Pelo pátio da moradia onde vivem Conceição, Leda, Elaine e mais seis vizinhos passam 3 mil pessoas por dia. É gente buscando atendimento médico, enquanto elas buscam viver sossegadas. Nos apartamentos do terceiro andar, convivem com uma curiosa vizinhança: uma escola para formação médica, um banco de sangue, um setor de patologia e uma UTI. Sim: o prédio é de um hospital.
A maioria está saudável. Não têm formação médica, mas são residentes do Hospital Nossa Senhora da Conceição, na Capital. A história de onde vivem, a Residência Vitalícia, está ligada à origem da maior rede pública de hospitais em atendimentos pelo Sus no Sul do país.
Em vídeo, conheça os moradores e veja um pouco dos apartamentos:
Dona Conceição, a vizinha da UTI
O dia começa cedo para Conceição Ribeiro Geiss, 86 anos. A moradora do apartamento 28 da Residência Vitalícia acorda às 5h e, às 6h30min, pega um táxi rumo ao Centro, onde trabalha como esteticista facial, ofício que desempenha há quase 50 anos. Mas nem sempre é fácil estar bem disposta: algumas noites são muito mal dormidas.
Ela conta que, como é vizinha da UTI, que fica no prédio ao lado, seguidamente é despertada por choros ou gritos de pacientes. Essa situação escancara a transformação ocorrida entre os anos 60 e hoje:
- Eu não comprei um lugar num hospital, comprei um lugar numa casa de saúde. Não me acostumei a morar num hospital, fico inquieta, triste - conta.
O direito ao apartamento que ela mantém bem cuidado e repleto de bibelôs delicados, livros e quadros coloridos, existe desde a aquisição de cotas para ela e o marido, em 1961. Na época, o casal pagou 675 mil cruzeiros (hoje, R$ 58 mil).
Ela está na terceira passagem. E se surgir uma oferta...
Pela planta original, deveria ter sala de visitas, de estar, quarto, banheiro e sacada. Hoje, em cerca de 60m², não tem sacada ou sala de visitas.Havia outras opções de espaços: semi-luxo (sem a sala de estar) e simples (quarto e banheiro).
- Gosto do meu apartamento, mas se oferecessem dinheiro, não pensaria duas vezes. O médico é bom, os enfermeiros são ótimos, o pessoal da nutrição também.
Mas é tudo mal administrado - reclama Conceição.
Embora não tivesse idade mínima para morar na Residência Vitalícia, em 1964, Conceição passou a viver com o marido, que estava doente. Ela permaneceu na Casa de Saúde até o falecimento dele, em 1968. Então, saiu, pois tinha 42 anos. Daquele tempo, Conceição lembra do lago que havia no pátio e dos 40 apartamentos, mobiliados, ocupados por casais e aposentados.
Em 1996, com 70, decidiu morar no hospital, mas não se adaptou. Em 2004, aos 78 anos, precisou se tratar de um infarto. E decidiu não mais sair. A idosa gosta de bordar e ler romances. Passa um café cujo aroma toma conta do corredor. Ela vive só, pois não teve filhos. De vez em quando, os irmãos aparecem. Quando fica impaciente, Conceição tem um truque. Diverte-se ao relatar:
- Conto os grãos de 1kg de feijão. Levo duas horas, dá mais de 2 mil.
Um asilo de luxo
"Não há nada mais triste do que envelhecer sozinho!".
A frase estampava a propaganda distribuída aos futuros sócios da Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, no início da década de 60. Pessoas previdentes, que queriam garantir a velhice sossegada a si próprios ou aos filhos, e que dispunham de bom dinheiro, compraram a ideia: um apartamento que garantiria assistência médica a domícilio. Era uma espécie de plano de saúde da época, um asilo de luxo inaugurado em 1962.
Em 1975, o governo federal encampou a Casa de Saúde e tornou público o atendimento que era privado, originando o Grupo Hospitalar Conceição (GHC).
- A casa tinha problemas financeiros, prestes a fechar. O governo, no período da ditadura, fez um decreto, colocou recurso e começou a atender - conta o gerente administrativo do GHC, Claudiomiro Ambrosio, responsável pela ala vitalícia.
Mesmo com a mudança, ficou mantido o direito dos sócios remidos (com direito à assistência médica) e dos locatários (com garantia de morar lá após os 60 anos).
- Nos setores públicos, não conhecemos nenhum caso similar no país - revela Claudiomiro.
Matemática complexa
- Hoje são nove moradores, um por apartamento (com idades entre 64 e 95 anos, sendo um homem e oito mulheres). O auge da ocupação, desde que o hospital tornou-se público, foi na década de 90, com 65 apartamentos em uso. Havia até fila de espera em função do espaço físico ser limitado.
- A administração não tem como fazer previsão da extinção da ala vitalícia. Isso porque não se tem controle sobre a quantidade de remidos.
- Se ninguém mais aparecer, a ala será fechada somente quando a última moradora atual morrer (não é possível abrir um leito ao público em meio à ala residencial).
