Por mais um ano consecutivo, o Rio Grande do Sul segue com a maior mortalidade por aids e entre aqueles com mais registros de casos de HIV do Brasil. Porto Alegre também lidera entre as capitais. Os dados são do mais recente boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde em razão do dia mundial de luta contra a doença celebrado nesta sexta-feira (1º). De acordo com especialistas, questões sociais, a banalização das medidas de prevenção e a falta de ações de saúde pública contribuem para o cenário vivenciado no Estado.
O Brasil tem conseguido reduzir o número de casos e a mortalidade pela doença. Apesar do cenário no Estado, houve uma melhora: no ano passado, havia cinco cidades gaúchas no ranking das 10 com maior taxa de incidência de HIV, número que, neste ano, caiu para duas – Canoas e Gravataí, evidenciando que a Região Metropolitana também continua como destaque na questão do HIV/aids. De maneira geral, o Estado conseguiu manejar um pouco melhor a situação, na avaliação de Cezar Würdig Riche, médico infectologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Mesmo assim, o RS vive uma epidemia de HIV/aids, de acordo com os especialistas.
A transmissão do HIV e os fatores associados à não adesão ao tratamento são multifatoriais, incluindo psicológicos e sociais. Para Riche, o Estado evoluiu em diversos aspectos de tratamento, prevenção e diagnóstico, assim como o restante do Brasil, mas não consegue abordar o problema de maneira integral. O médico ressalta que, historicamente, faltam ações de saúde pública, como mais informação, acesso a preservativos e campanhas.
— Eu atendo pessoas que vivem com HIV desde 1997 e é muito grande a quantidade de pacientes que deixam de se tratar por medo do estigma da discriminação. Isso faz com que haja uma negação, haja um receio em relação ao tratamento — comenta a médica sanitarista Letícia Ikeda, Chefe da Divisão de Unidades Próprias da SES/RS.
A taxa de mortalidade – maior do que em outras unidades da Federação – mostra que o maior número de casos não decorre de um maior número de diagnósticos do que em outros Estados.
— Nós temos mais a doença, e nós não conseguimos abordá-la precocemente, a ponto de impedir que esse indivíduo transmita para outros e de impedir que ele morra mais precocemente do que o que ocorre em outros Estados — explica.
Para Riche, a abordagem deste problema de saúde pública é uma questão de políticas públicas, que não estão correspondendo ao tamanho do desafio.
— Em teoria, as bases da política pública são semelhantes (a outros Estados), mas a gente não está conseguindo universalizar, fazer isso chegar na atenção aos indivíduos. Então, é um desafio maior, porque tem mais casos, já se torna mais difícil por isso, mas o esforço tinha de ser ainda maior para conseguir reverter essas tendências — enfatiza.
Como resposta à taxa de mortalidade, a Secretária Estadual de Saúde (SES) projeta investimento em uma rede ambulatorial especializada para ampliar o acesso ao atendimento.
— A Secretaria Estadual de Saúde tem trabalhado intensivamente e passa a investir, a partir desse ano, já está programado na nossa pauta e no nosso Plano Estadual de Saúde, o investimento de recursos próprios estaduais no cofinanciamento de uma rede ambulatorial especializada, distribuída nas macrorregiões do Rio Grande do Sul (...) as pessoas, elas morrem, porque elas chegam tardiamente ao tratamento — revela Ikeda.
A gente tem a população negra também passando mais por isso; é uma questão social que leva, então, a população negra, parda e as pessoas em uma situação social mais precária a estar com o contato mais frequente, a não estar com os meios para se prevenir para seguir se infectando.
EDUARDO SPRINZ
Médico infectologista e professor do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Neste aspecto de combate à aids, Ikeda ainda destaca que, desde 2019, todos os munícipios do Rio Grande do Sul contam com testagem rápida disponível para a população. Em 2013, o diagnóstico rápido era disponível em apenas 50% do Estado.
Vulnerabilidade
Médico infectologista e professor do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Eduardo Sprinz explica que existem pessoas que não se consideram em risco e podem se expor ao vírus; e, da mesma forma, pessoas suscetíveis e vulneráveis que não se protegem de forma adequada – o que continuará propiciando novos casos no Estado.
