Atualmente com 48 anos, a pensionista e moradora de Porto Alegre, Marcia Regina Mendes, convive há 20 anos com um cisto cerebral e precisa monitorá-lo frequentemente. Em 2022, ela teve um exame de ressonância marcado para avaliar o possível crescimento do cisto e se há necessidade de cirurgia. A previsão é de que o procedimento ocorra só em 2027.
— Tu não consegue resolver a tua vida. Tem aquele risco da cirurgia, de abrir a cabeça e não saber como que vai ser. E ainda tem que esperar um exame que demora uns três, quatro anos. Eu fico de mãos atadas. Então, espero que um anjo me ajude — afirma Marcia.
Assim como ela, Peterson Saldanha, 18 anos, também vive diariamente a angústia da espera. Ele tem hidrocefalia, o que afeta diretamente a coordenação motora, e aguarda um procedimento ortopédico desde 2019. Sua mãe, a dona de casa Silvia Saldanha, 47, lamenta a demora e afirma que a falta do procedimento causa um efeito “bola de neve". Como não há avanço na marcação cirurgia, as consultas e exames não surtem efeito. Mesmo assim, Silvia relata que leva o filho nos atendimentos:
— Tem que estar sempre atualizando as consultas, porque se tu não ir lá, ele sai da fila definitivamente. Caso ele saia, tem que entrar de novo e recomeçar todo o processo. Ele já perdeu muita mobilidade, durante esses anos, já não pode mais fazer um monte de coisa que fazia por causa disso (da espera).
Casos como os de Marcia e Peterson são exemplos das mais de centenas de milhares de pessoas que estão hoje na fila do Sistema Único de Saúde (SUS) em Porto Alegre. De maneira geral, essa fila organiza atendimentos conforme a urgência, demanda e estrutura disponível.
Os casos graves têm atendimento prioritário, enquanto os considerados menos urgentes são agendados. No entanto, na medida que a capacidade se esgota, situações de maior gravidade passam a esperar mais tempo.
Na Capital, há uma central de regulação que gerencia as vagas nas instituições de saúde. Há, também, a regulação do governo do Estado. Esses sistemas são os responsáveis por organizar e distribuir os atendimentos.
Filas em elevação
Em 14 meses, a espera por exames pelo Sistema Único de Saúde (SUS) aumentou 61,6% em Porto Alegre. Entre agosto de 2023 e setembro de 2024 - dado mais recente disponível - o número de pacientes aguardando passou de 84.921 a 137.239, o maior no período.
Já os que esperam por consultas passaram de 155.814 a 185.372 no mesmo período, saltando 18,9% e chegando, também, ao registro mais alto nesse recorte.
Os números estão disponíveis na transparência da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
Por que as filas não reduziram?
Para o secretário municipal de Saúde, Fernando Ritter, uma série de fatores influenciaram no aumento do número geral das filas. Entre eles estão defasagem nos recursos enviados pelo governo federal aos municípios.
— Estão defasados e não são corrigidos — diz Ritter.
O gestor também aponta que muitos usuários migraram para a saúde pública de Porto Alegre, em razão da falta de condições de outros municípios da Região Metropolitana.
Sobre a necessidade de realizar mais exames para diminuir a fila, Ritter diz que falta estrutura nas instituições de saúde, que estão sobrecarregadas:
— Faltou oferta. Os hospitais estão sobrecarregados aqui. A carga de exames que eles fazem dos internados, da saúde suplementar, cresceu muito. Então, não há capacidade instalada para ofertar mais, tanto é que a gente tinha mais recurso e não conseguiu aplicar por causa da falta de oferta. Então é uma questão de estrutura mesmo — avalia o secretário municipal da Saúde, Fernando Ritter.
Boa parte dos atendimentos e avaliações dos pacientes passam pelos postos de saúde e dezenas deles foram afetados pela enchente. Mesmo assim, conforme a SMS, isso não afetou efetivamente a fila. Em maio e junho, inclusive, houve menos solicitações do que o usual, já que muitas pessoas não conseguiam se deslocar até as unidades.
Em nota, a SMS garantiu que está "qualificando a rede de atenção primária para aumentar a resolutividade dos atendimentos". O objetivo é evitar complicações de doenças crônicas que demandem atendimento especializado.
