Provavelmente você já ouviu falar em pessoas que deixam de se alimentar para alcançar um determinado padrão estético. Também deve ter escutado sobre aquelas que comem compulsivamente e, para aliviar a culpa, usam laxantes ou provocam o vômito. Comum no rol dos transtornos alimentares, a anorexia atinge entre 0,5% e 1% de adolescentes e população jovem adulta, conforme dados de 2004 da Organização Mundial da Saúde. Também recorrente, a bulimia é um problema para 0,9% e 4,1% de pessoas nesses grupos.
O que talvez você nem imagine é que um comportamento potencialmente saudável possa se transformar em um problema. É o que acontece com pessoas que sofrem de ortorexia nervosa, conceito ainda não classificado oficialmente como distúrbio psiquiátrico, mas já identificado em pessoas que são obcecadas por alimentos ditos "puros". Em uma revisão publicada em 2015 por pesquisadoras da Bates College, nos Estados Unidos, a ortorexia é definida como "uma doença disfarçada de virtude".
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Mais recente que a anorexia e a bulimia, o conceito de ortorexia foi criado em 1997 pelo médico norte-americano Steven Bratman, que uniu os termos gregos orto (correto) e orexis (apetite) para preencher classificar pacientes que não se enquadravam em nenhum dos termos já conhecidos. Esse novo comportamento tratou de classificar aqueles indivíduos que buscam uma alimentação saudável de forma tão obsessiva que são capazes de adotar medidas extremas para manter a pureza do organismo e, em seu entendimento, preservar a saúde.
– São pessoas que se preocupam de forma excessiva com a qualidade da alimentação. Esse grupo vai, aos poucos, cortando e limitando a variedade da alimentação. Com isso, começam a aparecer problemas subclínicos decorrentes da deficiência de nutrientes – destaca a nutróloga e diretora do Departamento de Distúrbios Alimentares da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), Maria Del Rosario.
Rotina é alterada aos poucos
Sem obedecer a um padrão específico e sem pré-disposição para algum sexo ou idade, a ortorexia nervosa dá seus primeiros sinais de forma sutil. Inicialmente, o indivíduo fica fixado com a alimentação: lê rótulos, corta do cardápio grupos alimentares inteiros, especialmente carnes, laticínios e glúten. Industrializados, produtos ricos em sódio, açúcar, gordura, corantes e outros itens também são eliminados. Em seguida, o paciente pode ficar obcecado com o preparo da comida, o que passa a ocupar a maior parte do seu tempo. A forma como os alimentos são cortados e até mesmo os utensílios usados geram angústia entre ortoréxicos. Por fim, a obsessão pode chegar a afetar a vida social, que é abandonada para fugir dos alimentos considerados impuros.
– A vida exige flexibilidade para tudo. Existem situações em que é preciso escolher o "menos pior", e não o melhor, mas isso não pode gerar sofrimento – avalia a nutricionista clínica e professora do curso de Nutrição da Unisinos Ana Harb, que defende uma alimentação saudável, mas sem radicalismos.
– Tudo que for trazer respostas positivas tem de ser introduzido na rotina. O que não pode é ser a única coisa na vida – explica a psicóloga e membro do Atendimento Multidisciplinar de Anorexia e Bulimia (Amab) Ieda Zamel Dorfman.
Como se o feitiço virasse contra o feiticeiro, aquilo que era entendido como bom passa a trazer resultados péssimos para a saúde. Nutrientes fundamentais são perdidos, e sua falta pode provocar queda de cabelo, sinais de fraqueza e emagrecimento excessivo. Em casos mais graves, o quadro de desnutrição gerado pelo problema pode levar à morte.
Bratman descreve em seu site uma dessas histórias extremas. Ocorreu em 2003 e vitimou a instrutora de yoga Kate Finn, moradora da Califórnia, nos Estados Unidos. De acordo com o relato feito pela própria mulher em 1998, ela passou anos em busca de respostas para os distúrbios de que sofria. Adepta do veganismo, abdicou da filosofia tentando a cura para problemas digestivos – acreditava que excesso de carboidratos e falta de proteínas pioravam os sintomas. Adotou a alimentação viva. Sem êxito, abortou a restrição alimentar e mergulhava em um pote de sorvete a cada noite antes de dormir. A oscilação na balança preocupava, e médicos chegaram ao diagnóstico de anorexia. Em 1997, Kate Finn teve contato com o texto de Bratman sobre o novo conceito.
