem de cabelos longos castanhos e voz doce contou com a ajuda da mãe para lembrar como foram os 26 anos que sucederam sua primeira participação no jornal. Especialmente para narrar os primeiros meses, que exigiram bastante do coraçãozinho da menina. E, por tabela, da mãe também.
É que, depois do parto, Marlise passou a rejeitar o marca-passo e perdeu peso. Por isso precisou ficar meio ano internada no Instituto de Cardiologia. Isabel, que acabaria deixando o emprego de digitadora, praticamente vivia no hospital.
— Queriam que eu fosse para casa dormir, comer, mas eu não queria. Usava o quarto separado para mães dos bebês, quando tinha lugar, ou então dormia debaixo da escada, em um cantinho — conta.
A alta só veio quase seis meses depois
Isabel tem na ponta da língua o dia em que o médico deu alta ao seu bebê: 6 de junho de 1994. No alto dos seus 3,6 quilos, Marlise virou celebridade na saída do hospital. Médica, enfermeiras, nutricionista, secretária, todo mundo queria tirar foto com a pequena. A mãe guarda esses registros em um álbum de folhas autocolantes, junto com as páginas amareladas de ZH com a reportagem sobre elas.
A praça em frente ao bar de Isabel foi onde Marlise aprendeu a andar de bicicleta. Por ali, a menina também jogava bola, brincava de polícia e ladrão e esconde-esconde com a criançada do bairro. A mãe tentava dar a ela toda a liberdade que uma criança quer – não queria que se sentisse diferente por usar marca-passo. As cicatrizes no meio peito e no lado direito, em cima do coração, não eram e nem hoje são um problema.
A mãe jura que Marlise era uma criança tranquila, que nunca foi de aprontar. Mas não seriam exatamente essas palavras que teria usado no aniversário de cinco anos da filha, quando Marlise fingiu que cortava as madeixas da boneca e acabou cortando suas próprias. Aparece nas fotos da festa com o cabelo súper curto e um sorriso sapeca.
Marlise estudou na Escola Oswaldo Vergara, no terreno onde seria construída a Arena do Grêmio. Por falar em futebol, ela é gremista, por pura influência do pai. José Rudimar nem deixava que comprassem roupas vermelhas para Marlise: só entrava azul no guarda-roupa da primeira e única filha.
O pai morreu de infarto quando Marlise tinha 11 anos, antes de o estádio do Grêmio ser construído e colorir a vila de azul preto e branco. Mesmo morando a poucas quadras dele, a menina nunca foi em um jogo. Pensa no quanto o pai iria gostar de viver isso.
— Acho que ele moraria na Arena — comenta.
Dez anos depois, foi a vez da filha virar mãe
Marlise começou a namorar com 17 anos, após conhecer Fernando Gehardt em um aniversário. Ele era o sobrinho da namorada do pai da melhor amiga dela, e também o DJ da festa. Uns dias depois de ficarem, quis convidar Marlise para passear no shopping e deparou com uma família superprotetora, liderada por Isabel. Mas isso só fez ele se apaixonar mais ainda.
O que ninguém não previa é que, logo depois disso, Marlise engravidaria. Foi um susto para ela e para Isabel também, que nunca haviam nem conversado sobre essa possibilidade com a médica, em razão do problema cardíaco.
— Eu nem imaginava que poderia ter um filho. Veio aquele pensamento: será que vai dar certo? Será que vou poder ter ele? E tá aí o gurizinho — diz Marlise, apontando pro menino de sete anos.
Com 39 semanas de gestação, Marlise foi acompanhada da mãe à Santa Casa para o que ela achava que seria uma consulta de rotina. Chegando lá, pela manhã, a médica lhe disse que deveria internar. No final daquele dia, às 20h53min, estava dando à luz.
Gabriel nasceu no dia 27 de junho de 2013, com 51 centímetros e quase quatro quilos. Deixou o hospital dois dias depois e nunca teve problema algum de saúde. Para a felicidade de Marlise:
— Depois dessa história toda, do meu marca-passo e descobrir a gravidez, ele nascer bem foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.
Marlise conta que Gabriel é agitado, mas nunca lhe deu problema. O menino, que virou aluno da mãe durante a pandemia, em razão da paralisação das aulas, confidencia que ela é meio brava.
— Só às vezes — corrige Marlise.
Ela trabalhou um tempo com call center, mas não chegou a engrenar em uma carreira. Neste ano, com o Gabriel já maior, começou a fazer um curso de capacitação para apoio da Educação Infantil. Assim que a pandemia acabar, quer conseguir um emprego e trabalhar na área.
— Dizem que eu levo jeito com criança — conta ela.
— Ela não pode ver um bebê de vizinho que já sai pegando no colo — acrescenta o marido.
Marlise se mostra grata por ter sua família reunida e tão perto de si. E nunca ficou menos próxima de Isabel. Enquanto posavam para as fotos dessa reportagem, a mãe apoiou a cabeça no ombro de Marlise, e falou baixinho:
— De tanto que a mãe cuidou, agora é ela que cuida.