Os avanços no diagnóstico e tratamento do HIV garantem qualidade de vida aos pacientes que vivem com a condição. Ainda assim, Sharon Lewin, ex-presidente da Sociedade Internacional da Aids (IAS, na sigla em inglês), acredita que a pesquisa sobre a cura do vírus não está nem perto de onde deveria estar. Em entrevista à Zero Hora, a pesquisadora falou sobre as conquistas e as apostas para o futuro.
Sharon Lewin é médica especialista em doenças infecciosas e cientista internacionalmente conhecida por, há mais de duas décadas, pesquisar estratégias para alcançar a cura do HIV. Australiana, ela é professora do curso de Medicina da Universidade de Melbourne, na Austrália, e diretora do Instituto Peter Doherty de Infecção e Imunidade (The Peter Doherty Institute for Infection and Immunity, em inglês).
O vírus da imunodeficiência humana (HIV, na sigla em inglês) é o causador da aids, doença responsável por milhares de mortes no Brasil e no mundo. A epidemia do vírus iniciou há mais de quatro décadas e, desde então, cientistas trabalham para encontrar estratégias que possam ajudar no diagnóstico, tratamento, cura e erradicação da doença.
No contexto da sua pesquisa sobre o HIV, quais são os maiores desafios atualmente para alcançar uma cura funcional ou completa?
Existem muitos desafios, mas o maior deles é que o vírus é capaz de se esconder dentro do sistema imunológico, e é muito difícil encontrar a célula infectada e eliminá-la. Dito isso, sabemos que é possível eliminar todas as células infectadas, pois já vimos sete exemplos de cura após o transplante de células-tronco. No entanto, o grande desafio é encontrar uma intervenção que possa eliminar ou controlar o vírus com baixa toxicidade e, embora haja muito progresso na área, ainda estamos longe de onde precisaríamos estar.
Então você diria que não estamos próximos de encontrar uma cura?
Depende de como você define uma cura. Se você define cura como eliminar até o último vestígio do HIV, algo que chamamos de erradicação, acho que estamos a muitos, muitos anos, se não décadas, de distância. Se definirmos cura como controlar o vírus ou, como algumas pessoas usam, a palavra remissão, ou controle viral sem antirretroviral (ART), ou seja, permitindo que as pessoas parem de fazer o tratamento antirretroviral, mas o vírus permaneça em níveis baixos, acho que isso será possível mais cedo, porque sabemos que isso é viável até com algumas intervenções menos tóxicas. Mas ainda acho que o que buscamos aqui é uma cura duradoura, escalável e para muitas pessoas ao redor do mundo, e estamos muito longe disso.
Pensando nas suas pesquisas, pode explicar alguns avanços ou descobertas interessantes?
Minha pesquisa foca em duas áreas: reduzir o número de células infectadas e aumentar o controle, sendo necessário realmente fazer ambas as coisas. Uma das áreas empolgantes para aumentar o controle é o uso de um medicamento chamado anti-PD-1. Este é um medicamento usado no tratamento de câncer que basicamente "desperta" o sistema imunológico para reconhecer melhor o câncer ou, no nosso caso, reconhecer melhor o HIV. Nós mostramos em modelos de laboratório que este medicamento realmente ativa o sistema imunológico e torna o vírus mais visível.
Atualmente, estamos realizando um ensaio clínico usando uma dose muito baixa desse medicamento, uma centésima da dose usada no tratamento de câncer, para ver se conseguimos reduzir a toxicidade, mas manter a eficácia. Esse estudo ainda está em andamento. Ao mesmo tempo, estamos utilizando terapia genética para reduzir o tamanho do reservatório viral e estamos fazendo isso ativando o vírus, para que ele se torne visível ao sistema imunológico.
Esses estudos ainda estão em andamento e utilizam terapia genética com mRNA, semelhante ao que tivemos nas vacinas de mRNA contra a covid-19, mas administrada por via intravenosa, não no músculo. Ainda é um estágio muito inicial, mas em modelos de laboratório, essa abordagem de terapia genética parece muito, muito potente e promissora.
Quais são as abordagens mais promissoras que você vê para eliminar ou controlar esse vírus?
Creio que existem duas abordagens promissoras. A primeira é a imunoterapia, que modula o sistema imunológico de uma pessoa com HIV para que ela possa controlar o vírus de forma eficaz. E vimos que isso é possível em alguns ensaios clínicos, utilizando tanto anticorpos contra o HIV quanto medicamentos contra o câncer que estimulam o sistema imunológico.
A outra área que parece promissora é a terapia genética, mas ainda estamos a muitos anos de distância disso. Com a terapia genética, quero dizer o uso de "tesouras genéticas" para tornar uma célula resistente ao HIV ou fazer com que uma célula produza anticorpos por conta própria, na ausência de medicamentos.
