O Brasil tem motivos para celebrar o próximo 27 de setembro, Dia Nacional da Doação de Órgãos. A rede pública de transplantes do país é uma das mais organizadas e eficientes do mundo, e o número de doadores cresceu desde que a legislação sobre o tema entrou em vigor, há cerca de 20 anos. Mas como tudo sempre pode melhorar, o país ainda tem o desafio de reduzir as filas que impõem a milhares de famílias o sofrimento da espera por um doador.
Chegamos à marca de 16 doadores efetivos por milhão de habitantes (há duas décadas, ficava entre seis e sete doadores por milhão de habitantes), mas vislumbramos alcançar países como Espanha, Estados Unidos, Portugal e França, onde essa proporção dobra. Falta de solidariedade e empatia? Medo? Preconceito? Nada disso. O que mais pesa na decisão de doar órgãos, segundo médicos e especialistas que atuam na rede de transplantes, é a falta de informação — daí a importância de campanhas que esclareçam a população sobre o tema.
Nesse imenso universo da "falta de informação", abrigam-se crenças e tabus, como não falar de morte, e desconhecimento do que, na prática, acontece quando se decide pela doação de órgãos. No Brasil, ela é autorizada em casos de diagnóstico de morte encefálica, geralmente consequência de traumas violentos — causados por acidentes, por exemplo — e acidente vascular cerebral (AVC). É aí que aparece a equação mais difícil de ajustar nesse processo todo: conseguir da família a autorização para o procedimento no momento em que ela vive o ápice da dor da perda e a fase da negação do luto.
A enfermeira Gabriela Camponogara Rossato dedicou sua dissertação de mestrado, desenvolvida na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e defendida em agosto, a entender o que as famílias vivem no processo de não doar os órgãos. Concluiu que, entre os principais fatores, está a falta de tempo para refletir sobre o assunto.
— Todo esse processo, do adoecimento agudo, passando pelo diagnóstico da morte encefálica até o pedido de doação, dura, em média, de cinco a sete dias. As pessoas não conseguem pensar nessa questão, e algumas relataram que se arrependeram de não ter doado — conta Gabriela.
Diante desse contexto, a informação prévia sobre a vontade do doador poderia amenizar a angústia dessa decisão, mas, culturalmente, não falamos sobre morte — menos ainda sobre a chegada repentina dela. Muitas famílias optam por não doar órgãos justificando que desconhecem a vontade da pessoa que morreu.
— Seria importante que as pessoas deixassem explícita sua vontade, porque um adoecimento agudo, como costumamos chamar situações como acidentes, pode ocorrer a qualquer momento — ressalta a enfermeira.
Descrença no sistema público
Coordenador de transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o nefrologista Valter Duro Garcia aponta outras questões que contribuem para a negativa da família _ que é, afinal, quem decide na prática. Especialmente nos grandes hospitais, onde ocorrem os transplantes, há equipes muito qualificadas não só para os procedimentos, mas também para a abordagem dos familiares. No entanto, Garcia atenta para o impacto que o atendimento geral na rede de saúde pode ter na decisão. Hospitais lotados, profissionais assoberbados, confusão já na porta levam à desconfiança no sistema e fortalecem crenças que se perpetuam por aí, como a de que pessoas ricas são privilegiadas e de que a morte é abreviada quando se sabe que aquele que agoniza é doador.
— Acredito que a humanização dos hospitais só traria benefícios à doação. Temos de ter franqueza na abordagem das famílias, não deixar dúvidas, mas sem apelos grosseiros. A palavra errada encerra o processo — avalia Garcia.
A médica intensivista Luciana Segala, coordenadora da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), acrescenta outro obstáculo à postura positiva frente à chance de doação: a população não entende o que é morte encefálica.
— As pessoas têm aquela ideia, uma esperança até diante da sua tragédia, de que, enquanto o coração está batendo, há vida, mas não é assim. É difícil compreender que a pessoa está visualmente viva porque estamos usando tecnologia, drogas e equipamentos. O Brasil tem um dos protocolos mais rigorosos para diagnóstico da morte encefálica e temos uma rede muito bem equacionada, ética e justa — diz Luciana.
Na pesquisa que Gabriela Rossato fez para seu mestrado na UFSM, além dos pontos observados pelos médicos, ela notou que a negativa das famílias também estava associada à desinformação sobre a integralidade do corpo do doador. Teme-se não poder velar a pessoa ou cumprir rituais de despedida por conta do procedimento. Ela faz uma crítica às campanhas, que são mobilizadoras mas pouco objetivas nesse tipo de esclarecimento.
— Muita gente pensa que a cirurgia vai deixar a pessoa deformada, sem um braço ou uma perna. Isso precisaria ser melhor explicado — afirma Gabriela.
Foi com a ideia de compartilhar e disseminar informações sobre a doação de órgãos que, há quase 20 anos, Francisco Neto de Assis idealizou, em Pelotas, a Associação Brasileira de Doação de Órgãos e Tecidos — Adote. Em 1998, ele perdeu o filho Eduardo, de 15 anos, por conta de uma miocardite, inflamação do miocárdio, que colocou o garoto na fila de espera por um coração. Foram quatro anos de luta. Assis celebra os avanços e a conscientização de lá para cá, porque lembra bem do quanto a falta de informação comprometeu as chances de Eduardo:
— No primeiro semestre daquele ano, houve somente um transplante de coração no Estado, e não foi do meu filho.