Uma avó* e auxiliar de serviços gerais mostra à reportagem documento que recebeu em 6 de setembro de 2022, na Unidade Básica de Saúde Aparício Borges, em Porto Alegre. Ali está registrada a solicitação de consulta em saúde mental para o neto dela, na época com 12 anos. Mais de dois anos depois, a moradora da Capital segue aguardando o atendimento.
Acessando o sistema do município, o tempo médio de espera estimado para a especialidade aponta 248 dias, menos da metade dos 790 dias que o neto, hoje com 14 anos, está aguardando. O problema se agravou no pós-enchente. Em abril eram 71 dias de espera em saúde mental. Já em junho, 196 dias.
— Ele precisa de um atendimento psicológico e psiquiátrico. Eu vou de 15 em 15 dias no postinho para me informar. Eles olham no computador e dizem que não foi chamado ainda. Não explicam nada, só falam que não foi chamado. A gente está sempre num clima tenso, esperando alguma coisa, alguma reação agressiva, fica bem difícil — relata a avó, já desanimada.
O encaminhamento a um especialista é feito pela unidade básica de saúde. A fila de espera segue uma classificação de prioridades estabelecida por cores. O caso do neto da auxiliar de serviços gerais foi indicado como amarelo, o terceiro nível na ordem, que tem vermelho - o mais grave -, laranja, amarelo, verde e azul. Conforme a avó, o menino tem suspeita de bipolaridade. Sem o tratamento adequado, ele não consegue permanecer na escola.
— Ele andou tendo uns surtos de novo, andou tendo problemas, mas se recusa a tomar medicação. E eu preciso de uma consulta. Como demora muito, eu estou vendo o que posso fazer — lamenta.
Em resposta sobre este caso, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que o menino está em uma fila que leva em consideração a territorialidade, aguardando atendimento no Caps Infantil do Hospital de Clínicas. De acordo com a prefeitura, a fila interna da instituição tem 532 pacientes e, por essa razão, teria extrapolado a média de tempo para atendimento.
A pasta diz que há 275 pessoas "na frente" e argumenta que o último registro de atendimento na unidade de saúde foi em novembro de 2023. A prefeitura argumenta que, se houvesse continuidade no posto, a prioridade poderia evoluir, e ele poderia ser acompanhado até ser chamado.
Fila com 5,2 mil pessoas
No início deste ano, aproximadamente 10 mil pessoas aguardavam tratamento em saúde mental, com uma espera de um a dois anos para acompanhamento de psicólogo, psiquiatra, ou encaminhamento pra Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS), segundo o secretário municipal de saúde, Fernando Ritter.
Atualmente, a prefeitura estima que 5,2 mil pessoas estejam na fila e que a média de espera para atendimento seja de 200 dias para adultos e 190 dias para crianças.
Em outro caso, o filho de uma dona de casa* aguarda em duas filas por atendimento. Na primeira, o menino de nove anos, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista, está há 76 dias esperando para consultar com um psiquiatra. Ele entrou na lista em agosto deste ano na categoria azul, a de menor prioridade.
Em outra fila, aguarda há mais de 700 dias, desde 25 de novembro de 2022, por atendimento de reabilitação intelectual. Pelo sistema do Sistema Único de Saúde (SUS), a criança está na prioridade laranja (uma abaixo da mais urgente). Pela ferramenta, a dona de casa é informada que o tempo médio de espera para esta especialidade e prioridade é de 670 dias, ou seja, mais de um ano e meio.
— Ele tem muitas crises e é muito ansioso, e a ansiedade leva ele a ter crises. Eu tenho o diagnóstico dele faz dois anos e até agora não chamaram para o tratamento — comenta a mãe.
Em pedidos de reabilitação intelectual, como neste caso, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) confirma a média de 600 dias de espera. São mais de 3,3 mil pessoas na lista, sendo 1.250 na faixa etária entre zero e cinco anos, e 1.432 entre seis e 12 anos.
Os atendimentos desse tipo são realizados no Centro de Reabilitação de Porto Alegre (Cerepal) e no Hospital Santa Ana. Eles são dedicados a pessoas com deficiência intelectual ou em investigação de transtornos e síndromes relacionadas, como déficit de atenção e hiperatividade, Síndrome de Down, retardo mental e transtornos de comunicação.
