De início, os novos hábitos recebem até elogios: aquela amiga ou familiar agora segue uma dieta, pratica exercícios, demonstra no dia a dia um zelo com a própria saúde. Mas o que era para ser uma rotina saudável pode esconder um grave problema. Anorexia e bulimia são transtornos alimentares que ocultam, sob a aparência de um autocuidado, a insatisfação com o corpo e, em última instância, a obsessão com o desejo de magreza. Somados à compulsão alimentar, os problemas atingem até 5% das mulheres, segundo estimativas mundiais.
Conhecidos por serem retratados em novelas ou seriados, os distúrbios alimentares entram no guarda-chuva das doenças psiquiátricas e têm, em comum, a irregularidade ao comer. O tema foi tratado com atenção no Congresso Brasileiro de Psiquiatria deste ano, que ocorreu entre os dias 17 e 20 de outubro, em Brasília.
– Há uma pressão social constante para se perder um, dois, três quilinhos para o verão. Mas o transtorno alimentar é diferente: existe um grande sofrimento por trás. Para essas pessoas, a busca por perder peso é central em suas vidas. Há prejuízo para estudar, trabalhar e se relacionar – afirma a psiquiatra Maria Francisca Mauro, médica no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, do Rio de Janeiro.
Três são os transtornos mais comuns (leia mais abaixo). A anorexia – a doença mental com maior taxa de mortalidade – é caracterizada por uma perda do desejo de comer, um medo absoluto em engordar e a certeza de ser uma pessoa muito gorda. Na bulimia, o indivíduo se sente culpado após comer e aciona mecanismos que, na sua cabeça, irão ajudar a emagrecer, como provocar vômito ou usar laxantes e diuréticos. Na compulsão alimentar, come-se descontroladamente em um curto espaço de tempo – no prato, restam apenas uma tristeza e agonia profundas.
Muitas vezes, sobretudo na anorexia, o indivíduo não admite ter um problema: argumenta que só está se preocupando com a saúde. Adolescentes e jovens adultos costumam ser mais afetados, principalmente no sexo feminino: 80% dos casos são em mulheres, um sintoma de uma sociedade que exige delas um corpo sempre belo. Ao mesmo tempo, o número de casos em homens e outras faixas etárias vem aumentando. Pessoas LGBT+, em especial trans, também são mais suscetíveis a bulimia e anorexia, segundo a Associação Norte-Americana de Transtornos Alimentares. O motivo: menor autoestima e autoaceitação, devido ao preconceito.
As causas dos transtornos são multifatoriais. Os genes são parte culpada no caso da anorexia – para os outros distúrbios, a ligação ainda não é bem compreendida. Na questão psicológica, entram a insatisfação com o corpo e a baixa autoestima. Na parte ambiental, contam uma família disfuncional (pais agressivos, excessivamente exigentes ou que se preocupam demais com o próprio peso), seguir uma profissão que valoriza muito a imagem (atletas, modelos, bailarinas e dançarinos), estar constantemente exposto à imagem de um corpo perfeito na mídia ou em redes sociais, ter sofrido algum trauma na infância ou situações estressantes enfrentadas na vida (morte de um parente, um divórcio, uma demissão traumática, por exemplo).
Não é à toa que é grande a presença de outras doenças psiquiátricas, como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), uso de drogas e automutilação. Um estudo feito com 674 pessoas com bulimia e anorexia chegou a apontar que 64% delas teve transtorno de ansiedade alguma vez na vida. O perigo, além de desnutrição, é o suicídio.
– Às vezes, a depressão aparece antes ou depois do transtorno alimentar. Muitas vezes, a pessoa tem uma “cicatriz” cerebral e fica vulnerável a transtornos de ansiedade. Ou o contrário: quem tem problemas com ansiedade pode ficar vulnerável a distúrbios alimentares – reflete Bruno Palazzo Nazar, coordenador do Ambulatório de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Enquanto os índices de anorexia permanecem estáveis (atinge cerca de 1% das mulheres), a bulimia e a compulsão alimentar estão crescendo, mostram estudos. Entre as possíveis causas para o aumento, especialistas apontam que há um maior número de diagnósticos devido a mais informação, mas também à insatisfação consigo mesmo decorrente das redes sociais e da sexualização cada vez mais precoce de jovens garotas.