A população suscetível inclui profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens e mulheres trans. É preciso fazer com que essas pessoas se protejam de forma adequada, frisa Sprinz. Para isso, existe a possibilidade da prevenção por meio da profilaxia pré-exposição (PrEP), na qual a pessoa toma um comprimido por dia para que, em situações de risco, não sejam contaminadas.
As pessoas em situação de vulnerabilidade social são as mais prejudicadas, de acordo com o boletim epidemiológico. Sprinz afirma que muitas delas estão aquém do atendimento de saúde. Esses fatores contribuem para que os gaúchos continuem como líderes no Brasil, avalia.
A situação, portanto, é de pauperização da infecção – uma população mais pobre, com mais dificuldade de acesso a recursos e de chegar ao atendimento médico e ser testada, como também ressalta Riche:
— A gente tem a população negra também passando mais por isso; é uma questão social que leva, então, a população negra, parda e as pessoas em uma situação social mais precária a estar com o contato mais frequente, a não estar com os meios para se prevenir para seguir se infectando.
Comportamentos de risco
O grande segredo do tratamento é o coquetel de antirretrovirais, que mudam “drasticamente” a situação do paciente – mas, para isso, é preciso que seja tomado. Para Riche, se a informação chegar de maneira clara às pessoas, elas irão compreender que o vírus não está só na capital e aderir ao tratamento.
Na outra ponta, há hoje uma percepção de que, se as pessoas contraírem o vírus, não acontecerá nada – basta tomar remédio.
— Houve, nos últimos anos, uma certa banalização da infecção e das medidas de prevenção, visto que o coquetel controla as pessoas que se tratam de forma adequada, e elas não terão as complicações da aids — explica Sprinz.
Riche também vê uma diferença de compreensão em comparação aos jovens da década de 1980 e 1990 e uma certa banalização, somada a um sentimento natural de autoconfiança dos jovens, ao acreditar que isso não ocorrerá com eles.
— Até ali, antes dos anos 2000, em que existia um temor da aids, porque ela era uma sentença de morte. Muitos ícones da época terminaram se contaminando, falecendo. Cazuza era uma imagem muito impactante para o jovem. Então, existia esse medo, esse receio. Talvez a gente tenha de abordar esses jovens de outra forma, porque eles não têm a mesma compreensão do impacto que é — salienta, destacando que, apesar de comportamentos que possam existir, ninguém deseja ficar doente.
Prevenção é a saída
A prevenção é a grande saída, segundo os especialistas. Isso inclui novos casos e as complicações da infecção pelo HIV, com o uso de antirretrovirais.
— Se a gente conseguir fazer com que as pessoas, principalmente aquelas mais vulneráveis, se protejam, e que as pessoas consigam ter o atendimento necessário para que possam tomar os remédios de forma adequada, a gente estaria solucionando os dois problemas — destaca Sprinz.
O entendimento da necessidade do preservativo – ou o uso da PrEP – e da testagem também são questões importantes, bem como o não compartilhamento de seringas ou materiais cortantes, acrescenta Riche. No caso de Porto Alegre, costuma-se esperar que as pessoas procurem os serviços, observa o infectologista do HCPA. Ele reitera que é preciso identificar onde essas pessoas estão e buscá-las, utilizando uma linguagem ou outro recurso para garantir adesão ao tratamento.
— Isso é o fundamental. A pessoa tratada com sucesso não transmitirá a infecção pelo HIV para seu parceiro. Testar e tratar, testar e tratar. Conseguir fazer com que essas pessoas sejam retidas nos seus lugares de atendimento ou que se consiga ir até onde elas moram e garantir um acesso adequado aos médicos, aos tratamentos e aos exames — pontua Sprinz.
Além disso, é preciso combater o estigma. As pessoas devem ser capazes de buscar a testagem sem medo, preconceito ou receio de serem julgadas, afirma o infectologista da Santa Casa.
— E, se o teste der positivo, que elas se sintam confortáveis de buscar o tratamento, porque só assim a gente vai quebrar a cadeia — complementa Riche.
Mais de US$ 2 bilhões já foram gastos em estudos com vacinas, segundo Sprinz. Até hoje, nenhum obteve sucesso. Agora, os cientistas estão recomeçando. Nenhuma das vacinas em desenvolvimento está em uma etapa mais avançada neste momento. Portanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido.