Quantas vidas uma única pessoa pode mudar mesmo após a morte? De acordo com especialistas, passa de 10 o número de beneficiários da doação de órgãos e tecidos. Esse ato de altruísmo e solidariedade é o carro-chefe do Setembro Verde, que destaca a importância de se declarar um doador ainda em vida.
Conviver diariamente com as incertezas do dia seguinte e não ter nenhum tratamento medicamentoso capaz de trazer a cura são alguns dos maiores desafios de quem aguarda por um órgão na fila de transplantes. Atualmente, o Rio Grande do Sul conta com mais de 1,4 mil pessoas esperando por um coração, um pulmão, um rim, um fígado ou outros órgãos.
A quantidade de transplantes efetivos ainda é muito pequena. Dados preliminares da Secretaria Estadual da Saúde (SES), atualizados em 16 de julho deste ano, apontam que, até junho, foram realizados apenas 349 transplantes neste ano.
A fila esbarra, geralmente, na negativa familiar da pessoa que morreu. Em boa parte dos casos, pessoas desconhecem a vontade do parente e acabam optando por não doar seus órgãos. Mas há famílias que, mesmo no momento de dor, se compadecem da causa e permitem a doação. Foi graças a essa atitude que Giovanna, Erick e Naara ilustram as páginas a seguir. Elas e ele são receptores. Não só mudaram suas vidas após as cirurgias, como tiveram uma nova chance de viver.
De coração novo, Erick, 17 anos, retoma sua rotina
Em 7 de dezembro de 2017, Michele Vidal dos Santos recebeu um telefonema avisando que o filho Erick Santos da Silva seria medicado na UTI do Hospital da Criança Santo Antônio, no complexo da Santa Casa de Porto Alegre, e, a partir daquele momento, teria mais uma semana de vida. O menino sofria de uma miocardiopatia dilatada, que fez com que o órgão perdesse, progressivamente, suas funções.
A sensação de impotência tomou conta da mãe, que revivia um capítulo trágico da sua vida. Dois anos antes, em 2015, ela perdera o filho mais velho que também sofria de problemas no coração e aguardava por um transplante desde 2011.
— Parece que estava dentro de um buraco presa dentro dele — lembra.
O que Michele define como “milagre” aconteceu no dia seguinte ao fatídico telefonema. Uma nova ligação, dessa vez da médica intensivista pediátrica Aline Medeiros Botta, responsável clínica pelo programa de transplante cardíaco pediátrico do Santo Antônio, informava que haviam encontrado um doador compatível com o menino.
— Foi tão rápido para quem esperou quatro anos e nada aconteceu — diz, referindo-se à espera frustrada do mais velho.
Regras rígidas, mas grandes recompensas
A história de Erick foi contada por ZH em janeiro do ano passado. À época, ele ainda estava internado na Santa Casa se recuperando da cirurgia. De lá para cá, muita coisa mudou. A alimentação tem regras seguidas à risca: salada, só cozida; xis e embutidos são vetados; comida, apenas feita em casa.
Antes de receber alta, a família precisou contatar a secretaria de Obras de Esteio, onde mora, para acelerar uma obra na rua onde vive, evitando assim que qualquer poeira atrapalhasse na recuperação do adolescente. Fora isso, os celulares dos quatro moradores da residência costumam tocar em sincronia em determinadas horas do dia, indicando que Erick precisa tomar seus medicamentos.
— Essa é nossa rotina. Mas tudo isso tem recompensa. Tenho uma leveza porque hoje ele está aqui — comemora a mãe.
Aos poucos, o guri retoma a vida que tinha antes de adoecer. Erick retornou à escola em março deste ano, já vai ao mercado próximo de casa sozinho, brinca com os sobrinhos e, às vezes, acompanha o irmão nas aulas de futebol.
— Não conseguia fazer isso antes — relembra Erick.
Apesar de tantas mudanças, mais de um ano e meio depois de ter um novo coração batendo no peito, algumas coisas seguem inalteradas. O guri tímido é de poucas palavras, mas não resiste e abre um sorriso largo quando o assunto é futebol – ou o Grêmio. Ainda sonha em ter muitos filhos. Doze, no total: um time inteiro de futebol e mais um reserva.
“Foi o gesto de amor de uma família que salvou nossa filha”
— Vou me arrumar — anuncia Giovanna, de apenas dois anos, quando a mãe, Luane de Bairros Bloedow, disse que era a hora de ir brincar na pracinha do prédio onde vivem, em Canoas.
Dirigindo-se para o quarto do apartamento, a pequena é barrada por Luane:
— Tu já estás pronta. Só vamos trocar o casaco.
A oferta para andar de balanço veio depois que a mãe mirou pela sacada e teve certeza de que mais ninguém estava no playground. Giovanna precisa de cuidados redobrados, pois passou, em dezembro de 2018, por um transplante cardíaco que lhe garantiu a vida.