– Você não sabe a influência do positivo e do negativo da rede social em garotas. Outra coisa que se sugere é que há mais casos por uma sexualização precoce das meninas. O corpo da menina não é para si, mas para o olhar do outro – diz Taki Cordás, coordenador do ambulatório de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).
No Rio Grande do Sul, há apenas um serviço focado em transtornos alimentares pelo Sistema Único de Saúde (SUS): o Ambulatório de Transtornos Alimentares do Hospital de Clínicas da UFRGS, em Porto Alegre. Só que os leitos muitas vezes não são ocupados por quem tem transtorno alimentar, diz a coordenadora do Programa de Transtornos Alimentares, Miriam Brunstein:
– Isso ocorre por desconhecimento ou pelos obstáculos do próprio sistema. A via de acesso para chegar até aqui é por posto de saúde do SUS. Outros hospitais com unidades psiquiátricas também atendem esses pacientes, mas não têm equipe especializada.
Ainda no Rio Grande do Sul, há outro núcleo especializado no tema, mas que não atende pelo SUS: o Grupo de Estudos e Assistência em Transtornos Alimentares (Geata), criado de forma pioneira no Brasil em 1989. Uma das coordenadoras é a psiquiatra Maria Angélica Nunes, professora da pós-graduação em Epidemiologia da UFRGS.
– O importante é: não faça do peso a identidade do seu filho. O ideal é focar nos hábitos de alimentação saudável, não no resultado da perda de peso – afirma Maria Angélica.
Principais transtornos alimentares
Anorexia
O que é: o indivíduo fica obsessivo com o peso e adquire uma imagem distorcida de si – tem certeza de que está muito acima do peso, apesar de, na realidade, não estar. Para resolver aquilo que vê como problema, passa a seguir uma dieta extremamente restritiva: pula refeições, come apenas uma folha de alface, elimina toda e qualquer forma de doce, alimenta-se apenas de líquidos, por exemplo. Por ver-se acima do peso e para evitar comer, deixa de sair com amigos e passa a viver de forma isolada. Pode aparecer ao lado da bulimia.
Incidência: 1% da população de mulheres. Os fatores externos são menos importantes do que nos outros transtornos – aqui, a herança genética conta bastante.
Média de idade: adolescência, em torno dos 13 anos.
Consequências: como a pessoa simplesmente não come e passa a emagrecer, também deixa de ingerir glicose, um importante combustível para que as células funcionem. Na prática, o corpo não tem energia para seguir com as funções vitais, o que pode prejudicar a densidade dos ossos (de forma permanente, inclusive), a saúde cerebral (há perda de foco, memória e atenção), a produção de hormônios (a menina pode parar de menstruar, ter dores pélvicas e até ficar infértil), as funções cardíacas, dos rins e do sistema imunológico. Em última instância, há falência dos órgãos. É o transtorno mental com mais alta taxa de mortalidade.
Bulimia
O que é: em um período curto (duas ou três horas), a pessoa come descontroladamente, em uma quantidade muito acima da média (4 mil calorias, por exemplo) e depois vomita, arrependida, para evitar o ganho de peso. Outras formas de forçar a perda de calorias envolvem uso de laxante, diurético ou remédio para emagrecimento, jejum ou prática de exercícios físicos intensos. O indivíduo, ao realizar os atos de forma escondida, sente-se aliviado, como se tivesse expulsado a vergonha que sentiu na hora de comer. Homens e mulheres com bulimia têm grande medo de engordar e sofrem quando notam algum ganho de peso. A diferença em relação à anorexia é que, na bulimia, o peso da pessoa não é muito abaixo do normal. Como o corpo segue igual e os esforços para emagrecer são feitos de forma escondida, às vezes os pacientes levam até oito anos para aparecer no consultório. Também há “intervalos” de tempo em que os sintomas pausam e, depois, voltam.
Incidência: 2% da população feminina.
Média de idade: a partir de 18 anos.
Consequências: problemas gastrointestinais, anemia, desidratação, mudanças no metabolismo, corrosão dos dentes, problemas de coração em função da perda de nutrientes, irritação na garganta, câncer na faringe.
