No início da década de 1960, a Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição oferecia uma oportunidade para quem estava preocupado com o futuro. A então instituição privada prometia um espaço que mesclava moradia para pessoas a partir dos 60 anos, com assistência médica em Porto Alegre. O contrato dizia, na primeira cláusula, que a Casa de Saúde se comprometia “a prestar, sempre que lhe for solicitada, perfeita assistência médica e hospitalar, fornecer medicamentos e etc".
A segunda disposição afirmava que o prazo de vigência do acordo era “indeterminado, pois durará enquanto viver o Segundo Contratante (o proprietário, no caso)”. O contrato seria encerrado quando o investidor morresse, pois os herdeiros não teriam direito nem à residência nem ao atendimento médico.
Em resumo: a instituição oferecia moradia, alimentação, medicamentos e cuidados à saúde durante toda a vida - após os 60 anos, ou antes, com comprovação de doença - de quem comprasse a cota. Maria Cora Stahl, então casada e mãe de duas crianças, gostou da proposta:
— Achava que deveria pensar lá na frente, para que eu tivesse uma coisa que me ajudasse no fim da vida — conta ela, hoje aos 96 anos.
Maria Cora efetivou o negócio em 1961 e diz ter feito o mesmo investimento para as duas filhas - ainda vivas - e o marido, já falecido. À época, ela pagou 75 mil cruzeiros por uma acomodação de “primeira classe”, o equivalente hoje a R$ 183 mil, segundo cálculo do economista e professor da Universidade Feevale José Antônio Ribeiro de Moura.
Tornou-se, assim, uma das pessoas com direito a morar na hoje chamada ala das Residências Vitalícias do Conceição, onde está há 36 anos.
No momento, a única obrigação financeira dela é pagar R$ 21,70 por refeição ao Hospital. Por isso, em um cálculo que leva em conta o que Maria Cora pagou pelo investimento e quanto tempo mora na ala, a matemática mostra que a idosa desembolsou cerca de R$ 432 por mês.
— Foi um ótimo investimento, compraria de novo, com certeza. Gosto de tudo aqui. Eu me sinto bem, todas as pessoas são boas comigo. Não me sinto sozinha — afirma a professora de inglês aposentada.
História
A Casa de Saúde foi idealizada pelo farmacêutico Jahyr Boeira de Almeida e inaugurada em 1962, com o objetivo de ser um espaço com assistência médica para pessoas da terceira idade. A ideia original era que a instituição não fosse um hospital como é hoje o Conceição, mas um espaço parecido ao que existe atualmente no mercado de residências de alto padrão para idosos. Também oferecia uma espécie de plano de saúde: quem o adquirisse poderia ter os serviços hospitalares (e prioritários), mas sem direito ao domicílio.
O projeto previa outros atrativos aos investidores, além de moradia e atendimento médico vitalícios: um automóvel para passeios, salão de jogos, auditório e até um cinema; nada disso, porém, saiu do papel. Em 1975, com problemas financeiros, a Casa de Saúde foi encampada pelo governo federal para se tornar o Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC).
No entanto, quem comprou o domicílio manteve o direito de ocupar o espaço. A década de 1990 foi a com mais moradores: 65. Eram nove quando GZH esteve no local, há 10 anos: as personagens da reportagem de 2013 foram Leda Camargo, Conceição Ribeiro Geiss e Elaine Marisa Haselein Saleh, que morreram no período. Na última quarta-feira (22), viviam na ala Maria Cora e outras três pessoas: duas mulheres, de 95 e 98 anos, e um homem de 73.
Como é o espaço hoje
Os apartamentos das Residência Vitalícias mudaram de local desde a inauguração da Casa de Saúde. No momento, os últimos quatro moradores ocupam um corredor em "L", separado por uma porta chaveada, no quarto andar do Hospital Conceição. O Setor de Oftalmologia, inaugurado em 2022, é o vizinho dos idosos. A estrutura conta com uma copa, enfermaria e o consultório médico. O corredor entre os apartamentos tem plantas, bancos e quadros na parede, com fotos de moradores que passaram pelas residências.
— Estou sempre de sobreaviso. Venho aqui se acontece alguma coisa: avalio, peço exames. Os moradores têm toda a medicação, nutricionista, alimentação. Quando precisam de uma intervenção (cirúrgica), são internados no hospital. Tem sempre alguém aqui 24 horas por dia — resume Ademir Heleno Brandini, médico responsável pelo atendimento das Residências Vitalícias há 40 anos.
Os moradores podem optar pela comida dos funcionários ou a servida pelo hospital. Aqueles com dieta têm cardápio preparado pelo serviço de nutrição. Eles não pagam água, luz e medicamentos. Há apenas o gasto diário com alimentação. Os apartamentos têm tamanhos diferentes, mas são amplos, com mais de 50 metros quadrados; possuem banheiro, um ou dois quartos, sala e cozinha. Já os móveis são dos moradores.