Opções fora do SUS
Com dificuldade de retorno pelo SUS, a avó e a mãe encontraram ajuda em projetos sociais, como o Instituto Dia do Amor, que agendou atendimentos com psiquiatras e psicólogos voluntários e tem um trabalho voltado principalmente para mulheres e mães.
— A espera é longa, conheço gente que já está há quatro, cinco anos (na fila). Eu fico na espera. Enquanto isso, o Instituto Dia do Amor está acolhendo bastante, é a minha salvação, porque sem eles é bem complicado — relata dona de casa, que já conseguiu duas consultas com um psiquiatra infantil pelo projeto e também está sendo acompanhada pela iniciativa com outros atendimentos oferecidos para ela.
Também atuando em Porto Alegre, a ONG Misturaí procura auxiliar pessoas que estão buscando atendimentos em saúde mental. Para a assistente social do grupo Solange Oliveira, a longa espera é preocupante para pacientes que precisam de acompanhamento.
— Tu marca uma consulta e daqui a dois meses vai ser atendido com o psiquiatra. O transtorno que se tem não dá pra demorar muito no atendimento, na questão da medicação — alerta ela.
Solange acompanha dois pacientes que já estão em tratamento pelo SUS há mais de 10 anos, mas relatam dificuldades, com demora para marcar consultas de acompanhamento.
É o caso do auxiliar de serviços gerais Luciano Aguiar, 50 anos, que era atendido no Hospital Conceição. Levando cerca de três meses para o agendamento seguinte. Ele passou a buscar o CAPS para tentar agilizar o atendimento com psiquiatra, mas conta que nem sempre o profissional está no local:
— Às vezes não tem, eles não tão ali. Aí tem o psicólogo, pra mim não adianta. Às vezes, eu não volto, porque eu não vou perder meu tempo.
O jardineiro Antônio Marcos Lucas de Oliveira, 49, relata que já passou por oito internações e encontra dificuldade para continuar agendando as consultas para tratamento.
— Algo que eles tinham que resolver, acaba agravando outro problema. A pessoa já está ali para buscar um atendimento psíquico, aí acaba aflorando mais ainda — enfatiza Oliveira.
As apostas da prefeitura para reduzir a fila
Titular da pasta da saúde, Ritter aposta na inclusão de equipes multidisciplinares nas unidades de saúde para tentar iniciar os tratamentos e desafogar a fila para atendimento especializado e a procura pelas urgências, com resultados ao longo dos próximos meses.
Elas foram distribuídas priorizando a zona leste da cidade - onde há maior demanda - e áreas atingidas pela enchente. Foram incluídas 14 equipes em março, 10 em setembro e há previsão de mais 10 em 2025.
Outra medida citada pelo secretário é a alteração do matriciamento nas unidades de saúde. Neste processo, após a primeira consulta, o médico discute o caso com um especialista e analisa se o paciente pode ser tratado na própria unidade ou deve ser encaminhado para outro profissional.
— Cada discussão de caso vai qualificando o profissional, porque os casos vão se repetindo, e a partir da discussão com um especialista, ele vai tratando por similaridade — defende o secretário, argumentando que o matriciamento existe em outras áreas da medicina, como cardiologia e pediatria.
Para o vice-presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e coordenador do núcleo de psiquiatria da entidade, Fernando Uberti, o modelo ajuda, mas precisa estar somado a mais leitos hospitalares e ampliação das unidades para atendimento.
— Estamos tentando construir uma nova política pública em saúde mental pelo município de Porto Alegre. Esse atendimento poderia se dar diretamente pelo psiquiatra lá na atenção básica ou em matriciamento, que é o psiquiatra apoiando o atendimento, fornecendo subsídios técnicos ao atendimento do médico de família — explica Uberti.
O atendimento mais próximo da comunidade é defendido pela psicóloga e professora da Unisinos Fátima Fischer, que foi coordenadora da saúde mental de Porto Alegre de 1995 a 1998 e secretária substituta da saúde de 1998 a 1999. Ela concorda que o matriciamento pode ser eficaz para oferecer um acompanhamento com um profissional que sabe qual o contexto social em que o paciente está inserido.
— Isso é fundamental porque é ele quem conhece o usuário na ponta, ali no território. Uma equipe que possa estar dando conta disso na atenção básica pode ser resolutiva — analisa Fátima.
(*Os nomes da avó e da mãe que participam da reportagem foram preservados para não identificar as crianças, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA))