O Brasil sofre de uma crescente epidemia de sobrepeso: mais da metade da população enfrenta o problema, boa parte inclusive sem saber de sua condição. Mas é só quando a situação evolui para obesidade que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamento, restrito à cirurgia bariátrica. Em 2008, o número de procedimentos na saúde pública era de 3.195. Em 2014, foram 7.025, mais do que o dobro. Ainda é muito pouco: contando os atendimentos particulares, foram feitas 94 mil cirurgias em todo o país em 2014, o que representa apenas 2,5% do total de pessoas com indicação para esse tratamento.
Para tentar mudar a percepção popular sobre a cirurgia bariátrica e ampliar o acesso ao tratamento, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estendeu, em janeiro, os critérios para a autorização da cirurgia de redução de estômago. A resolução ampliou o número de doenças que justificam a indicação de cirurgia para pacientes com Índice de Massa Corpórea (IMC) entre 35 e 40 (veja a tabela abaixo), além de exigir um pediatra na equipe multiprofissional para cirurgia em jovens entre 16 e 18 anos. Mas, na avaliação de especialistas, ainda é pouco para combater um problema em amplo crescimento.
– Existe uma lacuna no tratamento da obesidade no Brasil. O governo foca apenas nos casos graves, que precisam de cirurgia. Então, fica esse hiato para um grande número de pessoas com sobrepeso, que precisam de medicamento, mas não são contempladas pelo SUS – afirma Walmir Coutinho, presidente da Federação Mundial de Obesidade.
Leia mais:
Entenda os fatores que contribuem para aumentar a obesidade infantil
Risco de mortalidade associado à obesidade é subestimado, aponta estudo
Em 25 anos, dobra obesidade entre crianças nos países emergentes
A última pesquisa Vigitel do Ministério da Saúde de 2014 mostrou que o índice de obesidade está estável no país, mas o número de brasileiros acima do peso é cada vez maior. O excesso de peso já atinge 52,5% da população adulta brasileira. Quem também condena as poucas opções para o tratamento da obesidade é Cintia Cercato, presidente do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM):
– Tratamos só a ponta do iceberg, os casos que precisam de cirurgia. O SUS disponibiliza apenas essa alternativa. Não temos opções de tratamento para obesos menos graves e pessoas com sobrepeso, que são a maioria dos brasileiros. Esses pacientes que não conseguem um tratamento clínico geralmente são os que evoluem para os casos graves.
De acordo com a especialista, existe uma distorção em oferecer o tratamento cirúrgico e não o clínico, que ajudaria muito mais pacientes. Nesse contexto, a médica defende uma maior disponibilidade de medicações para ampliar o atendimento ao obeso.
Luiz Alberto De Carli, coordenador do Centro de Tratamento da Obesidade da Santa Casa de Porto Alegre, acredita que o aumento no número de cirurgias é uma consequência dos bons resultados dos procedimentos, mas também admite que o foco do tratamento é restrito:
– A cirurgia começou a ter melhores resultados ao longo do tempo. Anos atrás, o numero de complicações pós-operatórias era maior. À medida que os resultados positivos vão aparecendo, os pacientes sentem-se encorajados a tentar a operação. Precisamos entender que a obesidade é multifatorial: inclui a educação da população que está em sobrepeso, promoção da saúde e atividades físicas. Concordo que estamos tratando apenas uma parte do problema.
Para o presidente da Federação Mundial de Obesidade, a dificuldade de controlar a obesidade no mundo se equipara ao desafio de controlar o aquecimento global. Segundo Coutinho, existe uma tendência de crescimento da doença e, para o Brasil mudar esse prognóstico, será preciso um esforço coletivo:
– A epidemia da obesidade não vai melhorar tão cedo. Para controlá-la, é necessário uma união de forças entre a população, com a mudança de hábitos de vida, e o alto escalão do governo, com medidas e legislação para a promoção da saúde, ações preventivas e tratamentos.
Doença era vista como um problema moral e de caráter
A obesidade é uma doença complexa que envolve vários mecanismos do corpo. Para Cintia Cercato, presidente do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), até a década de 1980, a obesidade não era vista como doença, mas como um problema moral e de caráter:
– Na época, falava-se na gula. A culpa de ser obeso era do próprio obeso.