"Ela resistiu ao diagnóstico e ao tratamento recomendado porque eles não pareciam se encaixar. Ela não tinha medo de ser gorda. Ela não queria ser magra. Ela só queria comer alimentos saudáveis. Em sua mente, ela estava doente, e, portanto, era preciso se purificar", escreveu o médico em seu site. Em função do radicalismo, Kate morreu de desnutrição.
Conceito ainda em discussão
Muito se fala que alimentação saudável e atividades físicas regulares formam uma dupla imbatível para manter a saúde em dia e poderiam, inclusive, ser os ingredientes principais da receita de longevidade. No entanto, uma linha tênue separa a ortorexia de um comportamento preventivo. "Ortorexia não é o mesmo que devoção por uma alimentação saudável. A última é uma escolha consciente. A ortorexia é uma obsessão por alimentos saudáveis que envolve outros fatores emocionais e torna-se psicologicamente e, talvez até mesmo fisicamente, não saudável. É um distúrbio alimentar", pontua Steven Bratman, autor do conceito.
Embora, na origem do termo, o que difere um ortoréxico de um anoréxico seja a preocupação com a saúde e não com a imagem ou a balança, a psicóloga Ieda Zamel Dorfman não vê um distanciamento entre os problemas. Para ela, a ortorexia seria um viés dentro de um quadro de bulimia ou anorexia, por exemplo.
– A tendência, hoje, é colocar isso como se fosse algo fora desses transtornos. Mas não consigo entender como algo separado. É um item que está dentro deste transtorno – pondera.
Impulsionado pelas redes sociais e pela mídia, o "comer saudável" se popularizou e obrigou Bratman a fazer uma atualização de seu primeiro conceito. Em 2015, ele acrescentou que ortorexia e anorexia caminham juntas. Isso porque observou uma mudança no comportamento dos anoréxicos: agora, eles não pensam mais em contar calorias, mas, sim, em comer alimentos que façam bem. Acontece que as pessoas que sofrem com esse distúrbio não conseguem dissociar produtos saudáveis daqueles que têm baixas calorias. "Aqueles com anorexia focam somente em evitar alimentos, enquanto aqueles com ortorexia evitam alimentos que julgam serem ruins e abraçam os que acham ser os supersaudáveis", escreveu.
Na mesma linha, Bratman observa que ortoréxicos podem induzir o vômito ou mesmo apelar para laxantes a fim de eliminar toxinas. Nesse caso, seria uma associação com a bulimia.
– É muito mais uma questão psicológica do que propriamente da alimentação – diz a professora de Nutrição Ana Harb.
Para a nutróloga Maria Del Rosario, o ponto chave para uma recuperação do indivíduo é a flexibilização. Ela acredita que a pessoa precisa deixar a rigidez de lado e voltar a comer os alimentos que foram excluídos da dieta. Exames de sangue e densitometria óssea podem ser a primeira cartada usada por um especialista para comprovar que há deficiências importantes no organismo.
Se o quadro for mais grave, é preciso a intervenção de uma equipe multidisciplinar, que inclui psicólogos, psiquiatras e nutricionistas. Nesses casos, a utilização de medicamentos não é descartada, pois a carência de alguns nutrientes, como a vitamina B12, por exemplo, pode provocar confusão mental, afirma a especialista.
Saúde e vida social prejudicadas
Extremamente preocupada com a estética do seu corpo, a estudante de Nutrição Anna Júlia Moll, 19 anos, chegou a criar doenças e problemas alimentares fictícios para justificar o fato de não comer determinados alimentos. Com um quadro que se encaixa no que Bartman definiu em 2015 como uma anorexia com padrões de ortorexia, Anna Júlia não recebeu o diagnóstico de nenhum especialista, mas percebeu que sofria de ortorexia durante uma aula de psicologia.
