A mais completa versão do genoma humano conhecida até hoje, tema de artigo publicado em 1º de abril na revista Science, empolga e encanta a comunidade científica global. Desde 2000, divulgou-se que a tarefa havia sido concluída mais de uma vez, mas faltavam 8% do total, agora contemplados.
O feito notável é de autoria do consórcio Telomere-to-Telomere (T2T, Telômero a Telômero, na tradução do inglês), com uma centena de integrantes representando mais de 50 instituições. Para quem habita o universo da ciência, trata-se de um marco a ser sempre referenciado daqui por diante.
Genoma é a sequência completa do material genético de um organismo. São conhecidos milhares de genomas de espécies animais e vegetais, mas a tarefa monumental de esquadrinhar o genoma do ser humano tinha essas lacunas que já haviam sido consideradas menos importantes, mas que hoje se sabe serem fundamentais.
Olhar para trás permite observar o quanto se evoluiu na área em pouco mais de duas décadas. A bióloga Maria Cátira Bortolini, professora titular do Departamento de Genética e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), classifica a conquista como “extraordinária”.
— Celebro. É uma coisa absurdamente diferente. Não é nem um aumento exponencial, é quântico, em relação ao tamanho da informação para responder a perguntas biológicas. Quando eu era estudante de Biologia, tínhamos um tipo de ferramenta. Agora conseguimos responder problemas muito mais complexos. Para os que são bons, os que aproveitam, é algo extraordinário — avalia a docente.
Médica geneticista e chefe do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Ida Vanessa Schwartz também destaca a evolução das técnicas de investigação:
— É bem bonito ver como a tecnologia vai melhorando. Essas regiões que foram sequenciadas agora são mais difíceis de serem analisadas, variam mais de pessoa para pessoa. Antes, dizia-se que talvez não fossem tão importantes, mas hoje sabemos que são. Tenho bastante esperança de que isso vai se reverter em coisas boas dentro do processo saúde-doença.
Há de se ter cautela também, segundo Ida.
— Nem tudo é genético. Tem muita coisa que não depende da sequência do gene per se, mas, sim, da interação com o ambiente. E nisso ainda estamos engatinhando — pontua a geneticista.
Confira, a seguir, as explicações de Ida Vanessa Schwarz e Maria Cátira Bortolini para algumas das principais dúvidas a respeito do tema.
O que é genoma?
É a sequência completa do material genético de um organismo – ou seja, o conjunto de todos os seus genes e das sequências que não correspondem a genes. Dois pontos, aqui, devem ser esclarecidos, segundo a médica geneticista Ida Vanessa Schwartz. Primeiro, nem sempre os genomas são de DNA. O genoma de vírus pode ser de RNA — e muito se falou disso nos últimos dois anos, por exemplo, com o surgimento do coronavírus (sars-cov-2) e suas variantes, causando a pandemia.
Segundo: genoma não é sinônimo de gene. Em humanos, por exemplo, os genes que produzem proteínas correspondem a somente de 1% a 2% do genoma. As demais sequências, antigamente, eram consideradas de menor importância, mas hoje se sabe que são muito importantes, pois podem estar envolvidas na regulação dos genes (um fenômeno que explica o motivo de alguns genes funcionarem somente em crianças e não em adultos, ou apenas em neurônios e não em células do sangue).
Por que se utiliza a palavra “sequência”?
Porque o DNA é composto de quatro letras (A, G, C e T, referentes às iniciais das moléculas de adenina, guanina, citosina e timina). Quimicamente falando, essas letras são bases. Cada molécula de DNA é dupla, então, as bases sempre estão em dupla (o A com o T, e o G com o C) — daí o motivo de se falar em pares de base.
Onde está o DNA na célula?
O DNA está no núcleo da célula. Um indivíduo ganha metade do seu material genético do pai e metade da mãe. É o mesmo que dizer que ele recebe um genoma do pai e um genoma da mãe. O nosso DNA está organizado, no núcleo, como cromossomos. Cromossomos são um monte de DNA “apertadinho”, compactado, possível de ser observado no microscópio. Ganhamos 23 cromossomos do pai e 23 cromossomos da mãe — são 23 pares de cromossomos, totalizando 46.
Por que o projeto se chama Telômero a Telômero?
Telômeros são as pontas (partes) finais, as extremidades dos cromossomos. Os cromossomos podem ser representados por linhas verticais, ilustra Ida: as pontas são os telômeros, e o centro é o centrômero. Sequenciar um cromossomo de telômero a telômero significa sequenciar todo o cromossomo, de ponta a ponta.
Genoma, cromossomos, pares de bases: como tudo isso se relaciona?
O genoma tem 3 bilhões de pares de base, os cromossomos — 3 bilhões que herdamos do pai e 3 bilhões que herdamos da mãe. É como se fosse um livro composto de 3 bilhões de letrinhas (3 bilhões de origem paterna e 3 bilhões de origem materna). Pensando-se no conjunto dos seres humanos, esse livro apresenta páginas com sequências fixas (as letras na mesma ordem), ou seja, que não variam de pessoa para pessoa — ou que, quando variam, podem causar doença. Em algumas páginas, entretanto, há variações entre os indivíduos — e essa minoria é o que os diferencia uns dos outros, em características como altura e peso. No geral, a maioria das páginas são iguais em todos nós.
