— Depois da enchente, não tem as coisas no hospital. Não tem lençol, não tem fronha, não tem travesseiro, não tem coberta para os pacientes. Medicação também não tem, eu fui pedir lá (no hospital de campanha ao lado), e só deram uma medicaçãozinha. Faltou tudo. Para a higiene do paciente — relata a soldadora Nilvana Britto, acompanhante de um idoso de 80 anos no Hospital Nossa Senhora das Graças (HNSG), em Canoas.
Há mais de três meses, o estabelecimento acomoda os atendimentos, a estrutura que pôde ser recuperada e o corpo técnico do Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC), invadido e destruído pela enchente. A nova realidade levou ao aumento do número de atendimentos no local e tem gerado problemas: o hospital está cheio e há falta de insumos, conforme relatos de acompanhantes. Nilvana, moradora do bairro Mathias Velho, também perdeu tudo na enchente, e teve de levar uma toalha de casa para o idoso.
— Ele está com 80 anos, está passando dificuldade — relata.
Desde a última quarta-feira (7), Zero Hora publica uma série de reportagens que mostra como está a reconstrução do Estado em oito áreas essenciais. Em relação aos hospitais, R$ 137,7 milhões já foram destinados à recuperação dos estabelecimentos, valor que representa 25% do anunciado (R$ 550,1 milhões) pelos governos estadual e federal, conforme dados do Painel da Reconstrução, do Grupo RBS.
O Hospital de Pronto Socorro de Canoas é o único hospital ainda fechado no Rio Grande do Sul devido à enchente – outros quatro também foram totalmente interditados, mas já retomaram suas atividades. Três foram parcialmente interditados e seguiram funcionando, tendo restabelecido seus serviços.
Posteriormente, em junho, o Hospital São Luiz Gonzaga também foi incluído na lista dos hospitais parcialmente interditados, devido a um temporal que atingiu a instituição.
Diante do aumento de atendimentos no Hospital Nossa Senhora das Graças – o número de cirurgias subiu de 1,3 mil para 1,5 mil por mês, e o de atendimentos de emergência, de 5,6 mil para mais de 7,8 mil –, foram ampliados o número de consultórios, de salas cirúrgicas e a estrutura do hospital, de acordo com o secretário municipal da Saúde de Canoas, Mauro Sparta.
Em nota, o Graças diz que a "superlotação está diretamente relacionada ao aumento dos problemas respiratórios típicos do período de inverno, o que resulta em uma maior demanda por atendimento médico. Adicionalmente, estamos enfrentando um desafio extra devido ao fato de que dois hospitais estão operando temporariamente nas instalações do HNSG".
Sobre o relato de Nilvana, na abertura da reportagem, o hospital respondeu nesta terça-feira (13) que "informações não correspondem à realidade. Não há falta de lençóis e fronhas no hospital, e as toalhas, embora não fornecidas pelo hospital, são requisitadas aos acompanhantes conforme necessário."
O município também recebeu um hospital de campanha da Aeronáutica. Além disso, está organizando a ampliação da rede de diagnóstico, com a aquisição de mais um tomógrafo.
Houve perda substancial no HPSC. Não há previsão de reabertura do estabelecimento, referência para 102 municípios e 2 milhões de pessoas. A limpeza do hospital e a retirada de equipamentos já foram realizadas. O total de recursos necessários para a reparação do hospital está estimado em R$ 69,7 milhões, incluindo a recuperação predial e aquisição/conserto de equipamentos, segundo a prefeitura. A primeira etapa na qual se trabalha é a energia elétrica, explica Sparta:
— O maior desafio do início é termos a energia elétrica funcionando, os geradores funcionando, a rede de gás e a rede hidráulica. Com isso, nós temos condições de fazer com que todo o resto aconteça, sem isso nada pode acontecer. No momento em que nós tivermos isso, vamos começar a questão da recomposição do prédio em si, pintura, tudo isso pode ser feito.
