O Rio Grande do Sul tinha 28 casos confirmados de coronavírus quando Lucas Santos, na época com 30 anos, apresentou os primeiros sintomas do que parecia ser um resfriado comum. Natural de Porto Alegre, ele não havia viajado ou tido contato com alguém vindo do Exterior antes daquele 18 de março de 2020, poucos dias depois da declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), data que completa três anos neste sábado (11).
Mesmo assim, poucos dias depois, já havia perdido o paladar e não conseguia mais comer ou tomar água. A falta de ar era muito intensa e o enjoo era constante. Precisou procurar atendimento médico e foi imediatamente internado. Ao todo, Lucas enfrentou 45 dias de internação, sendo 33 deles em coma induzido na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC).
Nesse período, foi diagnosticado com covid-19, teve uma parada cardiorrespiratória, uma trombose na virilha esquerda e 80% do pulmão comprometido. Também passou por cinco pronações (técnica em que o paciente é colocado de bruços para aumentar a quantidade de oxigênio que entra nos pulmões) e teve alucinações enquanto estava entubado.
— Tenho só flashes de memória do dia da internação, porque eu já estava muito mal. Lembro do médico falando que teria que me entubar, mas eu já estava alucinando, porque, nesse flash, estava em uma sala com luz vermelha e não tem nada assim no hospital. Mas nem passava pela minha cabeça que eu ficaria internado. Estava relutante em acreditar que era covid, porque era uma coisa muito distante ainda, tinham poucos casos em Porto Alegre. Pensava que a estatística estaria muito contra mim se fosse covid, e era — conta.
Hoje com 33 anos, o consultor de sistemas, ao lado do cachorro Tobias, recorda como as informações eram escassas no início da pandemia: não se sabia com exatidão, por exemplo, quais sintomas o vírus poderia causar. Também comenta que não havia testes disponíveis para a população e que as recomendações dos órgãos de saúde eram de manter o isolamento e só procurar atendimento médico em casos de sintomas muito fortes:
— Era tudo muito novo e eu não tenho certeza sobre onde peguei. Mas eu estava muito mal, só queria conseguir respirar. Senti muita falta de ar, foi horrível. É uma sensação muito ruim não conseguir respirar.
Ao deixar o hospital, Lucas teve que enfrentar não apenas as sequelas físicas da doença, mas também psicológicas e cognitivas. Para lidar com o que especialistas chamam de covid longa, precisou de tratamento com fisioterapeuta, fonoaudióloga, psiquiatra, osteopata (profissional que se dedica a abordagem terapêutica de dores) e psicólogo. A parte fisiológica se resolveu em cerca de seis meses e o ex-lutador de jiu-jítsu até voltou a treinar, mas as questões psicológicas foram mais complicadas.
Conforme Lucas, as alucinações permaneceram por algum tempo após a alta hospitalar. Além da terapia, que já fazia antes da covid-19, precisou de acompanhamento psiquiátrico e fez uso de medicamentos antipsicótico, ansiolítico e antidepressivo.
— Logo que saí do hospital, fiquei três semanas bem, me recuperando, comendo, fazendo os exercícios de fisioterapia. Depois, o estresse pós-traumático bateu forte e eu fiquei de cama de novo. Eu não queria levantar, não queria comer, não queria fazer nada. Foi um caso de estresse pós-traumático bem severo, era uma depressão bem grande, uma ansiedade muito forte, uma sensação de que tudo ia dar errado — relembra.
Maria Lucia Langone, professora de Psicologia da Universidade Feevale, que atua no projeto de reabilitação pulmonar da instituição, afirma que casos de estresse pós-traumático ocorrem principalmente entre pacientes que tiveram sintomas graves, ficaram isolados na UTI e viram a morte de perto. Essa experiência, segundo a especialista, leva a pessoa a questionar toda sua existência e a sentir muito medo:
— Não podemos generalizar, mas pessoas que têm sequelas de médio a longo prazo ficam mais suscetíveis ao estresse pós-traumático. Elas passam por uma espécie de luto pela saúde que tinham antes. Tem um número expressivo de pessoas que reclamam sobre a diminuição da capacidade cognitiva e a dificuldade em desempenhar as atividades do dia a dia. Isso afeta muito o sujeito do ponto de vista psíquico e gera quadros de ansiedade e depressão.
Eu não queria levantar, não queria comer, não queria fazer nada. Foi um caso de estresse pós-traumático bem severo, era uma depressão bem grande, uma ansiedade muito forte, uma sensação de que tudo ia dar errado
LUCAS SANTOS
Consultor de sistemas
A experiência de quase morte por vezes ainda é tema das sessões de terapia de Lucas, mas o consultor de sistemas garante que está ótimo atualmente. E, apesar das dificuldades, ele se diz grato por ter passado pelo que passou, já que o período lhe trouxe a oportunidade de repensar sobre a vida, transformando sua maneira de observar as ações e as trocas diárias.