- Mesmo assim, o hospital terá de abrir um espaço similar caso surja um locatário.
Uma estimativa: se um comprador adquiriu apartamento para um filho que nasceu em 1970, último ano da Casa de Saúde, este cidadão poderá bater à porta do Conceição em 2030 (entrada só é permitida a partir dos 60 anos).
- A administração estima que 1,8 mil pessoas que passaram a buscar por estes direitos desde a década de 90.
- Entre os remidos cadastrados, atualmente há cerca de 400 e a procura por atendimento médico é considerada baixa, uma vez que toda consulta no Conceição é gratuita, por meio do Sus.
Sem chance de mudanças
O gerente Claudiomiro Ambrosio garante que não há riscos à saúde dos moradores permanentes do hospital.
- Há higienização adequada e com todos os cuidados. A Residência Vitalícia está dentro do hospital, mas está isolada, não tem acesso à UTI, emergência, ao bloco cirúrgico. Até hoje, nunca tivemos caso de infecção hospitalar.
O administrador, contudo, faz uma ressalva:
- O ideal é que estivessem num retiro, numa casa com pátio. Na época, o entorno do Conceição era todo aberto.
Transferência daria prejuízo ao Sus
Segundo ele, não há chance de providenciar a mudança desses moradores para área fora do hospital.
- Estamos honrando o que foi acordado, até porque montarmos uma estrutura (fora do hospital) seria tirar dinheiro do Sus. E temos uma estrutura dentro do que foi pensado
no contrato.
Assim que os contratos se encerrarem, o hospital já tem planos para o local:
- Queremos essa área para leitos e para atender a nossa demanda, que não é pequena. Quem procurar (pelo direito à moradia ou atendimento médico), vamos atender.
A propaganda
- Conforme a propaganda da época, na Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, na Avenida Francisco Trein, todo pensionista passaria por um exame médico, a fim de constatar seu estado de saúde.
- A Casa não seria um recinto fechado. Haveria um luxuoso automóvel à disposição dos pensionistas para cooperar em seus passeios.
- Em torno de mesas de bilhar e snooker, os pensionistas poderiam fugir do isolamento, enquanto ocupariam as horas com uma agradável distração. Os amantes de jogos de salão encontrariam, numa sala moderna e dotada de todo o requinte, ambiente ideal para horas de lazer.
- Ainda no setor de recreação, a Casa contaria com amplo auditório, destinado a arte e cinema. Numa moderna capela, seriam realizados ofícios religiosos.
- Destes benefícios, os residentes contam, atualmente, com uma capela ecumênica e uma copa e refeitório. Não há área de lazer. O carro de luxo, auditório e as salas para recreação e jogos nunca existiram.
Farmacêutico foi o idealizador
Em 1962, o farmacêutico Jahyr Boeira de Almeida fundou a Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, dedicada à residência com assistência médica às pessoas da terceira idade. Nascido em Passo Fundo, em 1922 (em 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, nome que deu à casa), ele atuou em áreas relacionadas à administração hospitalar. Em 1954, abriu uma farmácia em Porto Alegre. Em 1956, depois de comprar um terreno na Zona Norte, formou a diretoria do Hospital Cristo Redentor. Jahyr faleceu em novembro de 1976.
Claudiomiro Ambrosio explica que, na intenção de ampliar o hospital, o idealizador fez uma campanha junto à sociedade para conseguir recursos e custear construção da Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, vendendo títulos para sócios remidos e locatários.
As informações cima constam no livro Memórias do Hospital Cristo Redentor, de Ana Inez Klein e Véra Lucia Maciel Barroso.
Como é a rotina
- O acesso à Residência Vitalícia pode ser feito pelos moradores em qualquer horário, bem como visitas, desde que devidamente anunciados pela portaria ou segurança.
- Os moradores recebem todas as refeições nos quartos. Se quiserem, há refeitório. A comida é a mesma dos funcionários do hospital. Alguns têm o cardápio especial, segundo orientação médica. O serviço custa meio salário mínimo por mês.
- Por falta de área de serviço, as roupas são mandadas para uma lavanderia e cada uma custeia sua despesa. O mesmo acontece com telefone e tevê a cabo.
- Os moradores não pagam água, luz e qualquer medicamento.
- O tamanho e a disposição das peças dos apartamentos variam. Há quem tenha uma pequena cozinha, com geladeira, fogão e prepare alimentos no local. Outros, por serem quarto-sala-banheiro, adaptam espaços para terem uma pequena copa.
- Cada residente traz seus móveis e eletrodomésticos, como cama, sofá, além de televisão, rádio, computador. Os imóveis têm ar-condicionado.
- Há quem contrata faxineira, mas a equipe de higienização atua nas residências.
- Além do posto de enfermagem, um geriatra atende os moradores três vezes por semana. Eles também podem ser atendidos na emergência do hospital. Para consultas com especialistas, o apoio administrativo faz a marcação.