Reconhecido por tratar e recuperar pulmões, inclusive de sobreviventes do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, o médico porto-alegrense Marcelo Cypel deu um passo importante para a medicina: liderou um estudo no Canadá que converte pulmões de doadores com tipo sanguíneo A em pulmões do tipo sanguíneo O, transformando-os em órgãos "universais".
A promessa é acabar com a barreira da compatibilidade sanguínea para os transplantes, permitindo que pacientes na fila de espera consigam um novo órgão com mais facilidade.
O estudo é pioneiro, ainda está em fase pré-clínica - o que significa que ainda não foi aplicado em pessoas - e foi publicado na revista Science Translational Medicine no dia 16 de fevereiro. Cypel, 45 anos, graduado em Medicina pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), conduziu a pesquisa ao longo do ano passado no Toronto General Hospital, o maior centro de transplantes do mundo, onde atua desde 2005.
Especializado em transplante de pulmões, o médico está acostumado a uma situação que, embora recorrente, não deixa de ser frustrante: a impossibilidade de utilizar o órgão de um doador do tipo A ou B em um paciente do tipo O, alguém que geralmente aguarda há tempo na fila de espera, muitas vezes morrendo nessa condição, somente porque esse tipo sanguíneo só pode receber do mesmo sangue.
Aqui, vale lembrar das aulas de Biologia: pessoas dos tipos sanguíneos A e B podem receber de seus semelhantes e também de pessoas do tipo O. Essas últimas, conhecidas como doadores universais, doam para todo mundo, mas só podem receber de quem também é tipo O, o que limita bastante suas chances de conseguir sangue ou um novo órgão.
— Quando eu passava por essa experiência, pensava: precisamos ver se existe alguma maneira de converter esses órgãos do tipo A ou B para o tipo universal, e usá-los em qualquer paciente. Foi quando comecei a pesquisar se tinha trabalhos na área — diz o médico.
O estudo na prática
Ele encontrou a pesquisa do médico Stephen Withers, da Universidade da Columbia Britânica, em Vancouver, também no Canadá, que descobriu, em 2018, enzimas que convertem o tipo sanguíneo A em O.
Focado na transfusão de sangue, o trabalhou de Whiters observou que bactérias presentes no intestino possuem enzimas capazes de retirar o carboidrato (açúcar) das células. O tipo de sangue A é feito de carboidratos. Como as enzimas extraem esses carboidratos, transformam a célula em tipo O, que tem ausência de carboidratos.
— Contatei o Whiters e falei: "Quem sabe podemos usar essas enzimas em órgãos?". Ele ficou interessado, não era algo em que estava pensando — conta Cypel.
O estudo analisando como as enzimas podem transformar um pulmão em órgão universal aconteceu em uma máquina de perfusão para tratar pulmões fora do corpo. O aparelho já havia sido desenvolvido por Cypel, em 2008, mas não com o intuito de converter o tipo sanguíneo, e sim para regenerar o órgão, evitando que fosse descartado e ficasse bom o suficiente para ser usado em transplante.
— Colocamos pulmões com tipo sanguíneo A na máquina de perfusão e tratamos por quatro horas usando essa enzima. No final, vimos que 99% dos carboidratos das células pulmonares tinham sido retirados. O próximo passo foi pegar o sangue de pessoas de grupo O e colocar em contato com o pulmão. Não houve estranhamento. O sangue passou normalmente, sem nenhum sinal de rejeição do órgão — detalha o médico.
Esperança
A impossibilidade de um transplante se realizar por conta da incompatibilidade sanguínea foi presenciada recentemente pelo cirurgião torácico Spencer Camargo, integrante do grupo de transplante pulmonar do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Um paciente do tipo O, que estava na lista de prioridade para conseguir um novo órgão, só encontrava doadores dos tipos A e B. Acabou falecendo à espera de alguém compatível.
— O tipo sanguíneo é a primeira barreira, a primeira coisa que é checada quando temos um doador. E isso é um impeditivo. O estudo do Cypel, caso se mostre viável, será fantástico — diz Camargo.
O próximo desafio do estudo será partir para a fase clínica, quando a experiência com as enzimas vai ser aplicada em pessoas, durante transplantes reais, o que deve acontecer dentro dos próximos 12 meses. A intenção também é testar a técnica com rim e coração.
Segundo o coordenador do grupo de transplante renal do Hospital Moinhos de Vento, o nefrologista David Saitovitch, a técnica, se aprovada, terá mais impacto nos transplantes cujos órgãos se tornaram insuficientes e precisam ser substituídos com urgência. Não é o caso dos pacientes que precisam de novos rins, já que podem aguardar um doador compatível fazendo diálise.
Por outro lado, a transformação do tipo sanguíneo de um órgão pode vir a calhar quando surgir alguém disposto a destinar um de seus rins.
— É o que chamamos de doador vivo de rim. Imagina que tu tens uma amiga em diálise, aguardando um novo rim, e aí aparece um doador, um tio, uma tia, com um tipo sanguíneo incompatível. Esse tratamento do Cypel pode ajudar muito nesses casos — considera Saitovitch.
Auxílio aos sobreviventes da Kiss
Em 2013, Marcelo Cypel, já morando no Canadá, foi recrutado pelo Ministério da Saúde para ajudar a tratar quem havia sobrevivido ao fogo que se alastrou pela Boate Kiss, em Santa Maria, matando dezenas de pessoas. Internados em diferentes hospitais, esses pacientes estavam com os pulmões debilitados.
O que Cypel fez foi auxiliar os médicos a usarem um suporte pulmonar extracorpóreo, equipamento que faz o trabalho de respiração do corpo, diminuindo o esforço dos pulmões, técnica chamada pelo médico de pulmão artificial. Poucos pacientes precisaram do aparelho.