O médico porto-alegrense Marcelo Cypel tem se notabilizado por recuperar, para transplante, pulmões que normalmente seriam descartados, o que já resultou no salvamento de milhares de vidas. Neste começo de ano, ele publicou na revista científica Nature Communications os resultados de uma nova técnica, com potencial para ampliar ainda mais o índice de aproveitamento dos órgãos e diminuir as filas de espera.
O avanço consiste em utilizar feixes de luz para inativar o vírus da hepatite C, o que permitiria transplantar os pulmões de doadores infectados – cerca de mil por ano apenas nos EUA e no Canadá. A mesma técnica tem potencial para esterilizar outros órgãos, eliminando vários tipos de vírus e bactérias.
Diretor-cirúrgico do maior programa de transplantes de órgãos da America do Norte (University Health Network em Toronto, Canadá), Cypel explica que os pulmões de doentes de hepatite C eram descartados porque havia uma chance de 100% de transmissão da enfermidade para o receptor. Essa situação vinha se tornando especialmente preocupante porque a quantidade de órgãos desperdiçados multiplicou-se na América do Norte. A crise de uso de opioides que assola a região tem provocado muitas mortes por overdose entre jovens que são potenciais doadores, mas cerca de 30% deles estão infectados com o vírus da hepatite C. Nos últimos cinco anos, quadruplicou a quantidade de pulmões oferecidos que estavam contaminados.
— Toda semana há ofertas desses doadores. Eu me sentia muito mal por dizer "não, não e não" — relata Cypel.
O gatilho para o médico investigar a técnica que elimina o vírus foi um paciente que ele teve em 2015. Na fila de espera por um pulmão que não apareceu, o homem estava à beira da morte. Sem outra alternativa, a família concordou que fosse transplantado o órgão de um doador com hepatite. O receptor desenvolveu a doença, mas submeteu-se mais tarde a tratamentos que começavam a surgir e recuperou-se.
Após esse caso, e com a multiplicação da quantidade de órgãos ofertados que vinham contaminados, o pesquisador gaúcho começou a pensar em uma forma de eliminar o vírus da hepatite C.
O trabalho prévio dele estava baseado no desenvolvimento de uma técnica inovadora na qual, depois de ser retirado do doador, o pulmão era colocado em uma máquina de perfusão antes de ser transplantado. Esse equipamento é um sistema artificial onde o órgão permanece em condição fisiológica, como se estivesse funcionando em uma pessoa, mas com um sistema controlado de pressões e ventilação. Nesse estado, recebe antibióticos, anti-inflamatórios e anticoagulantes. Depois de algumas horas submetidos a esse regime, pulmões que iriam para o descarte estão recuperados e podem ser transplantados.
Graças à técnica de perfusão, Cypel conseguiu aumentar de 20% para 45% a proporção de pulmões aproveitáveis e dobrou a quantidade de transplantes realizados no Hospital de Toronto – atualmente 200 transplantes de pulmão por ano são realizados nessa instituição. O método propagou-se por dezenas de hospitais no mundo todo.
— Pensei assim: por que não pegar o órgão com o vírus da hepatite C, colocar na máquina de perfusão e retirar todo o sangue contaminado do órgão? Talvez fosse suficiente — recorda.
Cypel realizou o experimento, mas constatou que o vírus continuava presente. Foi então que ele teve a ideia de recorrer a uma técnica de esterilização por irradiação ultravioleta que é bastante utilizada em bancos de sangue. A luz ultravioleta consegue quebrar o genoma dos vírus, desativando-os. Uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) juntou-se ao esforço, desenvolvendo um equipamento para aplicar o raio luminoso no sistema de perfusão.
Em Toronto, Cypel testou a técnica em nove pulmões infectados, aplicando não apenas os raios ultravioleta, mas também um outro tipo de radiação, a luz fotodinâmica. O resultado foi a eliminação ou desativação de 99% dos vírus.
Esses resultados estão no artigo científico publicado dias atrás, mas a pesquisa de Cypel já está numa etapa mais avançada. Depois de inúmeros experimentos pré-clinicos, ele começou estudos clínicos em humanos – 25 pacientes receberam pulmões que estavam infectados pela hepatite e alguns foram recuperados pela terapia de luz. Os resultados devem ser publicados ainda neste ano, quando a técnica deve começar a ser usada de forma rotineira.
Custo ainda é muito elevado no Brasil
Segundo Cypel, a taxa de infecção por hepatite C despencou. E, mesmo nas situações em que o vírus não foi totalmente eliminado, a carga dele é tão baixa que deve bastar um tratamento de poucos dias para evitar que o receptor desenvolva a doença (em lugar do tratamento convencional de três meses, que custa US$ 90 mil).
Além disso, o médico gaúcho vem pesquisando o uso da terapia com luz para recuperar outros órgãos – começando por rim e coração (nesses órgãos, diferentemente do fígado, o vírus da hepatite não está dentro das células, o que torna a terapia da luz adequada). Para o caso brasileiro, onde muitos pulmões são de doadores com pneumonia, a terapia também poderia eliminar os vírus e bactérias envolvidos, aumentando a oferta de órgãos disponíveis.
— O bom da terapia usando raios de luz é o fato de não ser específica para um só tipo de vírus ou bactéria, como antibióticos, por exemplo. Ela é efetiva contra todos os microrganismos, inclusive os mais resistentes aos antibióticos disponíveis hoje em dia. É mais um estímulo para o uso da técnica de perfusão no Brasil, onde ela ainda chega com um custo muito elevado — afirma Cypel.