Compulsão alimentar
O que é: em curto intervalo de tempo, o indivíduo come descontroladamente: de uma vez só, bebe uma lata de condensado, come uma torta inteira, devora 10 sanduíches. Em geral, a refeição é feita de forma escondida e seguida de um sentimento profundo de tristeza, culpa e desgosto por si próprio. A sensação é de que não é possível parar de comer até terminar a comida que está à frente. Muitos pacientes têm sobrepeso ou obesidade, em função do excesso de calorias ingeridas, mas nem todo obeso tem compulsão. A diferença em relação à bulimia é que a pessoa com compulsão não tenta compensar o banquete com tentativas extremas de emagrecimento. O hábito se resume a comer descontroladamente e sentir-se culpado em seguida.
Incidência: de 2,5% a 3,5% da população feminina.
Média de idade: costuma ser o mais tardio do trio de transtornos alimentares, com aparição entre 20 e 30 anos.
Consequências: sobrepeso, obesidade e problemas decorrentes, como hipertensão ou diabetes.
Outros transtornos
Pica: o indivíduo come produtos que não são comida: areia, tijolo, plástico, gelo. É mais comum na infância.
Transtorno de ruminação: o indivíduo regurgita o alimento e cospe ou engole novamente.
Transtorno alimentar restritivo: a pessoa apenas come determinados alimentos. Também é mais comum na infância.
Síndrome do comer noturno: mais prevalente em obesos, ocorre quando cerca de 75% das calorias do dia são ingeridas à noite ou de madrugada. A pessoa pode acordar para comer e, no dia seguinte, estar cansada.
Como tratar os transtornos
O tratamento para transtornos alimentares é multidisciplinar: envolve psiquiatra, nutricionista, médico clínico e psicólogo. No caso da anorexia, a depender da gravidade da saúde da pessoa, a internação pode ser uma medida para evitar o risco de morte. A busca é por reestabelecer o peso saudável. Depois, restaurar hábitos alimentares saudáveis, com a ajuda de terapia psicológica individual (psiquiatras recomendam cognitivo-comportamental) e, inclusive, familiar. Podem ser receitados medicamentos.
Sinais de alerta
- Preocupação excessiva em perder peso, sob o pretexto de estar gordo ou de que “não será amado(a)” no peso atual.
- Corte de alimentos da dieta de forma abrupta, como açúcares, carboidratos e proteínas, sem uma substituição equivalente.
- Refeições “puladas”, com o argumento de não estar com fome.
- Emagrecimento rápido e contínua insatisfação com o próprio corpo.
- Comida, dieta e corpo passam a se tornar os únicos assuntos de interesse.
- Alimentos passam, de uma hora para outra, a serem rotulados como “bons” ou “maus”, sem sequer aquela a exceção do fim de semana.
- Queda de cabelo.
- Isolamento social: o indivíduo deixa de sair com os amigos por se sentir gordo.
- Mudança de comportamento: a pessoa se torna mais fechada, irritada e lacônica.
- Prática de exercícios físicos de forma intensa, algo que médicos chamam de “comportamento purgatório”: a pessoa começa, do nada, a correr duas horas por dia, a puxar pesos, a fazer polichinelos após a refeição.
- O indivíduo corre para o banheiro logo após fazer refeições, acompanhado do barulho da água saindo da torneira ou de música alta (uma forma de disfarçar o vômito).
- Começar rituais específicos antes de comer: cortar a comida em pedacinhos, comer sozinho.
- Cheiro constante de vômito em peças de roupa ou cabelos.
Dicas para os pais
- Não cobre do seu filho a perda de peso. Em vez disso, ensine a alimentar-se de forma de saudável: quando o foco é a boa dieta e não a magreza, a neura com o corpo é combatida.
- Ao demonstrar preocupação, foque no “eu” em vez de “você”. Prefira dizer “estou preocupado que você parou de comer” no lugar de “você não está comendo mais”.
- Pergunte como seu filho ou filha se sente em relação ao próprio peso. Tente mostrar que o valor da balança não é a característica mais importante.
- Não prometa segredo se você ficar sabendo que alguém próximo apresenta práticas típicas de quem tem transtorno alimentar. Anorexia, bulimia e compulsão são doenças que precisam ser tratadas.
- Avise familiares se seu amigo ou amiga aparenta ter um transtorno alimentar. Só assim o problema será tratado com profissionais.
- Faça refeições à mesa com seu filho.
- Fique de olho em quem seu filho ou filha acompanha nas redes sociais. Influenciadores fitness podem passar a ideia de que a felicidade está apenas no corpo perfeito. Explique que a felicidade não está na magreza.
*O repórter viajou a Brasília a convite da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)