— Quando se sequencia o genoma, quando se sabe a ordem dessas quatro letras nos cromossomos, há métodos que dizem “essa região provavelmente é um gene”. E passamos a descobrir novos genes que podem, de alguma maneira, estar influenciando nossas vidas, nosso metabolismo e, também, estar associados a doenças — explica Ida.
Qual o significado da grande descoberta divulgada agora?
Os cientistas conseguiram determinar a ordem das letrinhas nos 8% do nosso genoma que estavam faltando.
— Eles viram que essas regiões sequenciadas englobam pelo menos 99 genes que podem estar associados a doenças. Descobriram 99 potenciais causadores de doenças. Isso é superimportante porque, daí, começa-se a fazer pesquisa. Há pessoas com doenças das quais ainda não conhecemos a causa — diz Ida.
Maria Cátira ressalta o aspecto técnico: foi transposta, agora, a barreira que havia impossibilitado a cobertura desses 8% até então desconhecidos.
— Era um problema técnico. Não tinha jeito de desvendar a sequência de letrinhas desses 8%. O artigo da Science descreve uma técnica que cobre regiões, principalmente, no centro e nas extremidades dos cromossomos, onde tem muito DNA repetitivo, o que as técnicas anteriores não conseguiam desvendar. O artigo celebra a técnica, a acurácia, (o fato de) chegar a regiões aonde antes não se chegava — aponta a professora da UFRGS.
Por que se trata de um feito tão importante?
O genoma humano não estava completo, faltava um pedaço.
— É uma técnica sofisticada. Pelo que eles falam, chegaram com muita acurácia a esse genoma. Isso é muito importante também. Trabalhar com pouca certeza não é bom _ observa Maria Cátira.
Neste caso, trata-se de um genoma feminino, de uma mulher europeia, obtido a partir de um tipo de célula tumoral — à frente, apresenta-se o desafio de desvendar o cromossomo Y (masculino).
— A técnica ainda não está otimizada para ser colocada em um sequenciador automático, para que se sequencie em grande escala. Eles (os autores) esperam que seja utilizada para sequenciar mais genomas. Celebram o fato de ser um método que pode trazer mais acurácia e cobrir, de fato, todo o genoma. Esperam que vá melhorando a performance de como obter mais genomas para se ter uma ideia geral das populações humanas. E que se estenda para outras espécies. Tem milhares de genomas conhecidos de espécies animais e vegetais.
Do ponto de vista da genética médica e clínica, áreas em que Ida atua, o destaque está na possibilidade do benefício futuro a pacientes:
— Imagina o trabalho bonito que se tem agora de associar esses genes a alguma doença, abrindo caminho para diagnóstico e tratamento.
A disponibilidade da versão completa do genoma humano terá impacto dentro de quanto tempo?
Não é algo imediato, para um intervalo de poucos dias ou semanas. Em alguns meses, aposta a médica geneticista Ida Vanessa Schwartz, é possível que já comecem a aparecer novas doenças associadas a esses genes que acabam de ser identificados.
— Acho que eles vão continuar pesquisando. Provavelmente, vão sequenciar essas regiões em outros indivíduos, como africanos, asiáticos. E devem terminar de analisar o cromossomo Y — projeta Ida.
Maria Cátira também não acredita em mudanças rápidas para o dia a dia da população, mas considera o quanto já se se evoluiu em duas décadas graças aos esforços continuados dos pesquisadores:
— Já se faz muita coisa, já se conhece muita coisa, já se desvenda muita coisa com o conhecimento que se tem, comparando-se a 20 anos atrás. Melhorar a acurácia é poder ter mais certeza, mas isso já vinha acontecendo. As pessoas veem isso na prática, por exemplo, ao receber um diagnóstico.
O que se pôde fazer nos últimos 20 anos, a partir do sequenciamento quase total do genoma humano que estava disponível até agora?
É um “novo mundo”, define Maria Cátira, repleto de possibilidades, como a da comparação de genomas entre diferentes espécies. A professora da UFRGS trabalha com primatas e resume parte das práticas em laboratório:
— Comparamos todo dia, todo o tempo, os genomas de espécies de interesse. Conseguimos desvendar o que é exclusividade humana, o que não é, o que nos diferencia de parentes mais próximos. Sabemos quais são as regiões do genoma impactadas no momento em que os humanos deixam de ser caçadores coletores para se tornarem agriculturalistas. É (um avanço em) progressão geométrica!
A interdisciplinaridade, com a biologia e a genética “conversando” com uma diversidade de outras especialidades, é mais um aspecto marcante na área da pesquisa genética.
— Não conseguimos mais analisar os dados sem pensar em bioinformática, em inteligência artificial. É muita informação, uma superquantidade de dados. Precisamos da inteligência artificial para nos ajudar a interpretá-los — explica Maria Cátira.
O que esperar do futuro neste campo de estudos?
A bióloga Maria Cátira crê ser importante, com o auxílio das novas ferramentas de bioinformática e inteligência artificial, estabelecer relações precisas entre genótipo (conjunto das informações genéticas) e fenótipo (características observáveis, como as físicas).
— Quanto e quais genes contidos nesse genoma incidem em quais fenótipos? Quanto essa informação pode determinar uma característica física e morfológica? Fazer a ligação precisa entre genótipo e fenótipo é um desafio — comenta a professora da UFRGS.