Um terço das crianças brasileiras de até cinco anos fica mais de duas horas em telas diariamente, segundo pesquisa realizada em 13 capitais pelo Ministério da Saúde e pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Além disso, 35% dos pais ou outros cuidadores acreditam que dar palmadas ou gritar são "medidas necessárias para educá-las".
O estudo, divulgado nesta quarta-feira (25) durante o 10º Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, em Brasília, faz parte do projeto Primeira Infância Para Adultos Saudáveis (Pipas) e traz dados, de 2022, de crianças entre zero e 59 meses. A intenção é a de entender o desenvolvimento infantil para nortear políticas públicas no país.
Nas últimas décadas, diversas pesquisas mostraram a importância dos estímulos e dos cuidados na primeira infância (fase que vai de zero aos seis anos) para o desenvolvimento das crianças e da sociedade. Os investimentos nessa faixa etária reduzem riscos de problemas de saúde, de nutrição, de déficits de aprendizagem, e ainda levam a melhores salários na vida adulta e menores dificuldades sociais.
Telas em excesso
Com relação ao tempo que as crianças ficam diante da TV (assistindo programas ou jogando), no smartphone ou tablet, a cidade do Rio de Janeiro registrou o maior índice, de 40%. Em São Paulo, 31,7% dos pais responderam que seus filhos ficam por mais de duas horas nas telas. O índice médio no país é de 33%.
A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que crianças com menos de dois anos não tenham exposição alguma às telas e que até cinco anos o uso seja limitado a um máximo de uma hora por dia. Relatório deste ano da Unesco também alertou para os riscos da exposição excessiva à tecnologia e mostrou que diversos países já têm proibido celulares em salas de aula.
— Não é uma questão simples, inclui desinformação, sobrecarga de famílias monoparentais e também é preciso ter políticas que mostrem outras práticas, brincadeiras, que podem ser feitas no mesmo ambiente em que a criança está usando telas — diz Marina Fragata, diretora de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
Segundo o Ministério da Saúde, pesquisas piloto com o mesmo perfil já mostraram que o uso de telas é um dos fatores que influenciam no atraso de desenvolvimento.
Palmadas e gritos
Com relação às medidas punitivas, consideradas inadmissíveis por educadores, a cidade de Porto Velho ficou com o maior índice de cuidadores que consideram as palmadas necessárias, com 49%. Em seguida, estão Belém (41%) e Aracaju (40%).
— É uma questão considerada cultural, mas os cuidadores precisam saber os efeitos. A criança que vive com receio de levar uma palmada está em um estresse de longa duração, tóxico, que traz efeitos muito negativos ao desenvolvimento do cérebro — diz Sonia Venâncio, coordenadora de atenção à saúde da criança e do adolescente do Ministério da Saúde
Os gritos também são aceitos por mais pais de crianças no Rio (40%) e Porto Velho (36%). São Paulo tem índices de 33% para concordância de dar palmadas e 32% para gritos com crianças de até 5 anos.
— É um desafio gigante que temos para ressignificar as práticas de cuidado e educação das crianças — completa Marina.
Para ela, o resultado da pesquisa com relação às práticas punitivas é "alarmante" principalmente porque refere-se a palmadas e gritos com crianças pequenas, de menos de cinco anos.
Alimentos ultraprocessados
Na pesquisa, 51,5% também disseram que seus bebês de seis a 23 meses tinham consumido no dia anterior alimentos ultraprocessados como bebidas adoçadas, macarrão instantâneo, salgadinho, hambúrguer, embutidos e biscoitos.
Produtos ultraprocessados contém substâncias industriais que não são encontradas na cozinha. Estudos mostram que o consumo desses produtos aumenta o risco de hipertensão, doenças cardíacas e derrames.
Para elaborar o questionário, a pesquisa usou o referencial Nurturing Care Framework, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Unicef, agência da ONU para a infância. Ele considera cinco áreas que precisam ser garantidas para um pleno desenvolvimento da criança: boa saúde, nutrição adequada, oportunidades de aprendizagem desde o início da vida, proteção e segurança e cuidados responsivos.
De maneira geral, o estudo identificou que 10,1% das crianças de zero a 35 meses e 12,8% das que tinham mais de 36 meses foram consideradas como suspeitas de terem atraso em desenvolvimento. Isso significa que elas não atingiram certos marcos de desenvolvimento, como sustentar o tronco ou balbuciar aos seis meses.
Segundo o relatório, o atraso de desenvolvimento é mais frequente entre as crianças mais pobres e que participaram de programas de transferência de renda.
— Isso é esperado porque são de famílias em maior vulnerabilidade social — disse Sonia Venâncio.
Entre as mais atingidas estão as famílias com o mais baixo perfil socioeconômico: 17% das crianças estão com suspeita de atraso no desenvolvimento nesse grupo.
— Os resultados são importantes para reafirmar o impacto das desigualdades e para que tenhamos políticas para priorizar essas crianças.
Silêncio em casa
As conclusões do relatório destacam ainda o fato de um quarto dos pais terem dito que não conversaram, cantaram ou contaram histórias aos seus filhos pequenos nos dias anteriores aos que foram questionados. E ainda que 24% das crianças das capitais não tinham nenhum livro infantil em casa e que, quanto mais pobre, menor o índice.
Com relação à Educação Infantil, a pesquisa mostra que 9% das crianças com quatro anos ou mais não estavam matriculadas em escolas, o que é obrigatório no país a partir dessa idade. Mas em algumas capitais, como Porto Alegre, são 23%.
Em São Paulo, o índice é de 5%. Entre os menores, com menos de dois anos, a média fora da escola no país é de 46%, mas em Belém e Porto Velho, por exemplo, são 80% das crianças que não estão na creche. A região Norte é a que tem menos oferta de vagas para alunos em creche, importante tanto para o desenvolvimento da criança quanto no apoio às mulheres no mercado de trabalho.
O simpósio é realizado pelo Núcleo Ciência Pela Infância, uma coalizão que reúne Fundação Bernard van Leer, David Rockefeller Center for Latin American Studies da Universidade de Harvard, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Insper e Porticus.
Foram ouvidas na pesquisa famílias de 13.425 crianças entre zero e 59 meses em 13 capitais, incluindo o Distrito Federal, durante campanhas de vacinação.
*A repórter viajou a convite da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.