Um continente devastado por malária, HIV, fome, tuberculose. Com a eclosão da pandemia de coronavírus, previu-se a dizimação da população africana – o que não se reflete, dois anos depois, nos números referentes a óbitos.
Reportagem de fôlego publicada pelo jornal norte-americano The New York Times, que repercutiu por diversos veículos de imprensa do mundo, tenta entender por que a covid-19 não parece ter o impacto devastador para o qual tinha potencial no continente, especialmente quando se fazem comparações com tantas outras nações tão abaladas pela crise sanitária.
Baixos índices de casos, internações e mortes nas regiões ocidental e central da África pautam debates de cientistas. “Os doentes e mortos simplesmente não foram contabilizados? Se a covid de fato causou menos danos, qual é a razão? Se tem sido igualmente danosa, o que é que não estamos enxergando?”, questiona a repórter Stephanie Nolen.
As variantes Beta, Delta e Ômicron – esta última identificada pela primeira vez no continente e cuja descoberta deu reconhecimento planetário ao pesquisador brasileiro Tulio de Oliveira – provocaram muito sofrimento e perdas fatais na África do Sul, cenário que não se replicou em outros países.
Os estudos já percorreram distância suficiente para comprovar que o vírus se espalhou por toda a África. Análise da Organização Mundial de Saúde (OMS), ainda por ser oficialmente revisada por pares e publicada, reuniu conclusões de diversos estudos e afirma que 65% dos africanos haviam contraído o sars-cov-2 até outubro de 2021 – à época, apenas 4% da população tinha se vacinado. A investigação do NYT destaca que apenas 14% dos africanos receberam qualquer tipo de imunizante contra a doença – ou seja, os anticorpos encontrados em exames são, em sua maior parte, consequência das infecções.
Aventam-se motivos para explicar a possível taxa reduzidíssima de óbitos: população jovem – a idade média é de 19 anos, em comparação com 43 na Europa e 38 nos Estados Unidos – e com menos comorbidades para complicações da covid, altas temperaturas, muitas atividades ao ar livre, baixa densidade demográfica em diversas áreas e até a precária infraestrutura do transporte público. Esses fatores dificultariam a transmissão do coronavírus, mas não se sustentam quando se observa o quanto países do sul e do sudeste da Ásia, com características semelhantes a essas, sofreram no ano passado.
A quase inexistência de testes diagnósticos de covid-19 pode levar grande parte da culpa. Muitos indivíduos morrem em casa, sem atendimento médico ou porque os familiares assim desejam, e esses óbitos não são registrados. O único local da África Subsaariana onde todas as mortes são contabilizadas é a África do Sul.
Mas até neste ponto surgem divergências ruidosas. Especialistas argumentam que não foram vistos enterros em massa no continente. E mesmo casos isolados não passariam despercebidos, já que os velórios são momentos importantes para as famílias.
Apesar da vigilância sanitária deficiente, populações como a de Serra Leoa, no Oeste, tiveram a experiência do Ebola entre os anos de 2014 e 2016, com 4 mil vítimas fatais. Isso deixaria as pessoas em alerta para outros surtos infecciosos, que freariam o comparecimento do público em grandes eventos, por exemplo.
Salim Abdool Karim, dos Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças, citado na reportagem, crê que o número de mortos em todo o continente deve ser parecido com o da África do Sul. Não haveria grande diferença de vulnerabilidade entre as populações dos diferentes países, argumenta Karim.
As metas de vacinação também dividem especialistas. Com tantas dificuldades para armazenar imunizantes em condições adequadas, a tarefa hercúlea de combater o rápido alastramento de fake news e a escassez de profissionais de saúde, seria inviável chegar a 70% de imunizados, percentual estipulado há um ano. Como a proteção das doses decai com o transcorrer do tempo, o que já está bem documentado pela ciência, seria um esforço monumental que tiraria a concentração de outros problemas também subatendidos.