— Acho que é uma experiência que pode trazer boas reflexões. Depois da covid, pensamentos clichês sobre a forma correta de viver, a necessidade de se exercitar, de ter relações mais saudáveis e de estar mais perto das pessoas que gostamos fizeram mais sentido para mim. Parece que tem um significado novo e mais potente — ressalta.
Pandemia de sequelas pós-covid
De acordo com o médico pesquisador do Hospital Moinhos de Vento Regis Rosa, que integra um grupo de trabalho da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre covid longa, uma grande proporção de pacientes contaminados pelo vírus tem apresentado sintomas prolongados, que prejudicam sua qualidade de vida, dificultam o retorno à rotina de trabalho e estudos, e impactam o funcionamento dos sistemas de saúde. Ele comenta que o conhecimento sobre a ocorrência, os fatores de risco e potenciais ações que podem trazer benefícios a essas pessoas evoluiu muito desde 2020, mas não na velocidade ideal, já que provavelmente são milhões de afetados pelo mundo.
— Da mesma forma que temos uma pandemia de uma doença viral aguda grave, estamos tendo agora uma pandemia de sequelas pós-covid e isso precisa ser tratado da melhor forma possível para fazer com que esses pacientes voltem para suas vidas normalmente — enfatiza Rosa.
A estimativa da OMS é de que os sintomas prolongados ocorram em cerca de 10% a 20% dos pacientes infectados pelo coronavírus. No decorrer dos últimos anos, estudos mostraram que essa ocorrência independe da gravidade do quadro, ou seja, mesmo pessoas que tiveram covid leve podem ficar com sequelas por meses. Também foi possível constatar quais são os sintomas que costumam permanecer na maioria dos casos:
— Hoje entendemos que, entre esse conjunto de sintomas da covid longa, alguns são mais prevalentes do que outros. Mas chama a atenção que essa síndrome pós-covid é extremamente heterogênea, então, afeta múltiplos sistemas, como muscular, respiratório e nervoso. Os sintomas mais comuns envolvem fadiga, falta de ar, alterações no olfato, dor muscular, dificuldade de concentração e de memória.
Rosa lembra que idosos, mulheres, pessoas com múltiplas comorbidades, fumantes e indivíduos com um nível socioeconômico menor estão entre os pacientes que integram o grupo de risco. Aqueles que tiveram quadros mais severos da doença, especialmente nas primeiras ondas, necessitando de UTI e ventilação mecânica, também apresentam mais chances de ter sintomas prolongados — esses, inclusive, podem ter sequelas graves, com risco aumentado de hospitalização e de eventos cardiovasculares maiores, como infarto e AVC.
Conforme o especialista, os pacientes que ficaram em coma induzido e entubados por um longo período, como Lucas, têm uma alta ocorrência de problemas de saúde mental. Em um recorte de seis meses após a internação, por exemplo, cerca de 20% deles têm sintomas de ansiedade, outros 20% apresentam sintomas de depressão, enquanto 15% têm estresse pós-traumático. Além disso, Rosa destaca que, no quesito específico de saúde mental, pessoas mais jovens têm um fator de risco maior.
Chama a atenção que essa síndrome pós-covid é extremamente heterogênea, então, afeta múltiplos sistemas, como muscular, respiratório e nervoso. Os sintomas mais comuns envolvem fadiga, falta de ar, alterações no olfato, dor muscular, dificuldade de concentração e de memória.
REGIS ROSA
Médico do Hospital Moinhos de Vento
— Parece que isso se relaciona muito com a redução da capacidade física funcional: era uma pessoa funcionalmente plena e, nos primeiros meses após a alta hospitalar, se depara com uma dificuldade de locomoção e precisa de ajuda para atividades básicas da vida diária. Soma-se isso ao fato de que muitos acabam tendo problemas de memória, o que contribui principalmente para o estresse pós-traumático dos pacientes — alerta.
O pesquisador aponta que os sintomas prolongados vão se resolvendo ao longo do tempo, mas salienta que o trabalho de reabilitação de saúde física, mental e de cognição aceleram essa recuperação. Isso evita complicações relacionadas às incapacidades e faz com que os pacientes voltem o quanto antes às atividades normais. Para identificar o problema, é necessário um diagnóstico diferencial, onde se exclui outras causas para aqueles sintomas. Já o tratamento é multidisciplinar, com diferentes especialistas, e personalizado, atendendo às necessidades de cada paciente.