Em 13 de outubro de 1991, circulava, encartada em Zero Hora, a primeira edição do caderno Vida, que se tornaria referência em temas ligados a saúde e bem-estar, abrindo espaço para expoentes das mais diversas especialidades, na imprensa do Rio Grande do Sul. Quase três décadas depois, o suplemento atinge, neste final semana, o exemplar de número 1.500.
Para marcar a data, o Vida aborda um dos temas mais desafiadores para a ciência mundial e que sempre desperta alto interesse entre os leitores: a evolução do tratamento contra o câncer. Em 30 anos, houve significativas mudanças, para melhor, em medicamentos e terapias, o que significa menos sofrimento e melhores perspectivas para pacientes que precisam encarar uma das enfermidades mais temidas. O Vida acompanhou a luta de pacientes, de médicos e de pesquisadores, como mostram as capas reproduzidas acima – uma seleção entre as edições do caderno dedicadas ao assunto.
Dois expoentes do tratamento e da pesquisa em oncologia no Estado destacam, nesta reportagem, os principais pontos do passado, do presente e do futuro do enfrentamento da doença. Carlos Barrios é oncologista do Grupo Oncoclínicas Porto Alegre, e Sérgio Roithmann, oncologista, chefe do Serviço de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
O passado: a palavra que não era pronunciada
Recordar o cenário do tratamento oncológico de décadas atrás permite perceber como a pesquisa científica viabilizou evoluções fundamentais e, também, o quanto a doença era cercada de estigma. O câncer, palavra que por muito tempo não era nem pronunciada, sendo mascarada sob expressões como "aquela doença", sempre foi associada a sofrimento, mutilação, medo, coragem, guerra.
Os tratamentos tinham pouca eficácia, muita mutilação, muitas sequelas e muita frustração.
SERGIO ROITHMANN
Chefe do Serviço de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da UFCSPA
O paciente passava por cirurgias extremamente invasivas e sessões de quimioterapia com elevado nível de toxicidade, que provocavam efeitos colaterais brutais. A radioterapia causava queimaduras. O oncologista Sérgio Roithmann resume:
— Era um tratamento de pouca eficácia, muita mutilação, muitas sequelas e muita frustração.
No início dos anos 1990, Roithmann assinala o início do que se pode chamar de oncologia moderna. Médicos já sabiam diagnosticar o câncer e tirar proveito de exames como tomografia e endoscopia, mas eram poucas as drogas disponíveis – em geral, quimioterápicas. Faltava aos especialistas o conhecimento mais detalhado da biologia da câncer, o que começou a ser conquistado nos anos 1980. Os médicos não conheciam, exatamente, como a doença se desenvolvia. Essa lacuna forçava a aplicação de terapias inespecíficas, impessoais, ou seja, o mesmo tratamento era prescrito para diferentes pacientes, que padeciam de enfermidades com peculiaridades igualmente distintas. Em alguns casos, eventualmente, obtinha-se sucesso.
— Tínhamos avanços no bloqueio hormonal para câncer de mama e de próstata, os mais comuns em mulheres e homens. Ali havia alguma esperança, mas era muito limitada. A base do tratamento ainda eram, quase exclusivamente, as cirurgias, e os tratamentos clínicos eram secundários. Os cirurgiões conseguiam curar casos diagnosticados precocemente — recorda o médico, destacando que era comum o paciente se apresentar quando a enfermidade já estava em estágio avançado.
Passou a se disseminar o conceito das intervenções cirúrgicas mais conservadoras, como no caso do câncer de mama, pesadelo para mulheres que testemunhavam o corpo se deformar com a mastectomia (retirada da mama) sem reconstruções. A medicina começava a mirar a qualidade de vida, com a diminuição de sequelas. Descoberta aparentemente simples, o acesso ao medicamento ondansetrona (um dos nomes comerciais da droga é Vonau) teve enorme impacto na vida dos doentes ao aplacar náuseas e vômitos. Até então, dispunha-se apenas de metoclopramida (Plasil). Cateteres implantados no corpo facilitaram a administração das drogas mais pesadas. O conforto do paciente, definitivamente, despontou como um dos grandes objetivos a serem almejados.
No ano 2000, anunciou-se que 99% do genoma humano havia sido decodificado, conquista que revolucionou a medicina. Na oncologia, foi possível começar a desvendar as alterações profundas das células malignas. Pesquisadores puderam conhecer o DNA do inimigo.
— Levamos uma década para sequenciar todo o genoma humano, a um custo altíssimo. Hoje, em 2020, é possível sequenciar o genoma de uma célula maligna em uma semana, a um custo razoavelmente baixo — compara Roithmann.