O financiamento da saúde tripartite, modelo do SUS em que a responsabilidade pela verba é dividida entre a SMS, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) e o Ministério da Saúde. Com isso, são destinados e organizados os repasses a partir das demandas e necessidades de cada local. A reportagem de Zero Hora questionou a SES e o Ministério da Saúde sobre a afirmação do secretário Ritter.
A SES informou, por meio de nota, que "já repassou aos hospitais do Rio Grande do Sul quase R$ 1,1 bilhão em incentivos desde o lançamento do programa Assistir, em 2021. Ou seja, por cirurgias, exames e consultas" (veja nota completa abaixo). A pasta estadual pontua que "é legítima a preocupação dos municípios para custear novos procedimentos" e que "a contribuição da União é cada vez menor, enquanto Estado e municípios contribuem cada vez mais".
Já o Ministério da Saúde informou que, nos anos de 2023 e 2024, repassou um total de mais de R$ 700 milhões ao município de Porto Alegre para procedimentos cirúrgicos hospitalares, ambulatoriais, consultas, atendimentos, diagnósticos e acompanhamentos.
Programa não foi suficiente para reduzir filas
Em 30 de agosto de 2023, a prefeitura lançou o programa Agiliza Saúde, com objetivo de reduzir a fila para exames e consultas. Ele seguiu até dezembro do mesmo ano. O investimento total do programa foi de R$ 9 milhões em procedimentos e R$ 23 milhões na compra de equipamentos. A promessa da SMS é de manutenção do programa de forma fixa no ano que vem.
A fila de consultas no início do programa era de 155.814 e aumentou para 185.372 em setembro de 2024, alta de 18,9%. Já os exames tiveram uma elevação de 61,6%, saindo de 84.921 para 137.239 no mesmo período de comparação.
Os dados mostram que no final do ano passado as filas tiveram redução, mas essa tendência não se manteve nos meses seguintes. Nas consultas, por exemplo, houve leve queda de agosto até setembro de 2023, primeiro mês do programa, quando o número caiu de 155.814 a 155.572. No entanto, voltou a crescer a partir de outubro daquele e chegou a 185.372 em setembro de 2024.
O que dizem as autoridades
Zero Hora questionou a SMS sobre os casos citados nesta reportagem. Do exame de Marcia Regina Mendes, a secretaria afirmou que o pedido da ressonância não está sendo regulado pela pasta. Disse, ainda, que quando regulados pela secretaria municipal os prazos variam entre 20 dias para os mais urgentes e até 300 dias para os demais. O exame marcado para 2027 está programado para ocorrer na Santa Casa de Porto Alegre. Questionada, a instituição de saúde informou que o agendamento de exames por diagnóstico de imagem é sempre realizado após a consulta médica, conforme disponibilidade de agenda. Explicou, ainda, que mensalmente realiza procedimentos acima da sua capacidade de atendimento.
Da situação de Peterson Saldanha, a SMS afirmou que o atendimento de ortopedia "não foi contemplado no mutirão e seguiu o fluxo normal de procedimentos". A pasta informou que "o gargalo nessa área é um dos maiores, ainda mais depois que Porto Alegre virou referência devido ao fechamento de serviços na Região Metropolitana". Alega, ainda, que "não há capacidade física nos hospitais" para atender a todos, e que "procedimentos eletivos são sobrepostos pelas urgências".
Confira a nota completa da SES
"Desde agosto de 2021, quando foi lançado, o programa Assistir, do Governo do Estado, através da Secretaria da Saúde, já repassou aos hospitais do Rio Grande do Sul quase R$ 1,1 bilhão em incentivos pelos serviços realizados. Ou seja, por cirurgias, exames e consultas. Com a fase atual do programa Avançar Mais na Saúde, anunciada nesta quinta-feira, o Estado também atinge um repasse de R$ 952,1 milhões em investimentos desde 2021 para a qualificação da rede de saúde, além dos recursos já aplicados em custeio. A atual gestão também quitou R$ 1,2 bilhão em dívidas com municípios e hospitais.
É legítima a preocupação dos municípios para custear novos procedimentos. Temos uma rede de saúde robusta. Mas é preciso discutir a forma de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). A contribuição da União é cada vez menor, enquanto Estado e municípios contribuem cada vez mais. Se essa lógica não for invertida, permanecerão as dificuldades para atender a demandas legítimas de gestores municipais e da população."