Modelo único
Frederico Berardo, presidente da Associação Brasileira de Hospitais e Clínicas de Transição (ABRAHCT), mostrou-se surpreso ao conhecer a história das Residências Vitalícias do Conceição: em 40 anos de atuação junto a instituições de saúde diz jamais ter visto iniciativa parecida no Brasil.
— É uma modalidade que já existe há algum tempo na Europa e nos Estados Unidos. Mas, mesmo lá, dessa forma, com um hospital financiando (o serviço) e dentro de suas dependências, não sei se existe. É uma ideia realmente bastante diferente — comenta.
Ele comenta que a ala do Conceição se assemelha ao modelo norte-americano de “assisted living”, que, no Brasil, é similar às residências (ou hotelarias) assistidas, um serviço de moradia para idosos com necessidades de auxílio em atividades diárias, além de atenção médica à disposição 24 horas por dia em uma espaço adaptado para evitar acidentes.
— Mas isso é financiado pelos próprios moradores, como uma cota: você vai pagando e vai usando aquele serviço até morrer. Dentro de um hospital e com essa característica, de você pagar uma vez como se tivesse comprado um imóvel ou uma acomodação, eu nunca tinha ouvido falar — acrescenta Berardo.
A reportagem de GZH contatou instituições privadas que oferecem serviço de moradia para idosos em Porto Alegre, para compreender quanto custaria hoje um serviço parecido ao disponível aos quatro moradores da ala das Residências Vitalícias do Conceição. Nenhuma das empresas, porém, oferece procedimentos cirúrgicos e tratamentos considerados complexos, algo ofertado no hospital público.
O Residencial Geriátrico Florence Hotelaria Assistida, na Zona Norte, tem enfermagem especializada 24 horas, equipe multidisciplinar, unidade de cuidados especiais, cuidados pós-cirúrgico, entre outros serviços. O valor mensal é a partir de R$ 6,2 mil.
Já no caso do Residencial Menino Deus, no bairro Menino Deus, o custo mensal básico é R$ 9 mil. Os moradores têm direito a uma equipe multidisciplinar, com médico geriatra e enfermeiras 24 horas à disposição.
Em uma instituição localizada na zona norte da Capital, o valor de suítes individuais varia entre R$ 18 mil e R$ 25 mil por mês. Nela, são oferecidos serviços como assistência médica diária, médico de sobreaviso, assistência nas internações e enfermeira 24 horas por dia.
Contratos não são válidos, diz Conceição
O Grupo Hospitalar Conceição (GHC) diz não considerar válidos os contratos da Residência Vitalícia porque a instituição entende que o acordo foi extinto quando a instituição se tornou pública, em 1975. Desse modo, os quatro moradores permanecem no local devido a uma determinação judicial de 2006.
— Nesta ação, o GHC foi obrigado a cumprir os contratos. Contudo, ela só beneficia os atuais residentes e demais beneficiários que constam no processo, não se aplicando a qualquer outro contrato que vier a ser apresentado por algum interessado — explica Vitto Giancristoforo dos Santos, assessor jurídico do GHC.
Desse modo, segundo o assessor jurídico, não existe a possibilidade legal de ampliação ou recebimento de novos moradores na ala das Residências Vitalícias.
— Se alguma pessoa comparecer exigindo o cumprimento do contrato, nossa posição é de que este contrato não é mais válido e não será cumprido, pois todos os serviços do GHC são destinados exclusivamente ao Sistema Único de Saúde — acrescenta.
Segundo o Conceição, a posição é a mesma no caso de contratos de prestação de serviços aos chamados “sócios remidos” - que compraram o “plano de saúde”, mas não a moradia na década de 1960 - nos quais existem cláusulas de atendimento preferencial ou até internação em quarto privativo aos proprietários.
— Consideramos esses contratos rescindidos. Todos os cidadãos, independentemente de terem sido beneficiários de contratos com a antiga empresa ou não, serão atendidos no GHC através das regras de regulação dos serviços de saúde do SUS — esclarece Vitto Giancristoforo dos Santos.
Para Cláudio Oliveira, diretor-presidente do GHC, o princípio do Sistema Único de Saúde é contrário à ideia das Residências Vitalícias, por que não é um modelo universal:
— Não podemos ofertar nada parecido por conta da justificativa do SUS, porque quem não tem condições econômicas não teria acesso. Nós atendemos 100% SUS para todas as faixas de renda, não somente para quem pode pagar — diz.
Segundo Oliveira, a instituição preferiu manter os moradores nas dependências do hospital e não transferi-los a outro espaço para evitar gastos públicos.
— Poderíamos pagar casas geriátricas, mas elas teriam um custo para a União. E poderia haver outro problema jurídico, porque no hospital há todo o atendimento especializado. Essas pessoas compraram aqui, investiram para ter esse direito aqui — pontua.
Segundo o diretor-presidente do GHC, a administração tem usado o espaço dos apartamentos vagos para ampliar a estrutura física do Conceição nos últimos anos. Assim, a ala continuará enquanto houver moradores no local: depois, com a morte dos últimos quatro, o espaço das Residências Vitalícias será fechado.