– Eu achava que era normal, o que fazia era comum para mim. Era comida saudável e, se é saudável, estou certa – relata.
O problema começou quando, aos 16 anos, tornou-se obcecada por tudo que comia. Só ingeria o que ela mesma preparava, sem sal e sem gordura, e pesava obsessivamente os alimentos. Nem as refeições feitas pela mãe eram confiáveis:
– Minha mãe sempre colocava algo para eu comer. Ela tentava me enganar, mas eu não comia.
Nessa época, Anna Júlia chegou a se alimentar basicamente de frango temperado com limão, brócolis, batata-doce e ovos. Nenhum tipo de gordura, nem mesmo azeite de oliva, era permitido.
Para ter certeza do que estava consumindo, prestava atenção em cada detalhe dos rótulos das embalagens e ainda costumava ficar de olho nas compras alheias no supermercado. Inflexível, percebeu que havia passado dos limites quando "decidiu" que era diabética e que não podia consumir laticínios:
– Achei que precisava parar de comer doces e lactose porque, assim, iria perder barriga. Aí, pensei: "A partir de hoje, eu vou ter diabetes e intolerância à lactose, e não vou comer mais isso. Se comer, vou passar mal". Me obrigava a não comer, e não comia.
Esse quadro de fixação por alimentos saudáveis veio depois que a jovem perdeu 36kg, chegando aos 50kg em função de uma anorexia que ela não admitia. Comendo apenas salada em todas as refeições, chegou a ter anemia e parou de menstruar. Depois do acompanhamento médico, o quadro evoluiu para uma obsessão por tudo que era dito saudável.
Vivendo em regime de isolamento, Anna Júlia se afastou das amigas, deixou de frequentar festas e sair à noite para não cair em tentação.
– Perdi uma parte da minha juventude e adolescência. Agora, eu escolhi ser mais feliz. Aquilo de pensar muito no que tu vais comer te deixa neurótica. Quero que a comida seja um prazer – fala a estudante que, depois de ingressar na faculdade, conseguiu alcançar o equilíbrio na alimentação e se permite três refeições livres por semana.
Não há mocinhos nem vilões
Assim como as redes sociais – onde as pessoas mostram-se sempre bonitas e felizes –, a mídia também tem papel fundamental na discussão de questões relacionadas à alimentação, na avaliação da nutróloga e diretora do Departamento de Distúrbios Alimentares da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), Maria Del Rosario. Não é incomum surgirem produtos tachados como "bons" ou "ruins", criando aquilo que a nutróloga chama de "demonização dos alimentos" sem que haja comprovação científica.
O mesmo efeito é percebido em perfis de pessoas que pregam um estilo de vida saudável em blogs e no Instagram. Elas podem influenciar e incentivar pessoas que já enfrentam algum problema.
– Sabemos que a internet é uma ferramenta boa e também perigosa. Dependendo do estado psíquico, se tiver uma blogueira na ponta, a pessoa pode ir atrás dela como se fosse um guru. E vai seguir sem distinguir o que está demais e o que está de menos – diz a psicóloga Ieda Zamel Dorfman, que ainda menciona a existência de sites que ensinam as meninas a serem anoréxicas ou bulímicas. Segundo a especialista, celebridades e até mesmo amigas podem ser influenciadoras de determinados comportamentos.
Blogueira virou exemplo de superação
Um caso que se tornou conhecido foi o da norte-americana Jordan Younger, que criou em 2013 o blog The Blond Vegan (A Loira Vegana, em tradução livre), no qual dividia com os leitores a rotina da sua dieta vegana. Em 2015, ela se viu obrigada a admitir que sofria com um distúrbio alimentar e chegou a trocar o nome do site para The Balanced Blonde (A Loira Balanceada, também em tradução livre). Com mais de 134 mil seguidores no Instagram, a jovem ficou viciada em alimentos chamados "detox", que têm como objetivo desintoxicar e limpar o organismo.
Perda de peso e falta de menstruação foram alguns dos efeitos contrários que ela obteve com a restrição. Após declarar que tinha distúrbios alimentares, Jordan foi tema em sites, jornais e revistas voltados para jovens.