Nesta quarta-feira (31), data que marca o Dia Mundial Sem Tabaco, Guiomar Lima, 60 anos, tem motivos para comemorar. O que por mais de quatro décadas foi uma realidade diária, hoje é apenas uma lembrança.
— Comecei a fumar na adolescência, acredito que com 13 anos — recorda a cuidadora de idosos, que conseguiu abandonar o vício há mais de um ano.
A história de Guiomar se assemelha a de muitos brasileiros e, por esse motivo, pode servir como incentivo a quem deseja abandonar o tabagismo, doença crônica caracterizada pela dependência física e psicológica de nicotina, que, segundo alguns psiquiatras especialistas em dependência de drogas, é a mais difícil de se livrar.
O primeiro passo nessa jornada é ter consciência do caminho que está sendo percorrido — muitas vezes, sem perceber que poderá resultar em uma doença ou no agravamento de outras condições, conforme explica Luiz Carlos Corrêa da Silva, médico pneumologista da Santa Casa de Porto Alegre.
— O fumante vive de 10 a 15 anos menos, em média, do que o não fumante. Então, a pessoa que deixar de fumar vai ganhar tempo e qualidade de vida. Para isso, ela tem de ter um grande objetivo, que se chama saúde — ressalta Corrêa da Silva, um dos criadores do projeto Fumo Zero, da Associação Médica do Rio Grande do Sul (AMRIGS). O projeto tem o objetivo de chamar a atenção sobre o problema e fazer com que o cidadão abrace a ideia de zerar o fumo.
Foi um susto que levou Guiomar, no início da pandemia, a mudar de comportamento: um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Hoje, ela relata que não sente tanta dificuldade em se manter longe do cigarro:
— Claro que, em algumas ocasiões, sinto vontade, mas tenho me mantido firme nesse propósito de não fumar. Creio que a motivação maior seja cuidar da saúde, ter mais qualidade de vida — aponta.
A diferença que Guiomar mais percebe é a maior disposição para praticar atividades físicas. Atualmente, ela frequenta a academia de segunda a sábado. Para se manter forte em seu objetivo, a cuidadora pensa em sua saúde e na possibilidade de ter outro AVC caso continuasse fumando.
A família também tem um papel fundamental em acabar com o vício: é preciso advertir os fumantes de que existem formas de parar. O pneumologista sugere exercer uma certa pressão, com afeto, para que a pessoa abandone o cigarro.
—A família tem de usar as coisas que a pessoa gosta como estratégia, até como recurso de pressão. Tem de pegar a pessoa pelo lado sentimental, como: “Seu filho ou neto não fuma. Se enxergar você como fumante durante o crescimento, vai achar que é coisa normal” — relata.
— Alguns também concluem: “Poxa, quero ver meu neto pequeno crescer, ir para a faculdade, mas fumando estou correndo risco”. Use o seu amor por si mesmo e pelas pessoas que sofrerão muito se você continuar fumando — acrescenta.
Além disso, uma vez definido o objetivo de parar, é preciso se planejar para não “menosprezar o inimigo”, uma etapa fundamental, conforme Francisco Arsego de Oliveira, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Grupo de Tabagismo da UBS Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA)/Santa Cecília.
Buscando ajuda
Nos atendimentos semanais do Grupo de Tabagismo da UBS HCPA/Santa Cecília, a psicopedagoga Diva Fonseca, 62 anos, tem buscado auxílio para a sua luta. Sua iniciação no cigarro foi aos 18 anos, mas o vício tomou espaço aos 20. Ela já tentou parar de fumar três vezes - chegou a interromper o hábito durante duas gestações, mas voltou a fumar. Agora, está há uma semana empenhada na decisão. Assim como Guiomar e outras pessoas, o que mais pesou em sua decisão foi a saúde - e a idade, visto que não teve nenhum problema até o momento, mas sabe dos perigos do tabagismo em uma idade avançada.
— E depois, também, a gente faz economia, fica mais bonita, a pele fica melhor, a saúde fica melhor, temos mais disposição… comecei a fazer academia. Me sinto mais disposta, feliz com a minha atitude — conta.
Desta vez, Diva acredita que está mais consciente e preparada para parar.
— Estou com os adesivos, estou recebendo nicotina, porque a dependência é a questão principal. Não é só dependência química, mas física e psicológica do cigarro também. A questão física é ter o hábito de ter o cigarro na mão ou algo na boca. Estou tentando ter um chiclete, uma balinha, para os momentos mais difíceis, quando dá vontade de fumar. Cada um encontra a sua maneira, o seu jeito, mas é um processo bem difícil — compartilha.
O tabagismo muitas vezes está relacionado a questões emocionais, como estresse, ansiedade e depressão. O acompanhamento psicológico pode fornecer o suporte emocional necessário para lidar com esses desafios.
NINO MARCHI
Psicólogo especialista em dependência química
A psicopedagoga encontra estímulos diariamente no fato de se sentir melhor e de saber que está conseguindo ser mais forte do que o vício.
—Isso traz uma satisfação muito grande, de poder. Porque realmente o vício é muito forte, e quando tu consegues vencer isso, te dá a sensação de que tu consegues fazer as coisas. É querer, porque a força está na gente. Não desistir é uma questão mesmo de luta. Tem alguns momentos que a gente fica meio “pô, como vou ficar sem esse cigarro que gosto tanto”, mas realmente dá para a gente vencer — orgulha-se.
Outro aliado nessa luta pode ser o suporte psicológico profissional, que é altamente recomendado, já que o vício do tabaco envolve tanto a dependência física quanto a psicológica.
