Se o fim de ano é marcado por reflexão sobre o que foi feito, o primeiro mês do ano é visto como o momento ideal para renovar esperanças, repensar atitudes e definir o que fazer dali para frente. Como uma folha em branco, janeiro convida para um novo começo. E é justamente unindo esses dois conceitos – de janeiro como o início de algo novo e da cor branca como representativa de uma história ainda a ser escrita – que surgiu a campanha Janeiro Branco, voltada para a promoção de uma cultura da saúde mental.
O objetivo é levar à conscientização de todos sobre a importância de cuidar da mente. Inspirada em iniciativas de sucesso como o Outubro Rosa, voltado à prevenção do câncer de mama, o Janeiro Branco pretende criar um marco nos cuidados de toda a população com relação às doenças mentais.
Ansiedade e depressão estão entre os males mais comuns, mas também distúrbios como bipolaridade, fobias, transtornos – entre eles, o obsessivo-compulsivo (TOC) –, esquizofrenia e compulsões são alguns dos “alvos” dessa campanha. O projeto não mira diretamente em doença alguma: um de seus objetivos é justamente ser abrangente para, assim, tornar o tema, em toda a sua amplitude, mais próximo das pessoas.
– Desprezar a saúde mental é abrir espaço para o agravamento das doenças emocionais, que têm como consequência desde uma ansiedade passageira até violências graves. Então, por que não aproveitar a oportunidade do início de um novo ano, de um novo ciclo, e pensar sobre assuntos que costumam ser deixados de lado? – propõe o psicólogo mineiro Leonardo Abrahão, criador da campanha.
A principal proposta é levar o assunto “saúde mental” às rodas informais de conversa, às mesas de bares, à fila do banco, ao caixa da padaria:
– Temos, no Brasil, a cultura do futebol. As pessoas falam sobre isso estejam onde estiverem. Temos também a cultura do Carnaval e a cultura das telenovelas. Nosso objetivo é promover uma cultura da saúde mental. Que as pessoas falem mais umas com as outras sobre suas frustrações, seus sonhos, expectativas. Sobre o sentido que veem na vida – explica Abrahão.
Impacto positivo na vida das pessoas
O psicólogo acredita que guardar para si decepções, anseios e esperanças acaba contribuindo para o adoecimento emocional da população. Conversar mais sobre essas questões com quem está à nossa volta – e não apenas com os amigos e familiares mais próximos, por mais que essa atitude seja também de extrema importância – contribuiria para que vivêssemos de maneira mais consciente, mais plena, mais leve.
Por isso, uma das formas de ação que a campanha propõe realizar ao longo do ano são “palestras-relâmpago”, de aproximadamente 20 minutos, feitas em espaços com grande fluxo de pessoas, como salas de espera de hospitais, terminais de ônibus e filas de casas lotéricas. Nelas, o palestrante propõe explicações rápidas sobre a importância de se falar sobre sentimentos, os sintomas e as causas mais prováveis da depressão e da ansiedade, por que é fundamental que haja afeto na vida. Com isso, a ideia é promover a conversa entre os participantes, que muitas vezes nem se conhecem, e assim levar cada um a refletir sobre seu dia a dia, a pensar sobre suas atitudes e, talvez, fazê-los passar a ter comportamentos psicologicamente mais saudáveis.
– Não temos a pretensão de resolver problemas imediatamente, mas de ter um impacto positivo na vida das pessoas. Que elas reflitam sobre questões em que nunca haviam pensado, que enxerguem suas próprias atitudes e as dos outros por perspectivas diferentes. É um processo que precisa começar de alguma maneira – pondera Abrahão.
Defendendo a importância de se discutir esses problemas além do consultório, o psicólogo explica ainda que a ideia não é que a campanha, anual, faça somente do mês de janeiro uma referência nos cuidados com a mente: o início do ano seria, mais do que apenas o período de maior divulgação do Janeiro Branco, também a oportunidade ideal para que todos começassem, dada a simbologia de um ano novo, a cuidar com mais atenção do bem-estar psicológico – e não mais deixar essa preocupação de lado.
“Porque há sofrimentos que podem ser prevenidos. Dores que podem ser evitadas. Violências que podem ser impedidas, cuidadas ou reparadas. Exemplos que podem ser partilhados. Ensinamentos que podem ser difundidos em nome de povos mais saudáveis e mais bem resolvidos em termos emocionais”, afirma um texto da campanha.
Pode acontecer com qualquer um
Psicólogos e psiquiatras defendem a importância de tornar as doenças mentais um assunto mais corriqueiro na sociedade porque entendem que ainda há um grande estigma sobre o tema. Males psicológicos tendem a ser vistos como incuráveis ou difíceis demais de lidar, o que acaba prejudicando a prevenção e impedindo que muitos busquem o tratamento adequado, aumentando o sofrimento de quem passa por esses problemas.
– A sociedade guarda, e isso é histórico, um estigma em relação ao sofrimento psíquico. Em relação a tratamento psiquiátrico, então, o preconceito é ainda maior. E precisamos vencer isso, porque o acometimento de doenças e sofrimentos psíquicos só aumenta – diz Silvana de Oliveira, presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP-RS).