Além disso, estão ocorrendo reformas na área ocupada pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). As ações no HPSC estão sendo realizadas com recursos municipais – a Secretaria Estadual da Saúde (SES) repassou R$ 750 mil ao município, que foram utilizados na manutenção dos serviços no Hospital Nossa Senhora das Graças.
O município encaminhou o orçamento do hospital e o pedido de recursos ao Ministério da Saúde, que sinalizou, até o momento, com indicativo de liberação de R$ 30,5 milhões – foram solicitados também R$ 32 milhões para equipamentos, mas a prefeitura ainda não obteve resposta.
— Temos muita pressa em fazer com que, efetivamente, o hospital e as nossas unidades básicas de saúde comecem a funcionar. Então, nós estamos usando muito também o terceiro setor, a iniciativa privada, para ver se a gente consegue acelerar o máximo possível — afirma Sparta, destacando o apoio recebido também da comunidade.
Recursos estaduais
A SES anunciou e destinou R$ 45,1 milhões para 247 hospitais do RS, repassados integralmente aos municípios. Além disso, R$ 1 milhão foi destinado à aquisição de cem câmaras para armazenamento de vacinas e medicamentos, doadas a municípios em calamidade ou emergência que registraram perda em decorrência dos eventos climáticos.
Para a secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann, o governo estadual cumpriu seu papel do ponto de vista de repasse de recursos. O principal desafio, agora, é sobre a manutenção ou não dos hospitais no mesmo local. No caso de Canoas, a mudança de local do HPSC chegou a ser cogitada, mas não avançou – há um trabalho de aumento dos diques sendo organizado, segundo Sparta.
— É uma avaliação que tem de ser feita, já que esses hospitais estão em áreas de manchas, em planícies. Então, esse é o maior desafio. A questão de onde colocar esses equipamentos de saúde. Nos parece que esse é o ponto importante, mas não é só em relação a obras. Por exemplo, Estrela é um hospital que, muito provavelmente, terá de mexer na localização dos geradores. Os serviços que foram atingidos têm de fazer seu plano de reconstrução pensando exatamente nisso — pondera Arita.
Por enquanto, não há previsão de novos repasses do governo estadual, mas a possibilidade pode ser avaliada para 2025, por meio do Avançar na Saúde. O Plano Rio Grande, de reconstrução, está em fase de propostas.
— Temos de fazer já um plano mais amplo, avaliando outros eventos adversos em que a rede tem de estar pronta para atendimento em situações de calamidade — avalia.
Recursos federais
O governo federal já destinou mais de R$ 91,6 milhões para os hospitais do RS – o valor representa 18,1% do total anunciado para o Estado (R$ 504 milhões). Os números consideram as rubricas de gastos com tratamentos, atendimentos, ativos civis, sistemas e medicamentos, e não consideram gastos com atenção primária, vigilância sanitária, saúde indígena, farmácia popular, benefícios a servidores públicos e Força Nacional de Saúde. Os recursos vieram primariamente por meio de medidas provisórias, e não consideram portarias vinculadas a emendas parlamentares.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que "coordenou diversas frentes para prestar assistência à população e restaurar as estruturas de saúde no Rio Grande do Sul após o maior desastre climático do Estado, com ações voltadas à assistência emergencial e ao pós-tragédia".
A pasta ressaltou que abriu leitos em hospitais, montou quatro hospitais de campanha, enviou insumos e medicamentos, doou 30 ambulâncias do Samu, mobilizou voluntários da Força Nacional do SUS (FNS-SUS) e profissionais de diversas áreas. Também realizou fornecimento de leite materno para UTIs Neonatais e outras ações para garantir a qualidade da água e a reconstrução de unidades de saúde. O ministério ainda flexibilizou regras do Mais Médicos.
"Foram destinados mais de R$ 143,7 milhões para hospitais filantrópicos, R$ 93 milhões para a abertura emergencial de leitos e R$ 68,6 milhões destinados à abertura emergencial de leitos de UTI Pediátrica", diz a nota do Ministério da Saúde, sem especificar a origem dos recursos e a destinação que foram utilizados para gerar essa soma.
