O funcionário público Paulo Cerva, 55 anos, pintou as paredes de casa de cores escuras, diminuiu o brilho da TV e evita, sempre que pode, ir ao dentista – por medo da luz forte e direcionada. Para a capixaba Viviane Silvestre Ferreira, 42 anos, viajar de carro durante o dia se tornou um perigo: ela acaba prestando mais atenção às sombras do que à estrada. Ela prefere a noite para sair, trabalhar e até para ler.
As “moscas” que poluem a visão de algumas pessoas (é esse o termo que a maioria delas usa para descrever o problema) aparecem assim, de repente. A estudante de enfermagem Cassia Ozório Bittencourt, 28, lembra da primeira vez que as viu: tinha 17 anos.
– Parecia um fio de cabelo bem pequeno, quase transparente – lembra, acrescentando que saiu correndo para o banheiro para lavar o olho, sem conseguir tirar a “sujeirinha”.
Trata-se, na verdade, de “moscas volantes”, ou pequenos pontos escuros que aparentam se mover diante de um ou de ambos os olhos. A maioria das pessoas que têm o problema relata que elas podem ter a forma de círculos, de filamentos ou teias de aranha. Costumam ser percebidas lendo, quando se olha para uma parede vazia ou diante de muita luz.
Os relatos quase sempre envolvem formas de animais. Quanto mais iluminado um ambiente, mais elas se fazem presentes. Como parecem externas ao olho, à primeira vista podem de fato ser confundidas com um inseto. Segundo Paula Gabriela Santos, especialista em retina e vítreo na Clínica Visão, em Porto Alegre, essas manchas se formam quando o vítreo, a camada gelatinosa do olho, se condensa.
– Com a idade, o vítreo fica mais líquido e aparecem essas condensações. Quando elas se precipitam, formam uma espécie de barreira, que projeta uma sombra na visão em lugares iluminados – explica.
Paulo Cerva, que mora em Estância Velha, começou a ver as moscas em 2011. De lá para cá, atividades de lazer como ir à praia e tomar banho de piscina deixaram de ser prazerosas. Paulo evita olhar para “tudo o que reluz”. Quando anoitece, sente-se mais tranquilo.
– Em casa, fico com as luzes apagadas para não ver esses pontinhos pretos – conta.
Estímulo visual do próprio olho
Em oftalmologia, as moscas volantes são consideradas um fenômeno entóptico, ou seja, um estímulo visual cuja fonte é o próprio olho. Acontece, por exemplo, quando uma pessoa enxerga os próprios vasos ou glóbulos sanguíneos. Em outras palavras, a pessoa está enxergando a materialidade do próprio olho.
Cassia, que mora em Pelotas, já teve receitados óculos de descanso e vitaminas – um médico garantiu que as manchas sumiriam com o tempo, o que não ocorreu.
– Pelo contrário, as moscas aumentaram.
Ela já entrou em depressão por causa do problema, mas hoje se orgulha de dizer que ele não a impede de fazer nada e que, às vezes, até consegue se esquecer das moscas.
O oftalmologista José Amadeu Vargas, chefe do Serviço de Oftalmologia do Hospital São Lucas, em Porto Alegre, acredita que é possível, sim, se esquecer delas:
– Quando o cérebro se adapta, a pessoa nem as percebe mais. Agora, se ficar procurando, olhando para um fundo branco ou o céu claro, vai vê-las.
Velho fenômeno “mítico e espiritual”
Moscas volantes são um problema antigo. Há relatos dessa condição que remontam há mais de 2 mil anos. Na Suíça, estudos indicaram que elas foram reproduzidas como símbolos abstratos na arte egípcia e que civilizações antigas as interpretavam como um fenômeno mítico e espiritual.
Um estudo publicado nos anos 1990 pelo oftalmologista alemão Hubertus Plange mostra que as circunstâncias de seu aparecimento já haviam sido estudadas no século 2 d.C. pelo médico e filósofo Galeno de Pérgamo. Segundo um artigo do The College of Optometrists, referência em oftalmologia no Reino Unido, sua causa só foi descoberta no século 19 pelo médico checo Johannes Purkinje, o primeiro a identificá-las como opacidades na camada gelatinosa do olho.
Muitas pessoas enxergam as moscas, mas não vão ao médico. é um problema muito comum
PAULA GABRIELA DOS SANTOS
Oftalmologista
Foi, literalmente, da noite para o dia que as moscas volantes se tornaram a companhia diária de Alessandra Moreira, 42 anos.
A auxiliar de recursos humanos estava de férias quando as manchas surgiram.
– Foi quando acordei, só no olho esquerdo. Ele ficou todo nublado – relata.
Hoje já parece resignada com sua presença:
– Elas aparecem principalmente de dia, quando entra luz, quando estou no celular, no computador ou vendo TV. Dá muita ansiedade. De noite elas desaparecem. O que puder, eu deixo para fazer à noite.
Bruna Machado de Oliveira, de Parobé, também precisou se adaptar. A auxiliar administrativa de 28 anos nunca teve problema de visão nem precisou usar óculos, mas as sombras apareceram mesmo assim.
– Chego a ter dor de cabeça – explica.
Assim como milhares de pessoas que, sem perspectiva de tratamento – não há cura para moscas volantes –, Alessandra e Bruna recorreram à internet para saber mais sobre o que estavam enxergando. Em grupos nas redes sociais (um deles, no Facebook, tem mais de 1,4 mil membros), trocam relatos e possíveis amenizadores.
Viviane, que mora em Serra (ES), administra um desses grupos.
– É onde nos encontramos. Muita gente que sofre disso não é compreendida – diz.
Não há levantamento oficial sobre a incidência das moscas volantes em brasileiros. Mas, segundo os oftalmologistas Paula Gabriela dos Santos e José Amadeu Vargas, a presença é relatada constantemente nos consultórios. No Hospital São Lucas, Vargas registra cerca de 10 queixas por semana. Para Paula, por não se tratar de uma condição que compromete a visão, o problema não recebe tanta atenção dos pesquisadores.
– Muitas pessoas enxergam as moscas, mas não vão ao oftalmologista. É um problema muito comum – afirma.
Segundo a médica, existem procedimentos que podem corrigir as opacidades do vítreo, como cirurgias a laser (vitreólise) e de remoção do vítreo (vitrectomia), mas nem todos os oftalmologistas recomendam, por serem técnicas agressivas ao olho.
– Isso é questionado em congressos. A vitractomia é mais invasiva do que uma cirurgia para catarata – diz Paula.
Mesmo sem perspectiva de cura efetiva, os pacientes mantêm as esperanças.
– Quem inventar um óculos para isso vai ficar rico – brinca Paulo Cerva.