Os atrasos nos pagamentos de salários no Instituto de Cardiologia (IC) são parte de uma crise financeira que acumula R$ 45 milhões em dívidas. A informação foi confirmada a GZH pela Fundação Universidade de Cardiologia (FUC), que administra a instituição localizada em Porto Alegre. Para conter o prejuízo, a gestão pode deixar de atender pelo IPE Saúde já em agosto. Além disso, a demissão de funcionários é vista como necessária para equilibrar as contas — atualmente, a instituição tem cerca de 1,4 mil colaboradores. A direção do IC diz que contratará uma gestão hospitalar e uma consultoria para enfrentar a crise.
Na sexta-feira (14), após iniciarem uma greve por atraso nos salários, os funcionários do IC decidiram suspender a paralisação. A decisão foi tomada depois que a direção quitou os salários atrasados e assinou um acordo com o Sindisaúde. Além do atraso nos salários, o instituto também deve depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) dos trabalhadores e há irregularidades no pagamento de férias, alega o sindicato.
— Temos colegas sem dinheiro para passagem, para gasolina, para as compras do mês. É um monte de situação que estão nos fazendo passar. O pessoal está muito abalado. Nós lidamos com vidas: temos que ter nosso psicológico bom para poder atender. Os pacientes não têm culpa de nada — desabafa Simone Podlasinski, técnica de enfermagem do IC e que esteve à frente da mobilização dos funcionários.
A preocupação não é apenas da administração e de funcionários: o Instituto de Cardiologia foi o responsável por quatro em cada 10 cirurgias cardíacas feitas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em 2022, no Estado. Esse número coloca o IC como um dos principais centros de referência na área no RS. Também é pelo SUS a maior parte dos atendimentos no local: 70% dos acolhimentos; outros 17% são pacientes do IPE Saúde e o restante tem origem nos convênios particulares.
O custo mensal do centro varia entre R$ 16 milhões e R$ 18 milhões, e é superior ao que a instituição recebe do poder público e de convênios: o IPE destina, em média, R$ 1,6 milhão por mês ao IC, já a prefeitura de Porto Alegre – gestora dos valores do SUS na Capital – repassa por volta de R$ 5,7 milhões mensais. A quantidade insuficiente de recursos faz o déficit operacional chegar a R$ 5 milhões no mês, conforme Jorge Auzani, cardiologista e diretor-tesoureiro da instituição.
Auzani comenta que a verba federal repassada para o custeio dos procedimentos baseada na tabela do SUS é o principal empecilho para a saúde financeira do hospital.
— Recebemos R$ 60 para cada R$ 100 que gastamos para atender um paciente do SUS. Houve um tempo em que as órteses e próteses, marca-passos, stents, davam margem (lucro) para o hospital, o que acabava compensando o déficit nas outras áreas. Agora, isso causa um déficit operacional — explica.
Esse contexto, segundo Auzani, ocorre por conta da portaria 3.693 do Ministério da Saúde (MS), de dezembro de 2021, que entrou em vigor em junho de 2022. A norma federal alterou os repasses para o pagamento de órteses, próteses e materiais especiais utilizados em procedimentos cirúrgicos cardiológicos.
Na tabela, por exemplo, um desfibrilador — dispositivo que envia choques elétricos ao coração do paciente para reanimá-lo — é cotado a R$ 18,4 mil. No entanto, os fornecedores cobram cerca de R$ 50 mil dos hospitais, que precisam desembolsar a diferença para adquirir o equipamento. Já para um stent — um tubo colocado dentro da artéria coronária — o montante a ser pago passou a ser R$ 341,41 em 2022. Antes da portaria, o SUS pagava R$ 2 mil, redução de 83%.
— O valor repassado pelo SUS por esses materiais reduziu muito, mas o custo deles (no mercado) não caiu. A pandemia também inflacionou o valor. As coisas voltaram à normalidade, mas os preços desses materiais não — acrescenta o tesoureiro.
Somado a isso, por conta da demanda de pacientes, a direção alega que o hospital faz mais atendimentos do que a quantidade acordada com gestores públicos, o que também aumenta o prejuízo financeiro.