O presente: a diversificação das estratégias
Na virada de século, a capacidade de descobrir e investigar os mais diversos tipos de câncer melhorou drasticamente. Antes, a expressão "cada caso é um caso" era mero capricho retórico, lembra o oncologista Carlos Barrios, do Grupo Oncoclínicas Porto Alegre.
Hoje, temos dezenas de tratamentos específicos. O câncer tem por característica se espalhar, se disseminar. Faz toda a diferença tratar alguém com doença localizada em vez de tratar alguém com doença metastática.
CARLOS BARRIOS
Oncologista do Grupo Oncoclínicas Porto Alegre
— Os métodos diagnósticos e a nossa compreensão da doença nos ajudaram a diferenciar uma paciente com câncer de mama de outra e oferecer a elas tratamentos completamente diferentes. Nossa capacidade de fazer isso hoje é muito maior do que em 1990. Capacidade de diagnóstico não só do ponto de vista patológico como de imagem — comenta Barrios. — O câncer tem por característica se espalhar, se disseminar. Faz toda a diferença tratar alguém com doença localizada em vez de tratar alguém com doença metastática.
Sérgio Roithmann, do Hospital Moinhos de Vento, celebra a maior vitória dos últimos 30 anos: o diagnóstico precoce, especialmente em tumores de mama, colorretal, pele, próstata e pulmão. Graças à identificação da doença em estágio inicial, dois em cada três casos da enfermidade, no mundo, podem ser curados.
A entrada nos anos 2000, aponta Sérgio Roithmann, também ficou marcada pela diversificação de drogas à disposição de médicos e pacientes. De lá para cá, pelo menos 150 novos fármacos para uso na área oncológica chegaram ao mercado. Até meados dos anos 1990, os remédios, em geral, eram encontradas ao acaso durante uma busca um tanto aleatória nos centros de pesquisa.
— Conhecendo as alterações das células malignas, estamos fazendo engenharia de drogas. Nos anos 1990, o ator principal contra o câncer era a quimioterapia. Hoje, praticamente não existem mais drogas quimioterápicas sendo desenvolvidas — constata Roithmann.
Os grandes temas de pesquisa em medicamentos atualmente se enquadram em terapias-alvo e alterações genéticas dos tumores. As terapias-alvo, que também despontaram com imenso protagonismo no início do século, consistem em desvendar o perfil dos tumores e combatê-los com medicamentos que miram mutações moleculares e genéticas específicas. É um tratamento muito mais inteligente, uma vez que considera as particularidades de cada quadro – e, por vezes, alcança inclusive a cura –, enquanto a quimioterapia "varria" o organismo indiscriminadamente.
— Estamos conseguindo identificar agora os pontos fracos de diversos tipos de células malignas. Aprendemos que cada câncer é diferente do outro. Hoje, temos um tipo de atlas com as diferentes alterações. Daí estão surgindo os progressos: identificar os pontos fracos e construir os remédios — complementa o oncologista do Hospital Moinhos de Vento.
Há um marco nesta trajetória, conforme Barrios. Em 2001, o tratamento da leucemia mieloide crônica, combatida até então com quimioterapia e transplante de medula óssea, passou a contar com o imatinibe, aprovado nos Estados Unidos e também no Brasil. A droga era dirigida especificamente para uma alteração molecular que caracteriza a enfermidade.
O acesso a essas medicações de ponta é um problema atual e tende a crescer no futuro. Via de regra, as terapias mais avançadas não estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), aonde os avanços demoram mais para chegar. Roithmann comenta:
— Na rede privada, a maior parte dos casos de câncer de mama é detectada precocemente. No sistema público, chegam casos mais avançados.
Os tratamentos menos tóxicos
Ao longo da última década, ganhou notável força a imunoterapia. A mágica dessa abordagem, diz Barrios, é que os médicos não estão tratando diretamente o tumor, e, sim, fortalecendo o sistema imunológico para aniquilar o inimigo. As defesas do organismo são "acordadas" e chamadas a executar o papel que não conseguiram cumprir no devido momento.
— A cada ano, aparecem novas alternativas de tratamento que se somam à quimioterapia ou substituem a quimioterapia. Digo que estamos na primeira geração de agentes imunoterápicos. Temos que melhorar esses agentes e adicionar outras drogas que ajudem — analisa Barrios.
Outros aspectos a serem destacados são a evidente melhora da qualidade de vida dos pacientes, graças a terapias menos tóxicas e ao trabalho de equipes multidisciplinares na assistência. Falar abertamente sobre câncer é outro triunfo.
— Como sociedade, temos abordado o câncer de maneira mais aberta. Ajuda falar a respeito da doença, diagnosticá-la mais precocemente, enfrentá-la de uma forma mais positiva — afirma Barrios.