A partir dos anos 1990, as pesquisas científicas na área avançaram e mostraram que a regulação do apetite é um tema complexo: diversos hormônios influenciam no processo e essa regulação se dá em uma região cerebral chamada hipotálamo. Em pessoas obesas, o equilíbrio é alterado, e muitos dos hormônios da saciedade não são produzidos de forma natural. Em outros casos, o sistema de recompensa do sistema nervoso também está em descompasso, o que pode influenciar no desenvolvimento de compulsões alimentares.
– Nos últimos anos, conseguimos compreender uma série de mecanismos da obesidade. Não é um único fator que explica o ganho de peso. Sabemos que o obeso tem alterações nas vias que regulam o apetite e, por essa razão, alguns tratamentos são baseados em aumento da sensação de saciedade e redução da fome. Outra descoberta é que obesos possuem menos hormônios que reduzem a fome, e a reposição desses hormônios é uma importante perspectiva terapêutica. Por isso, um único tratamento não é o aconselhável – explica Cintia.
Para Luiz Alberto De Carli, coordenador do Centro de Tratamento da Obesidade da Santa Casa de Porto Alegre, a obesidade não é um problema moral, mas médico, que envolve causas metabólicas, hormonais, comportamentais, culturais, psicológicas, sociais e, às vezes, genéticas.
– Por ser uma doença multifatorial, é necessário um tratamento multidisciplinar, com uma equipe formada por endocrinologista, nutricionista ou nutrólogo, psicólogo, psiquiatra e, quando necessário, o cirurgião bariátrico – afirma De Carli.
Tratamento deve ser multidisciplinar
O tratamento da obesidade inclui uma mudança no estilo de vida, com dieta, rotina periódica de exercícios físicos, uso de medicamentos antiobesidade (quando o IMC é maior do que 30 ou 25 quando há doenças associadas) e cirurgia bariátrica em casos mais graves (IMC maior de 40 ou 35 com doenças associadas). No tratamento clínico, que deve ser feito por pelo menos dois anos, o uso de medicamentos é um dos pilares.
– Os estudos mostram que apenas 10% dos pacientes obesos conseguem perder peso apenas com mudanças de hábitos. O processo é mais complexo do que simplesmente fechar a boca. Por isso, o tratamento farmacológico é indicado – afirma Cintia Cercato, presidente do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
Há dois remédios utilizados no tratamento. O Orlistate inibe as enzimas do trato digestivo e diminui a absorção de gordura. Como age no intestino, reduz em 30% a absorção de cada refeição. Ele ajuda a fazer um balanço negativo de calorias e, com isso, a perder peso.
A Sibutramina age no sistema nervoso central, aumentando a saciedade e diminuindo a fome. Atua nos hormônios de regulação do apetite, contribuindo para o paciente fazer uma dieta de baixas calorias. Como a obesidade é uma doença crônica, o tratamento muitas vezes é prolongado por boa parte da vida.
– As pessoas precisam entender que o remédio não cura obesidade, ele controla. Quando é suspenso, o paciente pode ganhar peso. O uso da medicação pode vir a ser crônico – pontua Cintia.
A prescrição e o acompanhamento devem sempre ser feitos pelo médico, preferencialmente o endocrinologista. A Sibutramina não deve ser utilizada por pessoas com problemas cardíacos, pois, em alguns casos, ela pode induzir o aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial. No Brasil, a Sibutramina sofreu restrições que dificultam a prescrição. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) requer um receituário especial, e o paciente tem de assinar um termo de consentimento informado – papelada que precisa ser refeita pelo médico a cada 30 dias.
– Nossas autoridades reguladoras reagiram com muita ansiedade a relatos de efeitos adversos em pacientes com diabetes ou hipertensão e criaram uma regulamentação altamente restritiva. Mas, se usado com critérios técnicos aprovados e com acompanhamento médico regular e frequente, o medicamento é útil e eficaz – avalia Rogerio Friedman, endocrinologista do Hospital Moinhos de Vento.
O uso de cada medicamento depende da avaliação médica do paciente, explica Cintia:
– O Orlistete, por exemplo, não é bom para o beliscador, aquela pessoa que come o dia inteiro, porque o medicamento é ingerido antes de cada refeição. É um remédio mais indicado para pacientes de hábitos mais estáveis e que tenham refeições fixas. A Sibutramina é indicada para quem não consegue fazer dieta, tem muita fome e come um grande volume a cada refeição.