— Isso acontece sistematicamente, ou seja, no final do mês ou do trimestre, nós não recebemos por tudo. Desde outubro do ano passado começamos a operar no vermelho e a crise foi se agravando — completa Auzani.
Crise com o IPE
No IPE Saúde, a situação é parecida ao SUS. A estimativa do financeiro do instituto é de que o IC receba, em média, R$ 60 para cada R$ 100 utilizados nos atendimentos. Os gestores dizem que a mudança em um cálculo dos repasses feito pelo convênio estadual em 2018 reduziu a verba destinada a procedimentos cardiológicos.
A situação fez o Instituto de Cardiologia protocolar um aviso prévio de dois meses para interromper o atendimento pelo IPE. O prazo termina no dia 12 de agosto, mas há negociação para que o acordo continue:
— Estamos pedindo correção no valor das diárias e queremos o pagamento da defasagem que ficou para trás, mais a dívida que o IPE tem com a gente, que é ao redor de R$ 7 milhões — acrescenta Auzani.
Em maio deste ano, o instituto fez 2.066 atendimentos pelo IPE Saúde, entre internações, ambulatório, urgência e emergência e atendimentos a pacientes externos (que não precisaram de internações).
Em nota à reportagem, o IPE Saúde afirmou ter feito proposta para "melhoria de remuneração compatível com o que o Instituto de Cardiologia almeja", mas exige, como condição, que "haja a preservação da qualidade da assistência à saúde dos segurados, o que não foi garantido pelo hospital".
Para o convênio estadual, a dívida com o Cardiologia é menor: R$ 3 milhões, que é o montante das dívidas já vencidas, mas afirma que espera zerar o débito com o hospital nos próximos meses. Sobre as mudanças ocorridas nos repasses em 2018, o instituto justifica que "a proposta foi deliberada de forma conjunta entre o IPE e os representantes dos hospitais (Federações)". O instituto afirma não ter conhecimento da margem negativa nos atendimentos alegada pela gestão do IC.
Gestão e consultoria
Para equilibrar as finanças, a direção da FUC decidiu buscar ajuda no mercado: a ideia é que um gestor (ou um grupo) auxilie na tomada de decisões no curto prazo. Somado a isso, o objetivo é contratar uma consultoria especializada para montar um plano de recuperação. As duas medidas estão em estudo, e não há um prazo para o acerto.
— Os diretores do hospital, na maioria dos casos, são médicos, alguns com experiência em gestão. Precisamos de pessoas que se dediquem 100% para isso (na gestão) e que tenham experiência, que possam tomar medidas que, às vezes, não são muito populares, como demissões, porque a folha (salarial) é um dos nossos principais problemas — pontua Jorge Auzani.
Além dos desligamentos para enxugar as despesas, a direção também diz que precisará ter apoio de gestores públicos e bancos para renegociar contratos.
Hospital referência
Segundo Miriana Gomes, cardiologista e representante médica do grupo de comunicação da Fundação Universitária de Cardiologia, o IC acumulou prejuízo de R$ 1,2 milhão em 2022 por ter mantido cirurgias de marca-passos e desfibriladores mesmo em um cenário de menor repasse.
— Os valores recebidos ainda tem que custear a folha dos funcionários que não é paga pelo poder público como em outros hospitais públicos. Ainda assim, o instituto não fechou as portas a seus pacientes: os atendimentos continuaram normalmente — pontua Miriana.
O Instituto de Cardiologia foi o responsável por 29,7% das cirurgias cardíacas no Estado entre 2019 e 2022 e foi a instituição onde foram feitos 2.778 implantes de marca-passos, o que representa 37,2% desses procedimentos no Estado no mesmo período. Os levantamentos são do hospital a partir de dados do Ministério da Saúde.
— Somos referência em alta complexidade cardiológica: a maioria dos hospitais do Interior não tem cirurgia cardíaca, não tem hemodinâmica. Por isso, recebemos pacientes de todo o Estado — diz a cardiologista.