Os meses que antecederam o procedimento foram angustiantes para a família, que praticamente se mudou para o Hospital Santo Antônio em razão das inúmeras internações da pequena. Luane conta que, aos nove meses de vida, Gigi, como é chamada, apresentou sintomas que pareciam uma falta de ar. Após investigarem, descobriram uma miocardite viral, infecção que atinge o coração e causa dilatação, com perda de função.
A menina passou a sofrer de insuficiência cardíaca, chegando a ter o órgão operando em apenas 11% da sua capacidade.
Com baixo fluxo sanguíneo, vieram as complicações: Gigi parou de comer, pois não conseguia mais fazer a digestão, mal parava em pé, não podia fazer esforço algum e passava mais tempo no hospital do que em casa. Depois de muitas tentativas de tratá-la com medicamento, ela finalmente foi listada na fila por um coração em janeiro de 2018. O desfecho esperado surgiu em 14 de dezembro, quando o órgão apareceu, quatro dias após a menina completar dois anos.
— Quando ela recebeu o transplante, estava há mais de quatro meses internada na UTI, em ventilação mecânica, com quadro gravíssimo. Teve diversas paradas cardíacas. A gente estava lutando e aguardando desesperadamente por um coração para ela. Ela teria morrido se não tivesse passado pela cirurgia — relata Aline.
Entre a crueldade da vida e o milagre do transplante
Recuperada e com uma energia típica para a faixa etária, Gigi ainda tem limitações – não pode ir a locais com outras pessoas, por exemplo, pois sua imunidade é muito baixa. Contudo, as supera com um sorriso no rosto.
— Antes do transplante da Giovanna, a gente não imaginava que esse tipo de coisa pudesse acontecer: uma pessoa nascer saudável e precisar de um órgão. É difícil tu aceitar essa fase de que nada pode ser feito, mas doar é um ato de amor. São vidas que seguem. Muitas pessoas ficam nos hospitais esperando e não conseguem, e muitas pessoas dizem não. Isso é cruel. Ter a oportunidade de conviver com um transplantado é um milagre, uma nova vida, uma nova chance. É graças ao gesto de amor de uma família que doou o coração do seu filho que hoje temos a nossa filha com saúde, brincando e feliz — destaca Luane.
Depois de receber pulmão, Naara engajou-se na conscientização
Foi com uma festa à fantasia que a ex-cabeleireira Naara Vidal Nunes, 54 anos, comemorou o que, segundo prognóstico médico, seria seu último aniversário, em março de 2015. Com um pulmão que “aparentava ter mais de cem anos de idade”, ela não se deixou abalar pela perspectiva de morrer dentro de seis meses.
Os primeiros sintomas apareceram durante uma viagem para Curitiba para o primeiro ano da neta, Beatriz. Naara sentiu dificuldades para respirar e não conseguia fazer nenhum esforço. Ao retornar para o Estado, foi atrás de um médico.
— Ele perguntou: “Onde está o teu pulmão?”. A essa altura, já estava com um quadro de enfisema muito adiantado por conta de um problema genético — diz.
Amarrada à máquina de oxigênio desde então, a porto-alegrense radicada em Rio Grande foi listada para transplante em 2015. Esperou exatos dois anos, dois meses e 22 dias – como faz questão de sublinhar – até a realização da cirurgia, em 31 de julho de 2017.
— Quando a gente vem para cá (Porto Alegre), a incerteza é muito grande. Tu já vens com diagnóstico de morte. Não depende de um tratamento, depende de uma família, de eles terem empatia (e doarem os órgãos).
Depois de mais de duas décadas vivendo no município do sul do Estado, veio para Capital na companhia dos filhos. A cada 15 dias, o marido, funcionário público, acompanhava de perto a angústia. Precisava manter o emprego para ajudar a bancar as duas casas.
Corajosa, Naara não se deixou abater. Engajou-se em grupos que promovem a doação de órgãos em escolas e empresas.
"Eu nasci de novo. Hoje, estou na adolescência”
— Essa coisa de me manter ocupada me ajudou a aguentar a espera. Mas não vou dizer que muitas vezes eu não pensava: “Poxa, estou longe da minha família. Será que essa espera vai surtir o efeito que queremos?”.
O transplante feito dois anos atrás resultou no efeito desejado. Extremamente comprometida com o pós-operatório, cuida para tomar os medicamentos na hora indicada e se afastou da profissão por não poder lidar com produtos químicos. Em julho último, comemorou mais uma vitória: conseguiu assistir, emocionada, a uma apresentação de balé da neta em Curitiba.
— Há dois anos, não sabia se poderia ver ela de novo. Ela é minha luz. Esses momentos valem a pena — relata.
Atualmente, se dedica, aos poucos, à costura criativa e às campanhas de doação de órgãos. Preside a Associação de Pré e Pós Transplantados de Rio Grande e é uma militante da causa. Costuma dizer que, se converter uma única pessoa, já está feliz.
— Depois do transplante, eu nasci de novo. Hoje, estou na adolescência. A gente reaprende a viver — afirma.