— O tabagismo muitas vezes está relacionado a questões emocionais, como estresse, ansiedade e depressão. O acompanhamento psicológico pode fornecer o suporte emocional necessário para lidar com esses desafios, ajudando os indivíduos a encontrar motivação para parar de fumar e desenvolver estratégias eficazes de enfrentamento — explica o psicólogo Nino Marchi, especialista em dependência química.
Portanto, a terapia pode ajudar em diversas frentes, como na motivação; no tratamento da dependência psicológica; na identificação de gatilhos que levam a fumar; na formulação de estratégias para lidar com essas situações; na mudança de comportamento; e em técnicas de prevenção de recaídas. O apoio emocional, inclusive, aumenta as chances de sucesso na cessação do tabagismo, explica o psicólogo.
— No interior do indivíduo, podem existir outras angústias, estressores e alguns padrões de comportamento erráticos, levando o indivíduo a optar pela “automedicação” do tabaco, que a história tem demonstrado ser um dos piores remédios para as dores da alma, com efeitos colaterais nefastos — acrescenta Marchi.
Definindo os passos
Conforme Corrêa da Silva, a maioria das pessoas que para de fumar consegue fazê-lo por conta própria, muitas vezes guiada por um grande objetivo, como o controle de alguma doença, questões emocionais ou de afetividade.
— A motivação é o principal mecanismo para a pessoa começar essa fase de preparação para parar de fumar — explica o médico.
Ao seguir programas para deixar de fumar, há quatro itens fundamentais, como explica:
- Motivação - um objetivo que garanta força
- Preparação - busca por informação e, por vezes, contato com um profissional da saúde, em uma preparação para o Dia D. Nesta etapa, o paciente começa a utilizar medicamentos que vão desde o tratamento de reposição de nicotina até a substituição do seu efeito, de modo que, quando a pessoa para de fumar, o impacto da síndrome de abstinência tende a ser menor
- Dia D - a data a partir da qual não irá mais fumar
- Manutenção - preparação para não utilizar o cigarro como artimanha de defesa a problemas que eventualmente terá de enfrentar
A maior dificuldade em parar de fumar está na dependência da nicotina, conforme os especialistas. Mas os fumantes também costumam enfrentar outra dependência: o hábito. Eles se acostumam a, por exemplo, tomar café e fumar, ou fazê-lo após uma refeição ou quando estão estressados, criando associações ou gatilhos, que vinculam o fumo com determinadas ações do cotidiano.
Quem decide parar pode enfrentar a abstinência. A nicotina tem efeito em alguns núcleos cerebrais. Quando a pessoa fuma, aumenta a sensação de bem-estar, alívio e gratificação. Ao cessar, substâncias como dopamina, serotonina e noradrenalina, que são formadas no cérebro, têm diminuição. É aí que as pessoas se sentem mal, resultando na síndrome de abstinência.
— É um fenômeno que acontece rapidamente, mas se a pessoa tratar adequadamente essa fase, ela consegue passar esse desmame da nicotina e do cigarro sem ter síndrome de abstinência. Existem medicamentos para auxiliar — explica o pneumologista da Santa Casa.
A bupropiona, um novo medicamento, pode estar disponível em breve. Além dela, uma empresa farmacêutica dos Estados Unidos anunciou resultados positivos nos testes clínicos de um medicamento chamado citisiniclina, com redução de desejos e abstinência e poucos efeitos colaterais. Se for aprovada, será a primeira terapia sem nicotina introduzida em quase 20 anos.
Entre a fase de retirada do cigarro e a chegada à estabilidade, algumas pessoas têm ainda o que é chamado de fissura, uma necessidade súbita de fumar, quando os receptores nicotínicos do cérebro acordam. A sensação incomoda, e a pessoa faz de tudo para conseguir um cigarro, sentindo-se perdida do ponto de vista do autocontrole - alguns enfrentam até mesmo a sensação de que vão morrer, afirma Corrêa da Silva. No entanto, o médico alerta que a fissura dura no máximo entre cinco e 10 minutos. Para evitar cair na tentação, é preciso encontrar uma distração, como beber água ou fazer alguma atividade para tirar da cabeça a ideia de que se não fumar se sentirá mal.
— Nós temos de ter obviamente um direcionamento e não ceder. Algumas pessoas pensam “ah, um cigarrinho só”. Não, é um erro, porque se fumar um, vai como que acordar receptores, e para fumar um novo cigarro em algumas horas é muito fácil. É uma grande causa de recaída — complementa.
Se a pessoa sente que não tem a força necessária para parar sozinha, ela pode procurar auxílio. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamento gratuito a quem deseja parar de fumar. Na Santa Casa também há um programa dedicado a quem queira largar o vício.
É preciso se preparar emocionalmente para esse momento “difícil” e “importante”, acrescenta o psicólogo Nino Marchi, especialista em dependência química. A ajuda profissional poderá ser de grande auxílio no processo, com abordagens motivacionais e ajuda médica concomitante. Ele lembra que, em alguns casos, é necessário fazer uma retirada gradual do cigarro. A terapia de grupo também é uma grande aliada.
Marchi também destaca também o papel das mudanças comportamentais. Outras iniciativas que podem auxiliar nesse processo são: evitar ambientes que são gatilhos, como saídas noturnas e consumo de álcool nos primeiros 30 dias; e modificar hábitos associados ao tabaco.
Alguns recursos, segundo os especialistas, podem ser adotados para ajudar a pessoa a se manter focada:
- Beber bastante água
- Ingerir alimentos de baixa calorias para manter o estímulo oral: cenouras cruas, chiclete, balas diet
- Praticar exercícios físicos
- Realizar técnicas de relaxamento/meditação
- Evitar ambientes que são gatilhos, como saídas noturnas e consumo de álcool nos primeiros 30 dias
- Modificar hábitos associados ao tabaco