Essas abordagens poderiam causar algum dano ao sistema imunológico dos pacientes?
Cada uma das abordagens é bem diferente. O uso de anticorpos - embora sozinhos eu não ache que curem o HIV – pode modular o sistema imunológico dela. E realmente há pouca toxicidade e nenhum perigo com isso. Já o uso de medicamentos contra o câncer que estimulam o sistema imunológico tem efeitos colaterais, que estamos tentando entender melhor. Com a terapia genética ainda tem muitas incertezas. Qualquer ensaio clínico que fizermos precisará de um acompanhamento de longo prazo para entender a toxicidade. A toxicidade é uma parte muito importante do nosso raciocínio, porque, ao contrário de tratar o câncer, nesse cenário as pessoas com HIV estão muito bem, e, portanto, uma cura precisa ter níveis baixos e aceitáveis de toxicidade.
Como funcionam essas terapias genéticas?
Eu explico para as pessoas que as terapias genéticas podem fazer três coisas: atacar, proteger e purgar. Para atacar, você pode usar as chamadas tesouras genéticas para inserir instruções em uma célula para produzir um anticorpo contra o HIV. Então, é bem complicado, mas o princípio é que usamos as tesouras genéticas para remover o gene que não queremos, como o HIV, ou inserir um novo gene que queremos que o corpo produza, como um anticorpo. No momento, a maioria das terapias genéticas é feita com uma pessoa doando muito sangue. As células são modificadas fora do corpo e depois retornam à pessoa. Mas uma forma melhor e mais recente de fazer terapia genética é injetar as tesouras genéticas e as instruções diretamente na pessoa através do músculo. Essa abordagem foi feita em pessoas, é segura, também foi realizada em modelos animais, e parece bastante eficaz. Acho que veremos muitas mudanças novas na terapia genética nos próximos anos.
Já que você faz esse paralelo com o tratamento contra o câncer, como você vê o papel da imunoterapia no tratamento do HIV?
Atualmente estão sendo tentadas muitas coisas diferentes. Provavelmente há mais de 20 ensaios clínicos diferentes investigando a imunoterapia, usando uma variedade de abordagens. Então, acho que é um pouco difícil dizer, mas eu imagino que esperamos usar a imunoterapia em dois cenários: um é no momento de começar o tratamento antirretroviral (ART) e o outro no momento de interromper o ART. Temos ensaios clínicos investigando ambas as abordagens.
A pesquisa sobre cura do HIV passa muito pela hipótese do transplante de medula óssea, mas você já disse em outras oportunidades que não considera essa solução viável. Por quê?
A principal razão é que o transplante de medula óssea é muito tóxico. Tem cerca de 25% de chance de mortalidade. E a única razão pela qual fizemos isso em pessoas com HIV é porque o transplante de medula óssea é usado para tratar o câncer de uma pessoa, que morreria desse câncer sem o transplante. Mas, dado que pessoas com HIV em tratamento antirretroviral estão muito bem e têm expectativa de vida normal, não seria apropriado usar essa abordagem em alguém sem câncer. Além disso, é também muito caro e altamente invasivo. Não quero dizer que não seja uma opção, mas isso nos mostra que eliminar o reservatório viral é possível e nos dá pistas de como podemos nos livrar do reservatório do HIV.
Onde você acredita que a pesquisa sobre a cura do HIV estará em 10 anos?
Eu acho que em 10 anos estaremos muito avançados, tanto na terapia genética quanto na imunoterapia. Teremos uma compreensão muito melhor do reservatório do HIV e espero que haja muita pesquisa acontecendo em países de baixa e média renda, incluindo a África e a América Latina. Atualmente, a maior parte da pesquisa sobre cura do HIV está ocorrendo em países de renda alta, e acho importante que essa pesquisa aconteça onde as pessoas estão vivendo com HIV. Então, imagino que em 10 anos o cenário será bem diferente, assim como é bem diferente agora em comparação com 10 anos atrás.
Como o cenário da pesquisa em países subdesenvolvidos, como os da África e da América Latina, pode ser diferente em relação aos países desenvolvidos?
É muito diferente, mas as pessoas que trabalham nessa área acreditam que não deve haver diferença. Se tivermos uma cura disponível em países de renda alta, precisamos garantir que ela também esteja disponível em países de baixa e média renda. Há muita discussão sobre essa questão em nível global, e, dada nossa experiência com outros tratamentos para o HIV e outras modalidades de prevenção, isso precisa estar no centro do nosso pensamento, mesmo neste estágio muito inicial. Cerca de 80% das pessoas vivendo com HIV estão em países de baixa e média renda. Desenvolver uma cura que seja cara e disponível apenas em países de renda alta realmente não é aceitável.