Produtividade em 2022, segundo o IC
- Atendimentos: 232.182
- Procedimentos cirúrgicos e hemodinâmica: 15.633
- Exames/pacientes: 876.260
A história do instituto começou na década de 1960, no ambulatório e na disciplina de cardiologia da então Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre - hoje Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Naquele contexto, foi criada a Fundação Universitária de Cardiologia, com o objetivo de "desenvolver o ensino, aprimorar a assistência médica e incentivar a pesquisa cardiológica" no RS. Em 1967, em um acordo de cooperação com o governo estadual, a FUC assumiu a gestão do Instituto.
Depois, mais cinco instituições de saúde ficaram - e ainda estão - sob responsabilidade da fundação: Hospital de Alvorada (1997), Hospital Padre Jeremias de Cachoeirinha (1998), Hospital de Viamão (2006), Instituto de Cardiologia do Distrito Federal (2009) e Hospital Regional de Santa Maria (2018).
— Não recebemos nenhuma taxa para administrar esses hospitais. Além do déficit nas tabelas, a direção tem que lidar com toda a folha de pagamento e a administração. Por sermos uma instituição filantrópica, os diretores estatutários não são remunerados pelo trabalho desenvolvido nos cargos de gestão — esclarece Miriana Gomes.
Ajuda da sociedade
A instituição tem se mobilizado em busca de recursos para reduzir a fila dos pacientes que aguardam cirurgia de marca-passo. Há 31 internados e outros 90 que esperam pelo procedimento no ambulatório. A arrecadação será feita com a campanha Amigos do Coração, lançada neste mês. O site aceita valores a partir de R$ 15, que podem ser doados uma vez ou de forma periódica. Também é possível ajudar por meio de uma transferência via Pix à chave 92.898550/0001-98.
— Temos pacientes aguardando (pelo marca-passo) há três meses. A campanha é principalmente para ajudá-los. As doações grandes são muito mais comuns em hospitais privados do que em um local como o instituto, que atende SUS e IPE. Não temos tido apoio de empresários. Além disso, pedimos para que quem tem convênio faça exames no instituto, que é de qualidade, e, ao fazer isso, a pessoa ainda ajuda (a custear) o atendimento pelo SUS — pontua Miriana.
No início do ano, o IC já havia organizado uma "vaquinha" para reduzir a fila do marca-passo, na qual foram arrecadados cerca de R$ 50 mil; com o dinheiro, oito intervenções foram feitas.
O que dizem Sindisaúde e Simers
Julio Jesien, presidente do Sindisaúde, sindicato que representa técnicos e auxiliares de enfermagem, concorda que a instituição, a exemplo de outras, tem sido impactada pela defasagem da tabela SUS e o aumento de preços dos materiais utilizados nos procedimentos. No entanto, ele atenta para a forma como o Instituto de Cardiologia é administrado hoje.
— As questões mais críticas estão relacionadas à falta de transparência com as despesas do hospital. São informações que não conseguimos ter acesso. Dentro das nossas limitações, estamos pedindo a intervenção técnica no hospital, a saúde é um direito de todos, mas é dever das três esferas do Estado. É um hospital vital para a saúde pública do Rio Grande do Sul — pontua.
O Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) afirma que acompanha com atenção a crise financeira do Instituto de Cardiologia, em especial o não pagamento de profissionais com contratos efetivos e os que atuam como pessoa jurídica. Segundo a entidade, há relatos de atrasos desde maio, não apenas no IC, mas em outras instituições administradas pela FUC.
— Os médicos não falam em paralisação, não há indicativo de greve nem interrupção de serviço. Apesar de não estarem recebendo, esperam ainda uma solução amigável. As diárias, as visitas, os insumos pagos pelo SUS e pelo IPE para os hospitais não são suficientes para manter o hospital funcionando — diz Marcos Rovinski, presidente da entidade médica.
Rovinski pontua que a situação vivida pelo hospital está relacionada ao modo de financiamento dos serviços, que, para o Simers, deve ser repensado "urgentemente”:
— Qualquer hospital que trabalha com 80% SUS está fadado a quebrar, e é o que está acontecendo com o Instituto de Cardiologia. E, à medida que as condições de trabalho vão piorando, a alta complexidade, que é mais ou menos bem remunerada, deixa de ser realizada, ou seja, o financiamento fica pior ainda.