A batalha de décadas dos profissionais da Enfermagem pela fixação de um piso salarial para a categoria, que ganhou grande visibilidade e admiração com a pandemia, ainda pode ter desdobramentos, apesar da sanção da lei pelo presidente Jair Bolsonaro em 4 de agosto.
A Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) questiona, no Supremo Tribunal Federal (STF), dispositivos da Lei 14.434/22, matéria que é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.222, com relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Entre os argumentos da CNSaúde, estão a forma rápida com que se deu a aprovação do PL 2.564/20, que deu origem à lei, e a queda da autonomia orçamentária de Estados e municípios, com risco de descontinuação de tratamentos essenciais em decorrência da limitação de recursos. A assessoria de imprensa do STF informou que não há previsão de data para apreciação da ADI.
Desde 5 de agosto, data da publicação no Diário Oficial, a remuneração mínima de enfermeiros passa a ser de R$ 4.750. Técnicos devem receber 70% desse valor, e auxiliares e parteiros, 50%. Estabelecimentos privados e filantrópicos já precisam efetuar o pagamento dos novos salários na folha referente ao mês de agosto. Para instituições estaduais e federais, o novo piso vale após as eleições. Salários que já estão acima desses valores não podem ser modificados, independentemente da carga horária para a qual o trabalhador foi contratado. Acordos individuais e coletivos também devem respeitar essas remunerações mínimas.
Luciney Bohrer, presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos do Rio Grande do Sul, afirma que as instituições filantrópicas sempre foram a favor do piso, “pelo merecimento da categoria”, mas argumenta que não há recursos para honrar os novos valores. Bohrer aponta que, para a maior parte dos estabelecimentos, a lei representa um aumento de 30% a 35% nas folhas de pagamento.
— Desde o início, por meio da CMB (Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas), negociou-se com o Congresso que o PL seria aprovado com indicação da origem de onde sairia o recurso. Isso não foi respeitado. Enquanto não tiver origem, não temos como fazer esse pagamento. A ADI discute a legalidade dessa lei. Estamos esperando o posicionamento do ministro Barroso — diz Bohrer.
Enquanto não há definição, o presidente da federação diz que hospitais estão analisando suas estruturas:
— Terá que ocorrer readequação. Não quero falar em demissões para não criar pavor, mas haverá prejuízo à população que depende dos serviços, com diminuição de leitos e profissionais qualificados. Isso é precarização.
Presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs), Cláudia Ribeiro da Cunha Franco não acredita em um revés no STF. Ela celebra a aprovação da lei, ainda que a categoria tenha feito várias concessões para que o texto ficasse “passável”. A versão inicial almejava remuneração na faixa de R$ 7,3 mil. Para Cláudia, mais grave do que a redução, entretanto, foi a desvinculação com a carga horária semanal de 30 horas. Ou seja, trabalhadores com regimes de 30 ou 44 horas podem receber a mesma quantia.
Porto Alegre, segundo a presidente do Sergs, paga salários “razoavelmente bons”, acima do piso, com exceção das geriatrias, e os maiores beneficiados, em geral, serão os empregados de nível médio (com curso técnico).
O maior impacto deverá ser sentido no Interior — o enfermeiro não tem a opção de mudar de emprego em uma cidade com um único hospital — e em casas geriátricas. Na semana passada, o Lar São Vicente de Paula, em Novo Hamburgo, demitiu 13 profissionais, entre enfermeiros e técnicos, por conta do novo piso.
Um retrato mais nítido da reação do setor poderá ser vislumbrado no início de outubro, prevê a presidente — aqueles que foram demitidos após 5 de agosto cumprirão aviso prévio, e a homologação da demissão no Sergs deverá ocorrer em até 10 dias, no final de setembro.
— Acho que demissões vão ocorrer. Os empregadores não veem a saúde como investimento, mas como custo. Vão demitir o funcionário que faz 30 horas e contratar outro por 44 horas com o piso — lamenta Cláudia.
O número de consultas ao sindicato disparou nos últimos dias. A recomendação para quem estiver com dúvidas ou suspeitar de irregularidades é entrar em contato pelo e-mail secretaria@sergs.org.br ou WhatsApp (51) 98265-0095.
— Estamos orientando os trabalhadores a não aceitarem mudança de contratos. A lei é clara: para pessoas já empregadas, não pode haver alteração de carga horária — alerta a presidente. — Já me ligaram para perguntar: “Tenho quem trabalha 30, 36 e 40 horas. Vão todos ficar ganhando a mesma coisa?” Sim — exemplifica a enfermeira, chamando a atenção para a possibilidade de livre negociação entre empregador e trabalhador desde a reforma trabalhista.