O futuro: o avanço da imunoterapia
O futuro, aposta Carlos Barrios, do Grupo Oncoclínicas, passa pela imunoterapia. Essa estratégia é fundamental e deve ser a base de soluções a serem incorporadas no enfrentamento do câncer. Sérgio Roithmann segue linha semelhante:
Acho que, na próxima década, entraremos na terapia celular, mistura da imunoterapia com a terapia genética. É nosso sonho. Não vamos mais só mobilizar nosso sistema imunológico, vamos alterá-lo.
SÉRGIO ROITHMANN
Oncologista
— Acho que, na próxima década, entraremos na terapia celular, mistura da imunoterapia com a terapia genética. É nosso sonho. Não vamos mais apenas mobilizar nosso sistema imunológico, vamos alterá-lo. Isso já é uma realidade. Estamos retirando células do organismo (linfócitos), modificando-as geneticamente e reintroduzindo-as para que ganhem superpoderes.
Essa técnica tem sido empregada contra contra tumores hematológicos, como leucemias e linfomas – no Brasil, essa ramo ainda opera de forma incipiente. Para daqui a 10 anos, Roithmann elenca dois grandes desafios: estender esses avanços para atacar também tumores sólidos e permitir que os tratamentos se tornem reais para toda a população.
— Não adianta uma supertecnologia a custos impossíveis, que não chegue às pessoas. Nós que vivemos em países menos desenvolvidos sofremos com o desequilíbrio da falta de acesso. Toda essa história bonita, infelizmente, não é acessível a todos — critica Roithmann.
Ainda na área da imunoterapia, o médico prevê destaque para vacinas. Atualmente, está disponível a proteção contra o HPV, que previne o câncer de colo uterino e alguns tumores de orofaringe. No futuro, o campo de ação de doses imunizantes deve se ampliar, especialmente para as chamadas doenças pré-malignas.
— Vamos identificar tumores em fases bem precoces e aplicar vacinas ou medicações para impedir que se desenvolvam. Se fosse apostar, acho que vamos desenvolver testes que vão detectar o início muito precoce do que levará ao câncer de mama e vacinaremos, especificamente, contra o câncer de mama — sustenta Roithmann.
Não sabemos lidar com risco. Se você pensar que pode ser assaltado, não sai de casa. Com doença, é a mesma coisa. Alguém que tem de 10% a 15% de risco de desenvolver um câncer pode lidar com a situação fazendo de conta que não tem risco, que não vai acontecer.
CARLOS BARRIOS
Oncologista
Segundo Barrios, duas práticas precisam continuar progredindo: a prevenção e o diagnóstico precoce. Tome-se o câncer de mama como exemplo: da década de 1990 para cá, explana o médico, ainda não surgiu exame melhor do a mamografia para a detecção de nódulos.
— Se começarmos a fazer testes mais precisos e eficazes mais cedo, teremos condições de resolver problemas mais cedo. Testes de sangue que identifiquem não só a presença de determinados tumores antes que eles apareçam como também o risco de que apareçam — sugere Barrios. — Poderemos identificar populações com risco maior e desenvolver estratégias. Exemplo: descobrir quem são os fumantes com risco de ter câncer de pulmão, porque não são todos. Quem são os que bebem que podem desenvolver câncer de fígado?
Antever possíveis quadros de doença envolve a esfera psicológica e avaliação de risco, o que, assegura o médico, não é simples:
— Não sabemos lidar com risco. É muito difícil. A maior parte das pessoas nega. Se você pensar que pode ser assaltado, não sai de casa. Com doença, é a mesma coisa. Alguém que tem de 10% a 15% de risco de ter problema de coração ou de desenvolver um câncer pode lidar com a situação fazendo de conta que não tem risco, que não vai acontecer.
Oito prioridades para o progresso da pesquisa
Segundo a Associação Americana de Oncologia Clínica (Asco, na sigla em inglês):
- Identificar marcadores para prever resposta e resistência a imunoterapias. Por que alguns pacientes respondem bem e outros são resistentes?
- Limitar ainda mais a extensão de cirurgias com tratamentos conservadores.
- Investir na pesquisa em medicina de precisão, tornando os tratamentos mais personalizados, e em formas de tratamento para tumores pediátricos e raros.
- Otimizar o cuidado de idosos com câncer. Como a maior parte dos casos da doença acomete pessoas de idade avançada e a população mundial está cada vez mais longeva, são necessários tratamentos compatíveis.
- Aumentar a participação de voluntários em estudos científicos.
- Reduzir as consequências adversas do tratamento oncológico.
- Diminuir o impacto da obesidade na incidência e nos desdobramentos do câncer.
- Descobrir lesões pré-malignas mais precocemente e tentar começar a tratá-las antes, quando necessário.