Profissionais da saúde acreditam que esse estigma que paira sobre o tema se deve à compreensão, limitada, de que doenças mentais se referem somente a perturbações mais graves. Criar uma cultura da saúde mental, como propõem psicólogos, passa por informar melhor a população também sobre a frequência com que transtornos mais “leves” – pelo menos durante os primeiros sinais – surgem na sociedade e as características que podem ajudar a identificar a doença.
– Somos uma humanidade em que a depressão é crescente, e essa tem se tornado uma das principais doenças do mundo. Quadros de ansiedade e também casos de suicídio têm se tornado cada vez mais comuns – explica o psicólogo Leonardo Abrahão.
– Ter problemas mentais é algo que pode acontecer com qualquer um – complementa a presidente do CRP-RS.
A demora pela busca de tratamento
Vistas sob o estigma que as acompanha, doenças mentais acabam sendo identificadas tardiamente, depois de períodos em que seus sinais costumam ser ignorados. Sem querer aceitar que mudanças comportamentais e sofrimentos duradouros podem significar que a saúde mental não está em dia, muitos pacientes postergam a procura por tratamento e ignoram conselhos ao mesmo tempo em que se sentem incompreendidos. E, quanto mais se demora para buscar ajuda, pior é.
– Postergar significa que a doença vai se agravar. Mal comparando, é como tratar uma pneumonia: com o passar do tempo, se não tratada, a doença só piora. E o processo que acontece nas doenças mentais é semelhante. As pessoas empurram com a barriga, achando que aquilo não é nada, que vai passar, mas não é assim. Se não tratar, a doença não passa – explica o psiquiatra Cláudio Meneghello Martins, diretor secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Lamentando a cultura de só se procurar resolver problemas de saúde a partir dos sintomas mais claros, a psicóloga Silvana de Oliveira enxerga um impasse entre o preconceito em relação aos transtornos mentais e um aumento no uso de medicamentos psicotrópicos:
– A sociedade nega o sofrimento psíquico ao mesmo tempo em que produz isso cada vez mais.
Ela sugere que se debata com maior frequência os contextos que produzem o adoecimento, refletindo sofre questões pessoais, sociais e profissionais que afetam cada indivíduo, e não julgando que tudo “é do jeito que é”, que nada pode ou deve ser feito para mudar.
Conversar para prevenir
A proposta de se conversar mais sobre saúde mental é também uma forma de buscar promover a prevenção. Como o diagnóstico e o tratamento de doenças psíquicas ainda são vistos com algum preconceito, a prevenção desses males fica prejudicada. Ao desvincular o tema dos consultórios, o objetivo é contribuir para que a troca de informações com as pessoas ao redor sirva também como uma forma de evitar ou identificar mais cedo a presença de doenças mentais.
Insegurança, desesperança e algum grau de sofrimento, afinal, fazem parte das experiências de vida – e são questões pessoais que podem, sim, ser compartilhadas com outros.
– A vida humana é atravessada por momentos de sofrimento. Em determinadas fases, passamos por desafios que são comuns. Vencê-los é quase como uma “tarefa” que todos precisamos completar. E a prevenção tem uma dimensão que passa também pelo sofrimento psíquico mais brando, de enfrentamento dos problemas diários, de situações do nosso próprio caminho de desenvolvimento – garante a psicóloga Silvana de Oliveira.
Existem gradações que vão diferir entre o sofrimento psíquico considerado dentro de um padrão “normal” e aquele que se encaixa em um quadro psicopatológico, classificado como doença.
A presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul alerta que mesmo dentro de uma situação semelhante vivida por diferentes pessoas – ou até pela mesma – em momentos diversos, o grau de sofrimento pode ir de leve a agudo. Processos de perda, desafios, questões conjugais e profissionais podem ser tanto rapidamente superados quanto afetar alguém a ponto de demandar ajuda profissional.
– Às vezes, há ainda um constrangimento por parte da família, e a própria pessoa que tem algum transtorno mental acaba postergando a busca por auxílio profissional – define o psiquiatra Cláudio Meneghello Martins.
O que é o Janeiro Branco
É uma campanha dedicada a convidar as pessoas a pensarem sobre suas vidas, seu sentido e propósito, a qualidade dos seus relacionamentos e o quanto elas conhecem sobre si mesmas, suas emoções, seus pensamentos e sobre os seus comportamentos. Teve início em Uberlândia (MG) em 2014 e chega, em 2018, à sua quinta edição.
Por que janeiro é importante para promover uma “cultura da saúde mental”
- Incentiva cada um a pensar, quando muda o ano: “Por que não posso transformar também a minha vida?”.
- Convida a entender que, como os anos, a vida é composta de ciclos – é necessário encerrar os que não fazem bem e começar novos que nos façam felizes.
- Faz com que as pessoas se deem conta de que o ano novo é um momento simbólico para fazer uma pausa e pensar sobre si mesmo.
- Promove o questionamento: se janeiro abre as portas de um novo ano a todos, será mesmo necessário repetir os problemas do ano que passou?
- Sugere que, sim, há tempo: um novo ciclo de 12 meses se inicia, período suficiente para colocar em prática ações que nos façam feliz e que promovam também o bem-estar dos outros.