Procurada diversas vezes por Zero Hora, a Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Mudança de local
Em Roca Sales, no Vale do Taquari, o aposentado Airton Magedanz precisou remover a mãe de 89 anos às pressas do Hospital Roque Gonzales quando a enchente atingiu o local. O hospital decidiu dar alta aos pacientes que estavam melhores e transferir aqueles que ainda precisavam de internação. Ela estava internada há 23 dias devido à dengue.
— Foi uma loucura. A gente teve de atravessar o rio com carro, onde já estava fora, nas estradas, para trazer a mãe até aqui (lar de idosos). Ela estava com sonda, no xixi e para se alimentar, e com oxigênio. Eu recebi a notícia que tinha de tirar a mãe do hospital. Então, eu encostei o carro e carreguei a mãe, tentei levar para Encantado, e como não havia mais como, aí tentei trazer para cá — recorda.
A instituição onde ela já havia sido internada anteriormente relutou em aceitá-la, já que a água também atingiu o lar de idosos – Magedanz, porém, não teria como prestar os cuidados necessários em casa. Ele foi aconselhado a alugar um gerador por causa do oxigênio. Contudo, ao voltar a Roca Sales, a energia e a internet caíram, e o filho ficou ilhado, sem notícias da mãe por cinco dias. A sensação de impotência dominou o aposentado, que temia que ela morresse por falta de um gerador. Hoje, o filho relembra os transtornos ao lado da mãe, que conseguiu atravessar aquele período difícil e já está recuperada no lar de idosos.
O primeiro piso do hospital, que já havia sido atingido pela enchente de setembro de 2023 e reaberto, foi destruído novamente. O local passou novamente por obras, recebendo revestimento em porcelanato nas salas de atendimento, pintura no teto, gesso, reparos no piso e troca de portas. Na segunda-feira (29), o estabelecimento filantrópico, com 90% dos leitos dedicados ao SUS, voltou a atender no primeiro andar, após quase três meses de atendimentos improvisados no segundo pavimento. A reforma do setor administrativo continua.
As obras estão sendo realizadas com doações do humorista Badin, do Sicredi, do Unicred e de pessoas físicas – o hospital não recebeu ainda os repasses dos governos federal e estadual, que continuam no fundo municipal. Isso porque o município exige que o plano de trabalho, que indica a aplicação dos recursos, passe pela aprovação do Conselho Municipal de Saúde, conforme Raquel Oestreich, secretária de Saúde de Roca Sales e interventora do hospital (sob intervenção desde fevereiro de 2023).
Porém, duas entidades não estão mais participando ativamente, e o município optou por removê-las do conselho. A alteração, entretanto, não chegou a ser validada por lei, e nesta semana o projeto será apreciado na Câmara de Vereadores. A secretária acredita que o dinheiro será liberado em setembro.
— Só que eu digo: nós estávamos no meio de uma emergência em saúde. Então isso deveria passar pelo conselho depois, e não estar condicionando esse repasse ao Conselho de Saúde. Essa é a minha briga, que eu digo: há gente morrendo pela burocracia do país. Eu até questionei os municípios vizinhos se, para eles, exigiram apreciar pelo conselho. Não exigiram, porque o momento é de emergência. O nosso exigiu, então as regras vamos cumprir. Só que nós temos um recurso importante que ainda não veio para o hospital, mas vai vir. São as burocracias do país — declara Raquel.
Serão repassados um total de R$ 1,76 milhão, provenientes dos governos estadual, federal e também de emendas parlamentares, garante o prefeito Amilton Fontana. Os recursos serão aplicados nos próximos meses para custeio emergencial, como equipamentos, material de construção, mão de obra, despesas, entre outros, dando sequência às obras e retomando outras.
Com o estabelecimento tendo sido atingido várias vezes, Roca Sales integra a lista de municípios gaúchos que planejam mudar a localização de pontos estratégicos como o hospital. O município aguarda a liberação do recurso de R$ 500 mil do Estado para realizar o projeto arquitetônico.
* Colaborou Michelle Pértile (RBSTV)